Médico belga que já socorreu muitas vítimas no Iraque acha que os EUA estão por trás de violências para amedrontar jornalistas e afastar a imprensa do país em conflito. Leia o relato de Geert Van Moorter, em março de 2005, do Planeta Porto Alegre

A jornalista italiana Giuliana Sgrena foi alvo dos soldados norte-americanos no dia 4 de março, dia em que era libertada em Bagdá. Ao reagir, Sgrena disse que pouco antes, seus sequestradores lhe tinham advertido: “Os americanos ainda podem intervir. Eles não querem que você volte”. Segundo seu companheiro, o ataque foi deliberado porque Sgrena sabia demais.

O fato me faz lembrar do disparo contra o Hotel Palestine, em 8 de abril, que matou dois jornalistas. Eu estava no Iraque com a organização “Medicina para o Terceiro Mundo”. No momento dos fatos eu estava dois andares abaixo e ajudei no resgate. Em tom de justificativa, o exército norte-americano disse que haviam ocorrido disparos contra seus homens vindos do hotel. Mas ninguém ouviu os tiros por alí. Mais tarde, um soldado estadounidense me explicou cheio de orgulho que, de seu blindado podia ver claramente uma cabeça a 200 metros. Dessa forma o soldado que disparou de seu tanque contra o hotel Palestine podia distinguir claramente os periodistas e suas câmeras.

Mas o informe secreto do exército dizia que suas tropas não tinham cometido falha alguma.

Nesse mesmo dia, o escritório da Al Jazeera foi vítima de um ataque aéreo. Um jornalista morreu. Paul Pascual, da Reuters, me confirmou que o exército norte-americano sabia onde estava instalada da Al Jazeera: a pedido da própria cadeia de televisão, ele havia transmitido ao Pentágono as coordenadas do escritório para que não disparassem contra ele.

Em março de 2004, alguns jornalistas de outra cadeia árabe, a Al Arabiya, foram abatidos com balas na cabeça quando passavam por um controle norte-americano perante o qual havia se identificado.

Em agosto de 2004, o governo iraquiano instalado pelos Estados Unidos fechou os escritórios da Al Jazeera durante um mês, despois que o secretário da Defesa, Donald Rumsfel, os acusara de anti-norteamericanos.

Eason Jornan, diretor de informação da CNN, declarou em janeiro de 2005, durante o Fórum Econômico de Davos, que muitos jornalistas no Iraque tinham sido alvos dos norte-americanos. Pouco depois, desmintiu sob pressões. Disse que tinha sido um equívoco.

A Federação Internacional de Jornalistas – FIJ, acusa os Estados Unidos de quererem controlar e intimidar as mídias no Iraque. Segundo a FIJ, não houve qualquer explicação nem investigação séria sobre os três jornalistas assassinados pelas tropas norte-americanas no Iraque.

Tudo são erros? O que os EUA precisam ocultar?

Os Estados Unidos estão se confrontando com uma resistência crescente no Iraque. Uma resistência que eles tentam quebrar por meio de guerra suja. “Eliminam terroristas” em cidades e povoados inteiros. Eu pude ver os resultados disto nos hospitais: muitos civis feridos e mortos pelas bombas (bombas de fragmentação), abatidos nos postos de controle, durante as revistas nas casas, nas ruas. Eu pude constatar que o exército norte-americano é, por si mesmo, um fator de insegurança. Seus soldados disparam contra tudo aquilo que lhes pareça suspeito. Inclusive contra as ambulâncias, apesar da proibição da Convenção da Genebra. Um soldado a quem perguntei a respeito disso me respondeu: “Esta ambulância podia estar cheia de explosivos”.

Eles sabem que podem atuar impunemente. Aliás, o próprio Bush deu o exemplo quando lançou seu ataque preventivo contra o Iraque.

Em agosto de 2003, perguntei a um policial militar o que eles fariam se vissem suspeitos correndo. Me respondeu: “os liquidamos”. Quando um soltado norte-americano matava um iraquiano, nem sequer tinha de fazer um informe verbal. E se tinha de fazer algum informe, “se adapta a história dizendo que o tipo escapou dos tiros”.

E em novembro de 2004, durante o assalto à Fallujah, vimos na televisão uma soldado norte-americana matando um homem ferido em uma mesquita. A soldado não via nada de mal nisso. Esse tipo de atitude não é rara no Iraque ocupado. Mas as imagens deram a volta ao mundo e, por causa disso, esta soldado têve que prestar contas do que fez. Em finais de fevereiro, o exército norte-americano a liberou de qualquer diligência judicial.

As ações das tropas norte-americanas e britânicas matam muito mais civis do que os atentados suicidas. Sejamos claros, ninguém poderia aprovar os ataques contra civis inocentes, nem os do exértico norte-americano nem os de alguns grupos que não tem nada a ver com uma resistência legítima. Segundo a prestigiosa revista The Lancet (29/10/04), ao menos outros 100 mil iraquianos morreram em consequência da guerra.

A metade deles por morte violenta, 84% em razão das ações dos exércitos norte-americano e britânico, e 4% da resistência. Os Estados Unidos querem ocultar sua guerra suja. Durante o assédio de Fallujah, o hospital da cidade foi ocupado de tal maneira que o que os relatos dos médicos ou as imagens das vítimas não puderam chegar ao mundo. Dessa forma,  tudo que aparece hoje nas primeiras páginas são os atentados suicidas.

Hoje reina o caos< /i> total no Iraque. Com alguns colegas iraquianos, fizemos uma pesquisa sobre a saúde no país. Dois anos depois da queda de Bagdá, a situação é dramática. Ninguém está a salvo. Degradaram-se o poder aquisitivo, a situação alimentar e as condições de vida. Mais da medade da população está desocupada e, portanto, sem renda. Os preços da comida e dos transportes duplicaram. Há graves problemas de eletricidade, de água potável, de águas residuais, de lixo. Como consequência, aumentou consideravelmente a mortalidade infantil. E a infra-estrutura sanitária continua sem melhoria.

Parece que os ocupantes só se preocupam com seus próprios lucros e segurança. Qualquer apoio à ocupação, incluíndo a formação de soldados, policiais e juízes iraquianos, da qual vai participar a Bégica, reforça a influência norte-americana no Iraque. Assim, uma grande parte da riqueza do país, o petróleo, pode acabar em mãos das multinacionais ocidentais e isto não vai beneficiar a população iraquiana. O caos pode continuar.

A maioria dos iraquianos quer que as tropas de ocupação saiam de lá. E quanto antes o fizerem, mais oportunidades existirão para um verdadeiro progresso para a população iraquiana. 
 

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Geert Van Moorter é um médico belga, autor do livro “ O fosso mortal: saúde e desenvolvimento” e de um documentário sobre o Iraque. 
 

Contatos: geert.van.moorter@skynet.be

Campaña de solidaridad con las víctimas en Irak:
http://www.intal.be/fr/article.php?articleId=250&menuId=1

Traduzido do francês para o espanhol, para El Corresponsal, por Beatriz Morales Bastos
 
Publicado em www.planetaportoalegre.net: 21/03/2005