Por Regis Moraes, maio de 2005
Colaborador do NPC e professor da UNICAMP
 

No dia 30/04, a Folha de São Paulo deu, na primeira pagina, uma chamada para a cobertura da entrevista coletiva de Lula. Manchete, frases selecionadas e um resumo do comentário do Jânio de Freitas.

O comentário chama a atenção do leitor. Dizia que nada havia, na entrevista, que merecesse o nome de informação. O que havia era cena, pose, retórica propagandistica. Quem viu a entrevista, ou leu, certamente concordaria, pelo menos parcialmente, com o comentarista. A começar por uma das frases, destacada pelo jornal: “Difícil dizer quais os erros num governo que acerta tanto” – disse Lula. Não é preciso ser muito radical para invertê-la:difícil achar acertos num governo que erra tanto.

Mas não é exatamente isso o que sôa mais estranho: é a desinformação produzida pelo próprio jornal e pelo colunista.

O comentário de Jânio de Freitas era o seguinte: para quem prometeu dez milhões de empregos, é um acinte encher a boca com o numero de 90 mil. O leitor mais atento acharia esquisita a referência e iria ver do que se tratava. O leitor mais atento, eu disse – mas esse movimento  não é usual no leitor da primeira pagina dos jornais, o peão que  vê o jornal pendurado na banca.

A frase, na verdade, foi completamente distorcida, a ponto de mostrar algo muito diferente. Lula dizia que foram criados, aproximadamente, 90 mil empregos por dia. Por dia: o acumulado era algo perto de 2 milhões e meio. Aquilo que parecia acinte e descaso poderia, então, ser lido de outro modo: algo cresceu, no mundo dos empregos, embora não tanto quanto se prometera.

O que aconteceu com Jânio de Freitas? Ele não é ignorante nem mentiroso, pelo contrário, construiu uma reputação no sentido inverso. Por que esse escorregão grotesco? Tendo a pensar que se trata da ansiedade em pisar no seu ponto de vista geral – ao qual se devem submeter os aspectos particulares da realidade. O enquadramento básico é esse: como o governo é ruim no geral, todo aspecto eventualmente positivo, aparentemente positivo, deve, no fundo, ser igualmente ruim. Se os fatos não couberem na teoria, a mente talentosa faz esforço para que caibam. Como isso convém para o jornal… tudo se encaixa. Só que isso é desinformação interessada. 

O “Brasil” cresceu? Ou não? Qual Brasil?

Jornais – impressos ou eletrônicos – costumam, periodicamente, “retratar” o desempenho da economia e do governo. Para isso, precisam trabalhar com medidas, indicadores quantitativos. Contudo, os indicadores que construímos (nós ou eles) não são neutros, não são independentes do lugar em que estamos, na sociedade. E não são independentes do rumo que pretendemos dar à sociedade – o nosso projeto, a nossa ideologia.

Faz tempo que estava amadurecendo a polêmica sobre esses indicadores – crescimento econômico e emprego. Há poucos meses, no caderno de economia do “Estadão”, um artigo de colunista “oficial” do jornal, bastante conservadora, criticava o desempenho da economia e do governo afirmando, por exemplo, que a economia ia mal e o desemprego crescia. Na mesma edição, mas em outro caderno, um romancista e colunista de jornais e revistas, o João Ubaldo, dizia algo similar: nada crescia no Brasil, a não ser os impostos. O assombroso é que a principal matéria desse caderno de economia, nessa mesma edição do Estadão, com grande destaque, era algo assim: Cresce o emprego (e emprego formal) e a massa salarial aumenta na velocidade de 30 bi por mês.

O leitor desconfiado perguntaria: o que aconteceu? Os colunistas não lêem o seu próprio jornal? Não, não é isso. A colunista não estava produzindo informação, estava produzindo uma intervenção no debate, uma intervenção motivada, uma “informação interessada”, motivada pela sua posição política.   E o romancista estava se referindo, implicitamente, à MP 232, que aumentaria impostos para as tais “empresas prestadoras de serviços”, nas quais, provavelmente, ele iria ser enquadrado, como alias, boa parte da mídia impressa e eletrônica, cujos profissionais foram transformados em “pessoas jurídicas”, empresas prestadoras de serviços. Nada mais natural que esperneiem e que vejam o mundo de outra maneira. É uma percepção do mundo, marcada pelo lugar em que eles estão e pelos fatos que percorrem sua existência diária.

Talvez os rendimentos dos colunistas não tenham crescido nos últimos dois anos. Deveriam crescer, necessariamente? Talvez já sejam suficientemente altos. Talvez, por exemplo, tenhamos uma opinião diferente da dele: alguns rendimentos devem crescer, outros não. “O Brasil” que deve crescer, para nós, pode ser um “Brasil” diferente do dele.

A MP 232, tão surrada pela mídia, diminuía o imposto de renda (IR) para os assalariados e pensionistas e, proporcionalmente, aumentava o imposto das tais empresas. Estas, nos últimos anos, tinham sido o dispositivo através da qual empresas e funcionários qualificados tinham empreendido a terceirização do salariado, com significativa redução de carga tributaria. Significativa, mesmo: se você fizer as contas, um terceirizado-empresa paga menos de um quarto de IR do que pagaria como assalariado. Algum jornal tocou nessa relação? Não se fala de corda em casa de enforcado.

A primeira página é aquela que fica…

Uma semana depois, esse mesmo descompasso apareceu na mesma Folha,
noticiando dados do IBGE sobre a renda do brasileiro. Um dos títulos (não me lembro se era o da primeira pagina ou a capa do caderno de economia) dizia algo assim: “mais gente ganha menos”. Mentira? Não, apenas um modo de olhar para a verdade e descrevê-la. Como houve crescimento do numero de pessoas integradas no mercado de trabalho (formal e informal) e, portanto, registrada no levantamento, pode ter havido isso: numero maior de pessoas (em termos absolutos e também percentuais) na faixa menor de renda. Isso pode ter ocorrido sem que a situação geral da massa assalariada tenha piorado. A massa salarial pode ter até aumentado, como parece que aumentou. O numero de empregos criados na escala mais baixa dos salários (1, 2 mínimos) foi muito maior do que aquele que se criou nas outras faixas. É provável, quase certo, que tenha sido aí que o emprego novo cresceu, surgiu. Daí, a sua participação percentual (o percentual de pessoas, não o percentual das rendas) pode ter crescido. Parece, sim, que cresceu. Isso não significa que “mais gente tenha passado a ganhar menos do que ganhava”, como poderia levar a pensar o titulo da matéria. São coisas muito diferentes. 

Entre titulo e matéria, a briga costuma ser feia, principalmente na chamada “grande imprensa”. Lembro de uma manchete da Folha dizendo algo assim: Erundina vai passear na Itália. Lá dentro, na pagina 19 ou 20, vinha a noticia, bem menos charmosa: Erundina tivera uma viagem estafante para negociar não sei o que com não sei quais entidades européias e aproveitara a hora do almoço para passear na Via Veneto. O peão não lê a pagina 19 quando fica pendurado na frente da banca – lê a manchete da primeira pagina. E é por isso que mancheteiro é cargo de confiança do dono. Ele diz qual a bandeira do dono.
 
 

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Reginaldo Moraes é professor do Dpt. de Ciências Políticas da Unicamp e faz parte da equipe do NPC.