[Por Emílio Azevedo] Um dos destaques da edição de dezembro do jornal “Vias de Fato”, uma publicação alternativa do Maranhão, é a entrevista com a jornalista Claudia Santiago Giannotti, coordenadora e fundadora do NPC ao lado de Vito Giannotti. Ela fala sobre a articulação da comunicação popular no Brasil e do seminário ocorrido no Maranhão, em 2017, tratando desse assunto. Na pauta também o Curso Anual do NPC, a importância das organizações negras e indígenas para a luta de classes em nosso país, formação política e cinema.
A seguir, você confere a entrevista completa com Claudia Santiago.
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Nossa entrevistada desta edição é Claudia Santiago, jornalista, historiadora, cinéfila e educadora. Ela fundou
o Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC), ao lado de Vito Giannotti, com quem foi casada. Vito é um dos nomes mais importantes da comunicação sindical, popular e comunitária no Brasil, falecido em 2015. Em 2017, Claudia esteve duas vezes no Maranhão, onde já havia dado cursos há mais de dez anos. Nessas passagens recentes, visitou o Quilombo Santa Rosa (Itapecuru) e teve contato com os articuladores da Teia de Povos e Comunidades Tradicionais. Ela diz que passou “por uma grande mudança de hábitos após esse contato”. Ainda este ano, no Maranhão, foi palestrante e acompanhou de perto todas as atividades do I Seminário Comunicação e Poder. Logo após sua estada entre nós, o NPC realizou em novembro, no Rio de Janeiro, a 23ª edição do seu respeitado e concorrido curso anual. A agenda política maranhense entrou na pauta do curso.
O NPC é uma escola de formação política, com ênfase na comunicação e na história das lutas dos trabalhadores e das lutas sociais. Localizado no Rio de Janeiro, com atuação em todo o pais, já tem 23 anos e é referência no estudo da comunicação, atuando há mais de duas décadas na formação de movimentos comunitários, populares, sindicatos e outros coletivos. O Núcleo é constituído por um grupo de comunicadores, jornalistas, professores universitários, artistas gráficos, ilustradores e fotógrafos. Tem uma rede de mais de dez mil parceiros, a maioria ex-alunos, com quem mantem contato frequente.
Como fica bem claro nessa entrevista, Claudia é, do ponto de vista político, uma autêntica militante da luta de classes, com a sabedoria de quem ensina, mas também quer sempre aprender (atualmente está estudando francês). Carismática, tendo a clareza e a vivência do que significa a palavra solidariedade, ela transita com facilidade (e sem fazer esforço) entre todos os movimentos e partidos da esquerda brasileira. Sem qualquer exagero ou confete, percebe-se que ela já é, hoje, uma daquelas figuras que pairam acima das autofagias. Foi filiada ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), onde era ligada ao grupo de Gregório Bezerra, figura antológica da esquerda latino-americana. Apaixonada por cinema, participou da fundação e organização de cineclubes, entre eles o famoso Estação Botafogo (em 1985), que se tornaria, anos depois, o maior exibidor brasileiro do circuito independente ou alternativo, o chamado “cinema de arte”.
Vamos, então, para a entrevista.
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Vias de Fato – Qual tua avaliação dessa 23ª edição do curso anual do Núcleo Piratininga de Comunicação?
Claudia Santiago – A melhor possível. Conseguimos conversar sobre mudanças na política latino-americana e suas consequências para os trabalhadores. Conseguimos estudar as mudanças no mundo do trabalho e o perfil da classe trabalhadora hoje. Logicamente, a comunicação esteve no centro de todos os debates. Desde a nossa comunicação, feita nos bairros, nos sindicatos, até a comunicação dos “donos do poder”, para usar uma expressão de Raymundo Faoro. Tratamos de luta de classes, de racismo, da importância da luta das mulheres na pauta da comunicação sindical. Tudo feito com muita emoção, muito carinho, muita arte, muito acolhimento, e muita vontade de mudar o mundo. Então, minha avaliação é muito boa. As 250 pessoas que participaram do curso estavam em sintonia com as urgentes necessidades do nosso tempo. Foram 170 participantes, 49 palestrantes, dois atores, três músicos e um coral. O coral “A voz da luta”, do Sindicato dos Petroleiros.
Vias de Fato – Queria que você falasse um pouco dessa diversidade do curso, que reúne gente de todo o país, entre diferentes sindicatos, comunicadores populares, artistas e movimentos sociais dos mais diversos.
Claudia Santiago – Essa é a principal riqueza do curso. Militantes políticos das diversas regiões do país, de
diversas posições ideológicas no campo da esquerda e de diversas categorias profissionais. Juntam-se a essa riqueza moradores de favela que atuam na comunicação popular, gente do movimento sem-teto, do MST, estudantes de comunicação e por aí vai. Nossa ideia central é que existe uma classe trabalhadora que tem objetivos em comum; mas sabemos que existem questões que são específicas de setores da classe, como é o caso das mulheres, dos negros, dos indígenas, dos homoafetivos, dos trans, dos migrantes, da população em situação de rua, dos desempregados, dos encarcerados. A comunicação sindical, para ser contra-hegemônica, precisa tratar de todos esses assuntos. Assim como precisa falar de transporte, moradia, saúde, educação, cultura. Se pensamos assim, temos de dar o exemplo. Então o curso trata de todas essas questões.
E se a conversa entre os sindicatos e os trabalhadores é uma ideia central nossa, precisamos pensar no conteúdo dessa conversa. E mais, nós queremos toda essa gente junta. Não gostamos da briga dentro da esquerda. Obviamente que não queremos um pensamento único. Longe de mim. Mas, um dia, sonho eu, vamos compreender que os trabalhadores e as trabalhadoras do mundo inteiro terão de se unir. “Paz entre nós, guerra aos senhores. Somos irmãos trabalhadores”, está no hino “A Internacional”, escrito originalmente em francês, em 1871, por Eugène Pottier, um dos revolucionários da Comuna de Paris.
Ou isso, ou aceitar que uma grande parcela da população mundial viva em condições desumanas. Ou seja, os que não podem consumir são descartados. Nós acreditamos que a felicidade seja possível, mas não no sistema capitalista. No capitalismo não dá para ser feliz.
Vias de Fato – No Brasil, qual a importância das organizações negras, indígenas e quilombolas para a luta de classes?
Claudia Santiago – Não sou especialista no assunto. Não sou quilombola e não conheço minhas origens africanas, embora provavelmente as tenha. Sou neta de uma indígena. Nunca concebi a luta dos trabalhadores apartada da luta dos negros, indígenas, quilombolas. Há 30 anos criei uma coluna no jornal Conquista, da CUT-RJ, que se chamava “Minoria, eu?”. Essa coluna fez muito sucesso. Ou seja, há pelo menos trinta anos eu sei que a luta de classes passa pela luta dos negros e indígenas. Somos a mesma classe.
Vias de Fato – Este ano você esteve duas vezes no Maranhão. Nas duas ocasiões, teve contato com a Teia de Povos e Comunidades Tradicionais, que vem sendo organizada no Estado. Qual tua impressão sobre essa articulação?
Claudia Santiago – Sou absolutamente urbana e acostumada a tudo o que a modernidade e a vida no Rio de Janeiro oferecem. Fiquei muito impressionada com o contato com a Teia de Povos e Comunidades Tradicionais. Sofri um grande impacto quando conheci a articulação tanto do Maranhão, quanto da Bahia, e olha que conheço pouco. Hoje sei que a transformação social que eu almejo passa por esse tipo de articulação.
Eu passei por uma grande mudança de hábitos após esse contato. Minha vida de jornalista do Rio de Janeiro foi abalada. Não sei se é para falar isso, mas mudei até na minha forma de me vestir. Dei para amigas meus sapatos, sandálias e bolsas que tinham algum brilho, e passei a ter na cuia que recebi de Kum`tum Gamela o símbolo do meu compromisso com quilombolas, indígenas, ribeirinhos, quebradeiras de coco. Hoje tenho uma grande amiga em Altamira, que foi despejada pela Vale, a Francisca. Tenho na Rosa, do Movimento das Quebradeiras de Coco, uma grande referência. Tem também o Domingos, que junto com seu povo indígena, resiste a grilagem de terras, em um território na ilha de São Luís.
Entrei para o Partido Comunista Brasileiro com 17 anos, em Vila Velha, no Espírito Santo. A esse partido e aos meus companheiros devo muito do que sou. Aos 26 anos, já afastada do PCB, vi de perto a greve dos metalúrgicos de Volta Redonda, que teve como consequência, além da conquista das reivindicações, a morte dos operários Valmir, William e Barroso pelo Exército. Estava selada a minha aliança com os operários. Aos 40 anos, convivi com as mães das vítimas da chacina do Borel, favela na Tijuca, bairro onde moro. Estava selada minha aliança com os favelados. Principalmente com as mulheres e os jovens. Aos 55, em 2017, conheci a Teia de Povos e Comunidades Tradicionais e aceitei a cuia. É isso.
Vias de Fato – Você participou também do seminário Comunicação e Poder no Maranhão. Em que esse evento dialoga com o trabalho do NPC?
Claudia Santiago – No debate sobre o papel dos meios de comunicação, na pluralidade de visões dentro do campo da esquerda que foram apresentadas, na composição dos participantes e no ensino da técnica da comunicação. Poderia ser um evento do NPC. Inspirada pelo seminário do Maranhão, pretendo estimular, através do NPC, a realização de fóruns como esse em todo o país. Não um fórum de um ou outro partido,
de uma ou outra central sindical, de um ou outro movimento. Claro que cada um pode e deve fazer o seu. Mas é imprescindível a existência de espaços plurais dentro da esquerda como foi o seminário “Comunicação e Poder no Maranhão”, que reuniu centrais, sindicatos, partidos, povos tradicionais, estudantes, pesquisadores, jornalistas.
Vias de Fato – Queria que você falasse um pouco da importância da formação, no processo de organização popular.
Claudia Santiago – Olha Emilio, sem formação não há organização popular. Eu acredito que as ideias dominantes em uma sociedade são as ideias da classe dominante porque ela é a detentora dos aparelhos de hegemonia, ou dos aparelhos ideológicos do Estado, dependendo se quem fala gosta de Gramsci ou Althusser. A mim interessa perceber que os meios de comunicação defendem os interesses dos grupos
econômicos e que esses dominam o Estado. Então são todos antipovo. Eles têm nojo do povo. Eles não gostam de quem não é da turma deles e farão de tudo para secar até a última gota de suor dos trabalhadores, como estamos vendo agora no Brasil com a implementação de leis trabalhistas que retrocedem quase cem anos no tempo. Estamos perdendo direitos conquistados. Agora, os meios de comunicação, a serviço das grandes corporações, do capital, agem para fazer com que as pessoas achem que é assim que a vida deve ser. E não é. Não é natural trabalhar até morrer sem se aposentar. Não é natural não poder cuidar da saúde, não
ter boas escolas, viver em lugares que não tenham esgoto. Não é natural um mandado de busca e apreensão coletivo em toda uma favela. Não é natural morrer na linha por onde passe o trem da Vale. Não é natural tantos jovens negros e de periferia serem assassinados. E as pessoas acabam convencidas de que tudo isso é natural e que “desigualdade sempre vai existir”. Como é que muda isso? Com formação política e relação muito íntima e igualitária daqueles que querem uma sociedade justa e solidária com as classes populares, sejam elas trabalhadoras de um supermercado no Rio de Janeiro, sejam elas quebradeiras de coco babaçu.
Vias de Fato – Você acha possível construir uma Teia de Comunicação Popular no Brasil, a partir da experiência pedagógica do Núcleo Piratininga de Comunicação? Além de possível, isso seria interessante? Necessário? Uma rede que teria como prioridade a organização popular?
Claudia Santiago – É um grande desafio, uma aposta alta, mas que nós vamos fazer. A organização popular e a comunicação, juntas. Pipocam em vários cantos experiências chamadas de comunicação popular. Mas elas são mais fruto da euforia com a Internet do que com a organização do povo para lutar por seus direitos. É como se as duas coisas não se comunicassem. O povo organizado em seus territórios carece muito de comunicação, enquanto nas redes sociais parece que a revolução vai acontecer a qualquer momento, devido à quantidade de coletivos, ou mesmo experiências individuais que surgem diariamente. Para nós, o desafio é fortalecer a comunicação popular daqueles que lutam para manter suas casas, suas terras, seus direitos, suas vidas. Em um movimento dialético. A comunicação fortalece a organização popular e a organização popular potencializa a comunicação desses grupos.
Vias de Fato – Para finalizar, já que tratamos aqui de formação, queria que você falasse de Cinema, esse poderoso instrumento ideológico, que mistura arte e comunicação. Como o cinema entrou na tua vida? Foi pelo PCB? E você ainda acredita que cineclubes podem ser bons instrumentos de formação política?
Claudia Santiago – Ah! Se o cinema não existisse, acho que nem estaria viva. Vou ao cinema no mínimo duas vezes por semana. E eu não gosto muito de ver filmes em casa. Vejo, mas gosto do ritual de me arrumar, vestir roupa bonita e ir para o cinema. A vida sem arte não é vida. E Lenin dizia que “De todas as artes, o cinema era a mais importante”. O cinema fala com a multidão. Sim, entrei para o movimento cineclubista como militante do PCB, em 1982, 1983. Afastei-me em 1988, mas nunca deixei de promover cineclubes.
Até na minha casa eu promovia sessões de cinema. Deixei de fazer depois da morte de Vito. Aí ficou mais difícil. Mas com meus alunos, não parei. Procuro sempre ir com os alunos do curso de comunicação popular do NPC ao cinema. No ano passado vimos juntos “Menino 23”, que trata de uma das ramificações do nazismo no Brasil e o projeto das elites econômicas de “branqueamento da população”. Empresários
integralistas e nazistas levaram 50 meninos órfãos do Rio de Janeiro para dez anos de escravidão em Campina do Monte Alegre, em SP. A maioria dos meus alunos é negra.
Em 2017, vimos juntos “O jovem Marx”. Não concebo formação sem cineclube. A partir de 2018 vai funcionar um cineclube no Espaço Gramsci. E o projeto Domingo é Dia de Cinema, em parceria com o
Grupo Estação Botafogo, volta a acontecer em 2018. Uma vez por mês, aos domingos, são exibidos filmes seguidos de debates para alunos de pré-vestibulares comunitários. Reunimos, em média, 300 jovens por sessão.