Por Emiliano José*
Da Carta Capital
Estava lendo César Aira e seu As noites de Flores, romance que revela com sensibilidade, em tom de quase fábula, a vida urbana de Buenos Aires.
A população estava amedrontada, e não era para menos. O meio através do qual o medo fluía era a televisão, que ultimamente havia feito da criminalidade seu assunto exclusivo.
Não faz tanto tempo, esses dias, estava à frente da televisão, distraído, passando os olhos de canal em canal. E tudo era criminalidade. Bandidos. Violência. Sangue. Mortes. Prisões. Helicópteros comandados por policiais sobrevoando São Paulo. Pessoas sendo presas na Bahia. Medo. Quem estivesse em casa certamente levantaria as mãos aos céus por estar vivo, e em segurança – talvez, é, talvez em segurança porque, de repente, algum bandido…
Pensei no quanto se constrói o medo. De como ele vai se avolumando para além de seus contornos reais que, convenhamos, não podem ser ignorados, mas, convenhamos também, não podem ser levados a extremos que nos afastem tanto do mundo real.
O medo, no mundo urbano, especialmente nas grandes cidades, paira como um espectro paralisante, e é superdimensionado minuto a minuto pela mídia, especialmente pela televisão e pelo rádio, que fazem do crime seu assunto exclusivo.
Se acreditarmos em tudo que se diz na televisão, especialmente na televisão aberta, e em alguns programas de rádio, a vida em comunidade nas grandes cidades está definitivamente condenada. E estaremos sendo convidados, aqueles que podem, a nos agruparmos em condomínios fechados de variada natureza. Adeus vizinhança, cordialidades cotidianas, bom dia, como vai, o pão da padaria. Cada um cuide de si. Nesse sentido, quem sabe, a construção cotidiana do medo cumpra uma função.
O medo é funcional à ideia de uma nova e assustadora cidade. Que surge quase que como antítese mesmo à ideia de cidade, de convivência, de fraternidade, de solidariedade, do fortalecimento dos laços de vizinhança. A nova e assustadora cidade é gerida quase que exclusivamente pelo capital, pelo mundo privado.
Ouvi isso, esses dias, não faz muito tempo, da arquiteta e professora da UFBA, Ana Fernandes, de um jeito muito mais completo. Não do medo, de que ela não tratava, mas dessa nova e assustadora cidade. Discorria especialmente sobre a tragédia de Salvador, à beira do colapso e entregue apenas aos interesses privados por conta de uma administração que abriu mão de governar, e entregou os destinos da cidade ao deus-dará.
Minha preocupação aqui nesse texto, no entanto, é mais sobre esse jornalismo que ganha mais e mais corpo, essa estranha (e será que é estranha?) cumplicidade entre polícia e jornalismo. Nas minhas andanças de telespectador, zapeando à procura de algum programa que atenda minhas expectativas, vejo o quanto essa tendência se acentua, o quanto a ligação entre a polícia e o jornalismo se acentua. Não seria o caso de pensar que cada qual devia ficar no seu cada qual?
Comandante, o senhor acha que o helicóptero chegará a tempo de localizar os bandidos? O repórter pergunta angustiado e ouve logo o comandante, é isso, comandante, responder que está fazendo tudo para chegar a tempo. Não sei se vocês sabem, dirá o repórter todo pressuroso, que só oficiais podem comandar helicópteros, oficiais da nossa briosa Polícia Militar.
Penso aqui comigo se não estou sendo injusto com a Polícia Militar, ou com policiais, cuja missão, sei bem, é espinhosa. E sei que não. Apenas repito: não seria o caso de pensar em cada qual no seu cada qual?
Esse é um lado dessa ligação polícia-jornalismo. O outro, subtendido, penso, é o da linguagem. Quem contamina quem? Inegavelmente, a linguagem policial, e não se queira culpar a polícia, invade a seara jornalística com força impressionante. É o jornalismo que toma de assalto todo o vocabulário, quase dialeto, policial. Ou que é tomado por ele.
O jornalismo torna-se policialesco. Os meliantes, os bandidos, o indivíduo, o vagabundo, a viatura, dar um bacolejo, os guerreiros da lei e da ordem. E tudo se converte numa lei de Talião, olho por olho, dente por dente. Não seria melhor cada qual no seu cada qual?
Mas, há ainda outro aspecto, e delicado. No meu zapeamento, deparei-me com cenas deprimentes, desrespeitosas com o ser humano, dessas que nos deixam indignados se alguma sensibilidade nos restar. Alerto logo de cara: o sujeito preso, se já está preso, deve ser respeitado. A lei, e pode ser qualquer criminoso, deve valer sempre, para a punição e para a proteção dos direitos do prisioneiro.
Lembro, antes de continuar, do protesto de nossa imprensa quando da prisão de alguns criminosos e criminosas de colarinho branco e do uso de algemas sob o governo Lula. Para branco e rico, algemas não podem e prisões são sempre discutíveis. Para negro e pobre, tudo vale, e os aplausos são constantes.
Pois é, com negro e pobre tudo é permitido. Não haveria uma regra quanto à exposição de pessoas presas, uma lei que limitasse tal exposição? Quando se trata de negro e de pobre é permitida a exposição mais obscena, degradante? E não se trata sequer de a polícia perguntar, que no curso das investigações isso é tarefa dela.
Trata-se, e isso é do cotidiano, de o repórter perguntar ao preso se ele estuprou a sogra, se matou a vítima, se roubou a garota, se espancou o velho, se roubou as jóias.
Outro dia, e não faz tanto tempo, assisti a uma reportagem em Salvador, televisão aberta, sobre a prisão de algumas dezenas de jovens, negros, do Pelourinho, todos suspeitos em princípio. O que pode ser uma tarefa policial necessária, que não cabe discutir aqui. O que me impressionou foi ver a fila de prisioneiros, e o repórter, não me lembro se homem ou mulher, perguntar a um por um, acintosa e agressivamente, o que ele tinha feito, que crime havia cometido.
E mais grave: como alguns escondiam o rosto com suas camisas, ela ou ele abaixava agressivamente a camisa do preso e o forçava a mostrar o rosto. Era mais real que o rei. Fazia mais que os policiais, ultrapassava os limites da lei, e desrespeitava claramente os direitos humanos. Se investia de poderes que não tem, ou assumia de vez a condição de policial, numa inversão completa de papéis, ou numa confusão absoluta de papéis, ou numa consolidação orgânica da ligação polícia-jornalismo.Aonde vamo
s chegar, não sei. Preocupante, sei que é.
Jornalista é jornalista. Polícia é polícia. A sociedade lhes confiou missões bastante distintas. Se fiz perguntas ao longo do texto, o fiz como Julio Cortázar, em seu Cartas a Mamãe, onde ele, por várias vezes, diz, quando “se pergunta” – “não era uma pergunta, mas como dizê-lo de outro modo?” Eu não estava sabendo dizer de outro modo quando perguntava se cada um não devia ficar no seu lugar, exercendo criteriosamente, com responsabilidade-cidadã, a missão que lhe foi confiada.
O jornalismo devia cobrir o trabalho da polícia, por evidência. Ver aquilo que ela faz de correto, denunciar o que faz de errado. Destacar os seus acertos, evidenciar os seus erros. E nunca confundir-se com ela, sair em missões conjuntas, acompanhando-a em incursões dentro dos carros da polícia, como tem ocorrido com tanta freqüência. Numa circunstância dessas, ela nunca poderá cobrir um acontecimento com isenção. A polícia sempre terá razão. E nem sempre ela o tem.
Eu preferiria um jornalismo que não estimulasse tanto a violência e o medo. Que fizesse a cobertura do trabalho policial, e não que se convertesse em polícia. Preferiria um jornalismo que buscasse, lutasse obstinadamente pela verdade. Será que é pedir muito? Será ingenuidade?
Não seria o caso de cada um ficar no seu cada qual? (não era uma pergunta, mas como dizê-lo de outro modo?)
* Emiliano José é jornalista, escritor, doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia. www.emilianojose.com.br