[Rosângela Ribeiro Gil | NPC – SP] Não nos faltarão exemplos para corroborar a definição do professor titular do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), Luis Felipe Miguel, de que a imprensa brasileira, comercial e partidária, faz hoje um “jornalismo vagabundo”. Eu diria mais: essa imprensa está com as mãos sujas de sangue. A “ficha corrida” dessa mídia é enorme, nem todos os presídios existentes no País dariam conta para tantos crimes. Mas citaremos um caso, bem recente inclusive, que mostra a que estão dispostos quem hoje está em frente a câmeras de televisão ou escrevendo seus textos ou artigos em jornais e revistas.
Todos sabemos que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Teori Zavascki, relator da Lava Jato, foi morto em acidente aéreo no dia 19 de janeiro último. Na manhã do dia seguinte, em telejornal da Globonews, ouviríamos da boca da jornalista Thais Herédia a seguinte “informação” (?): “Claro que a morte do Teori Zavascki também está na mesa dos investidores, eu conversei com vários analistas e gestores de fundos de investimentos, tenho falado com eles desde ontem, e é uma análise bastante fria, porque é uma análise que leva em conta o risco, o custo e o preço dos ativos financeiros que estão sendo negociados agora. A análise é fria porque ela leva em consideração que a morte do ministro Teori Zavascki atrasa toda a avalanche que seria causada pela homologação das delações, a famosa delação do fim do mundo e isso daria mais tempo ao governo do presidente Michel Temer, e à equipe econômica, que carrega uma grande credibilidade a continuar tocando coisas da economia, e abre também espaço para que a reforma da Previdência avance mais.”
Com a palavra Luis Felipe Miguel, que também nos agraciou com a sua presença no 22º Curso Anual do NPC, realizado em novembro de 2016, no Rio de Janeiro.
O jornalismo brasileiro está em decadência, é um jornalismo vagabundo, palavras suas. Como essa imprensa consegue ainda se disfarçar e casar credibilidade aos seus produtos?
Luis Felipe Miguel – O jornalismo brasileiro abandonou a ideia de parcialidade. Tradicionalmente ele ainda se vende como um discurso imparcial sobre o mundo, que o apresenta tal como ele é. Hoje isso é impossível no jornalismo do País. Hoje temos um jornalismo que constrói a sua relação com o público com base numa visão maniqueísta. É a ideia de que o mundo está separado entre o lado bom e o lado mau, não existe possibilidade de neutralidade diante dessa luta. O jornalismo busca mostrar que está do lado do bem. Isso significa que não existe mais espaço de debate, sempre existe a verdade e o erro; o bem e o mal. Qualquer forma de desacordo é sempre vista como uma falha moral, algo a não ser debatido, mas combatido.
Avalio que temos um processo de decadência acentuada do jornalismo brasileiro. O conflito político ficou mais agudizado nos últimos tempos, fazendo com que esse jornalismo tomasse parte e partido. Além disso, existe uma dificuldade de financiamento, de entrada de recursos, principalmente a partir da concorrência das novas tecnologias da informação. Jornais e televisão estão tendo uma crise de financiamento muito forte, não conseguem se financiar com assinantes ou leitores, ou com anunciantes; e passam a servir de instrumento para agentes políticos.
Se a gente tem na história do jornalismo a ideia que o jornalismo partidário cede espaço para o comercial – que é exatamente quando ele se coloca sob o manto da imparcialidade – agora o jornalismo comercial volta para uma posição claramente partidária.
O senhor faz uma linha do tempo da história do jornalismo brasileiro acompanhando vários processos eleitorais do País pós-regime militar de 1964.
Luis Felipe Miguel – Acredito que a gente tem do final do regime militar até a primeira eleição do Lula [2003] um processo em que as formas de influência do jornalismo nos pleitos são menos abertas e mais contidas e próximas do que é o padrão nas democracias liberais. Se tivemos em 1982, no Rio de Janeiro, a Rede Globo participando de esquema para fraudar o resultado das eleições, em 1989 não é mais fraudar, mas manipular abertamente as decisões do eleitorado; em 1994, a campanha do Fernando Henrique é feita de uma maneira disfarçada como campanha do Plano Real; em 1998, já temos praticamente o esvaziamento da cobertura eleitoral para a reeleição de Fernando Henrique Cardoso; em 2002, chegamos ao momento em que sem apoiar de uma maneira aberta candidato A, B ou C, o que os meios de comunicação fazem é exigir de todos os candidatos compromisso com determinadas políticas econômicas e manutenção de certas vantagens para grupos. Isso é o que a imprensa capitalista faz, ela tem lado, mas age de uma maneira menos partidarizada, mas mantendo um consenso a favor do sistema. É o bom, não é, mas é uma forma mais civilizada de intervenção.
Só que a partir da primeira metade do governo Lula isso muda. E a imprensa brasileira volta a fazer uma intervenção muito partidarizada, muito contrária, na verdade, ao Partido dos Trabalhadores e aderindo novamente a formas de manipulação muito evidente da informação, ocultando determinadas informações, criando factoides exagerados e apresentando mentiras no noticiário. Recuamos para uma forma muito agressiva de manipulação da informação.
A isso eles preferem chamar de “liberdade de expressão”.
Luis Felipe Miguel – Os meios de comunicação empresariais tendem sempre a usar o discurso da liberdade de expressão para dar a eles a liberdade de falarem sozinhos e da forma que quiserem. A gente não pode ter nenhum tipo de controle do que está sendo divulgado porque seria “ferir” a liberdade de expressão. Se a gente olhar a própria tradição do pensamento liberal, a liberdade de expressão é pensada como um direito do público. Ela existe para que o público tenha acesso a uma diversidade de visões de mundo, de discursos e possa, em contato com essa diversidade, construir o próprio pensamento.
O que temos nos países com a mídia monopolizada, como é o caso do Brasil, é que essa diversidade não existe. A pretensa liberdade de expressão dos meios fere o direito das pessoas serem informadas de uma maneira plural. Portanto, é na defesa da liberdade de expressão que a gente precisa democratizar a mídia, que a gente precisa criar canais alternativos e impedir esses monopólios e oligopólios da informação.