O Boletim Quinzena foi criado em 1986 pelo então Centro de Pastoral Vergueiro (CPV), de São Paulo, uma instituição que funcionava como uma espécie de arquivo para os movimentos sociais. Lá foi o destino, por exemplo, de documentos de militantes perseguidos durante a ditadura militar. O professor de Comunicação Comunitária e Popular da Universidade Estadual de Londrina, Rozinaldo Miani fez o resgate da história do Boletim Quinzena.  

Segundo ele, o periódico tinha a função clara de instrumentalizar com o apanhado de notícias que publicava, os movimentos populares, sindical e grupos políticos “que defendiam a perspectiva de uma transformação social e da superação da lógica capitalista”.  

O trabalho de Rozinaldo foi apresentado no Congresso de História da Mídia, realizado entre os dias 12 a 16 de maio, na Universidade Federal Fluminense. O jornalista conversou com o Boletim do NPC sobre a experiência do Boletim Quinzena e também outros assuntos. Confira a entrevista. 

Como surgiu o interesse pelo Centro Popular Vergueiro e pelo Boletim Quinzena sobre o qual você apresentou trabalho nesse seminário de História da Mídia? 

São dois aspectos. Um primeiro tem a ver com um projeto que eu já venho desenvolvendo há alguns anos que é a recuperação de algumas experiências da chamada comunicação popular e comunitária e eu tenho aproveitado alguns congressos para trazer sempre algumas dessas experiências. Para esse ano a idéia foi recuperar a experiência do boletim Quinzena. Esse é o outro aspecto, justamente o vínculo que eu tenho com o boletim e com o CPV. O CPV é uma organização que foi criada no início da década de 70 para ser um espaço de apoio aos movimentos populares, sociais, nas suas lutas políticas, nos seus trabalhos de base. Começou com um grupo de pessoas que procuraram preservar alguns documentos pessoais de militantes que tinham que desfazer dos documentos por causa da repressão, mas não queriam se desfazer definitivamente desse material, e a partir daí surgiu a idéia de ampliar essa ação e resultou no CPV.  E aí ele foi ampliando suas atividades até que passou a desempenhar esse papel de apoio às lutas dos movimentos populares. No década de 90 eu era integrante de pastoral da juventude, o centro à época se chamava Centro de Pastoral Vergueiro, era uma referência para o tipo de trabalho que a gente desenvolvia, uma atividade ligada à igreja católica mas preocupada  com a transformação social e a formação crítica da juventude. Então, o serviço prestado pelo CPV por várias vezes nós utilizamos para o desenvolvimento dos nossos trabalhos na pastoral da juventude e no movimento popular e assim que houve a criação do Boletim Quinzena, fui assinante do boletim durante muito tempo, e aí assim quando me preparava para pensar o trabalho a ser apresentado aqui, me veio a idéia de recuperar de experiência e com ela também recuperar um pouquinho da experiência do CPV. 

Você mencionou na apresentação do seu trabalho que o Boletim Quinzena reunia notícias retiradas da imprensa alternativa e comercial, como era esse processo de formação da pauta do Quinzena? 

É até um dado dos meus interesses como estudante à época, eu estudava jornalismo, um dos meus sonhos era trabalhar no CPV para produzir os materiais, dentre eles o Quinzena. Então sempre estive muito próximo do CPV por conta desses interesses, inclusive de atuação profissional. O CPV foi se tornando ao longo da década de 70 e 80 – o Quinzena foi criado em 86,  mais de dez anos desde a  fundação do Centro – uma referência para os movimentos populares, então muitos materiais desses movimentos, eram, inclusive, produzidos no CPV e outros movimentos que faziam a sua produção fora encaminhavam os materiais para que o CPV se tornasse esse espaço de documentação. Toda essa informação estava sendo centralizada no CPV, os movimentos produziam, os grupos políticos produziam, o movimento sindical produzia, as pastorais produziam e encaminhavam material para o CPV. A idéia de fazer essa informação circular é que deu origem ao Quinzena, e aí o CPV foi se profissionalizando ao longo dos anos, uma equipe de profissionais começou a trabalhar na equipe de produção do Quinzena e a seleção de pautas era baseada na escolha entre os integrantes da produção do boletim, procurando garantir como um critério a pluralidade. Se acompanharmos as edições nós vamos perceber de fato essa pluralidade. Com relação às matérias que eram extraídas da imprensa burguesa, o CPV tinha as suas assinaturas porque também era importante acompanhar o que a imprensa burguesa falava dos movimentos, ou os intelectuais que defendiam os interesses dos movimentos que falavam na grande impr

ensa, como aquilo também poderia ser disseminado. 

Tentando pegar um exemplo de hoje para compreendermos o Boletim: na grande mídia a imagem do MST é muito ruim, esse tipo de reportagem que criminaliza o movimento entraria ou não no Boletim Quinzena? 

Algumas matérias apareciam mais para a reafirmar os interesses dos movimentos,  até cheguei a acompanhar algumas matérias que mostravam a análise feita pela imprensa burguesa sobre os movimentos. À época, por exemplo, a CUT e o PT não tinham muito espaço na mídia e quando apareciam era num tom de crítica, de desqualificação, e isso acabava aparecendo no Boletim em alguns momentos. Mas isso não era o principal, só quando havia uma necessidade muito grande de fazer uma crítica sobre a forma como os movimentos eram tratados na mídia burguesa, porque na grande maioria das vezes, o Boletim era mais propositivo em afirmar a perspectiva do próprio movimento. Então os colunistas, os autores que participavam das sessões de opinião do jornal é que geralmente apareciam nas páginas do Quinzena. 

Então o boletim era construído desde uma perspectiva contra-hegemônica, de militância também… 

Sim, para contribuir no processo da luta de classes, isso está inclusive textualmente registrado nos documentos do CPV, na edição nº 100 esse compromisso está reafirmado, até pela comemoração da centésima edição. Então, a perspectiva era essa mesma de estar a serviço da formação política, da educação popular, dos movimentos sociais, do movimento popular, do movimento sindical, dos grupos políticos, que defendiam a perspectiva de uma transformação social e da superação da lógica capitalista.  

Como o Quinzena chegava até os movimentos sociais? 

A forma de aquisição do boletim era por meio da assinatura.  As lideranças conheciam o boletim e faziam a assinatura diretamente no CPV, com as pessoas que tinham contato com o CPV, ou adquiriam o Quinzena no próprio CPV, que era um espaço muito freqüentado pelas lideranças. Elas iam até lá para produzir os materiais, para buscar a infra-estrutura que o CPV oferecia, então já aproveitava e adquiria o boletim. Em alguns movimentos, se fazia um conjunto de assinaturas e distribuía. O fato dele ter existido durante mais de 15 anos revela que ele era um instrumento muito importante e reconhecido pelos movimentos. 

Hoje em dia você vê algo parecido com esse tipo de trabalho? 

Não. O Quinzena certamente não foi o único, ele talvez tenha sido dentro da experiência que eu conheço o mais significativo, teve uma duração muito grande, uma penetração muito grande nos movimentos, mas certamente outras experiências também de clipagem apareceram, talvez não com a mesma importância que o Quinzena. Os jornalistas de sindicato também faziam uma prática muito parecida com isso, e talvez ainda alguns o façam, mas é muito voltado para a própria categoria, para o próprio sindicato. Eu imagino que da extensão, da visibilidade, da importância, da pluralidade do Quinzena, não há nada hoje dessa maneira. A importância de uma atividade como essa está na seleção de informações para a disputa de hegemonia, isso tem que acontecer, tem que continuar acontecendo. O formato do Quinzena foi o formato que à época respondeu parcialmente a essa necessidade e nós temos que encontrar os caminhos para a atualidade, para os recursos comunicativos que temos hoje, insistir nessa tarefa, de seleção, de disseminação da informação produzida no próprio campo dos setores e movimentos populares. 

Você comentou sobre a necessidade da esquerda superar essa visão de que é necessário fazer um veículo de comunicação unitário. Pode desenvolver essa idéia? 

Eu não cheguei a fazer pesquisas, mas percebo que isso sempre esteve muito presente no imaginário das esquerdas, a necessidade de construir o jornal, o veículo unificador e tal.  Mas se você pensa na pluralidade no campo da esquerda, você inviabiliza qualquer ação pela perspectiva da comunicação. Porque experiências como essas já são natimortas, porque elas nascem na perspectiva de tentar unificar o que não se unifica. Você pode ter o projeto de sociedade mais ou menos consensual, mas os caminhos que se propõe para se chegar aquilo são diversos, então a necessidade de se pensar a pluralidade desses veículos, é a partir da idéia de que você vai proporcionando a disputa de hegemonia nas suas especificidades. Um exemplo concreto disso é o Brasil de Fato. Pretender que o Brasil de Fato congregue todas as perspectivas que os vários setores de esquerda pensam a respeito da sociedade é destruir o jornal, ele vai se tornar inócuo, sem condições de participar desse processo de disputa de hegemonia. Então,  que o Brasil de Fato continue, se amplie, se intensifique. Quem acha que do ponto de vista das idéias defendidas pelo Brasil de Fato, o jornal não contempla, mas está numa perspectiva de transformação, de luta anticapitalista, produza o seu jornal. Não é pensar o Brasil de fato como seu adversário, o nosso adversário é o outro, mas  vamos construindo essas experiências.  Então, se pensamos que a disputa de hegemonia se faz com o máximo que conseguirmos produzir de instrumentos comunicativos, melhor ainda. Porque a burguesia não fica se preocupando em ter um único veículo, ela tem mais viabilidade para emplacar um projeto, vai, faz e pronto e a gente fica tentando essa coisa que não vai resultar no fortalecimento da nossa correlação de forças no processo de disputa da hegemonia. 

E você acredita que com essa pluralidade dispersa em vários meios conseguiríamos concorrer em condição de igualdade com a mídia burguesa? 

Eu acho que a gente não tem que pensar de uma maneira muito quantitativa, estimativa, porque o fato de termos diversos veículos de comunicação em uma perspectiva de esquerda, de ruptura com o modelo capitalista, neoliberal, vamos proporcionando diversas possibilidades do público que vai receber esse jornal de pensar criticamente a sociedade em que ele está. Esse é o valor que você tem, fazer chegar o máximo possível dessa informação contra hegemônica, isso não precisa estar canalizado em um só veículo. Eu não estou dizendo que não se deve pretender o quanto máximo possível veículos que sejam mais representativos, isso pode até acontecer, agora você concentrar todas as forças nesse projeto, é isso que inviabiliza. Você pensa em fazer e não faz. Vamos fazer e com isso você vai disputando qualitativamente, porque as pessoas vão tendo contato com essa outra perspectiva, e até quantitativamente porque você vai ter mais possibilidades de participar da discussão com o público com essa perspectiva de análise. Então, quando pensamos na conquista da hegemonia, ela não necessariamente é medida pela capacidade quantitativa da nossa intervenção, quero dizer, não é que nós vamos disputar a hegemonia só se a gente tiver no mesmo patamar da imprensa burguesa, porque a hegemonia se constrói por n outros elementos. A participação da comunicação é importante, mas ela está combinada com uma série de outras ações, a ação comunicativa é uma ação no processo de disputa de hegemonia, você tem outras.  

Mas a comunicação é estratégica? 

Sim, ela é estratégica, mas vamos pensar a questão da hegemonia como uma questão circunscrita ao campo da comunicação. Se a gente tiver numericamente, quantitativamente e mesmo em termos de penetração, credibilidade junto a população, se a gente conseguir em algum momento que os nossos veículos tenham maior credibilidade, que a nossa perspectiva de análise dos fatos consiga ter maior repercussão que os da imprensa burguesa, isso não vai necessariamente estabelecer a inversão da disputa da hegemonia na sociedade. Então, são circunstâncias estratégicas que temos que investir, agora a comunicação por si só não determina isso, ela participa de um contexto que é muito mais plural, mais complexo, muito mais dialético. A gente poderia, estou especulando, implodir a imprensa burguesa definitivamente, mas espera aí! A imprensa burguesa é um instrumento das classes dominantes para estabelecer sua hegemonia, elas têm o estado, a sociedade política, as instituições de repressão. O equilíbrio se dá por n outros fatores, então, a minha preocupação é essa da gente ficar no imaginário da construção de um único veículo e isso inviabilizar o fazer, vamos fazer. Se dá para a gente fazer junto, fazemos juntos, se não dá, fazemos separados, mas vamos fazer. Se em algum momento essas experiências têm alguma condição de se juntar, elas se juntam. Não é criar a condição prévia para que a coisa aconteça. Vamos fortalecer o Brasil de fato, como um exemplo, mas se você acha que o Brasil de Fato não dá conta da sua compreensão,  não tem que destruir o Brasil de Fato, vamos continuar reforçando a experiência do Brasil de Fato, mas vamos construir outras. O que a esquerda normalmente fez foi isso: “ah, tal veículo não está atendendo, então vamos destruí-lo e vamos construir um outro”. Não, vamos fazer veículos. O espírito é esse, é difícil fazer isso porque vivemos em uma conjuntura desfavorável para produção dessas experiências, não temos muitos setores que estejam empenhados nesses projetos comunicativos, por isso que pode parecer até uma discussão um pouco estéril, mas é mais um princípio na hora de você estabelecer essa ação na disputa da hegemonia pela comunicação. 

Qual é a sua opinião sobre a obrigatoriedade do diploma para jornalista? 

Eu acho que é um assunto corporativo difícil de tratar porque o jornalismo como prática social, essa prática social tem necessariamente que ser combinada, materializada com uma qualificação técnica, isso é importante, é fundamental. Agora, o inverso também me parece bastante pertinente, o argumento que se atribui a não obrigatoriedade do diploma, porque reduzir o jornalismo a uma técnica é você desqualificar a própria prática social. Então, para você insistir na obrigatoriedade do diploma tem que ter uma contrapartida que é atuar mais na formação que qualifique a ação do jornalista como uma prática social, que consiga cumprir com a sua responsabilidade. Então, é difícil porque não dá para fazer dessa questão uma questão meramente corporativa, isso tem que ser rompido. Se ela vier combinada com uma crítica ao processo de formação do jornalismo, a uma fragmentação a um fracionamento da própria noção de classe trabalhadora simplesmente para você poder ter condições de disputar no mercado de trabalho numa condição mais favorável, não é esse o mecanismo que tem que ser mobilizado para se fazer essa discussão. Não é somente você defender o diploma ou não porque faz um curso de jornalismo. O problema está também nas condições de oferta desse curso de jornalismo, o que ele forma, como ele forma, para quem ele forma. Então, percebeu que eu fui tangenciando a coisa? Não é uma defesa intransigente do diploma nem contra o diploma porque eu acho que ele precisa ser avaliado em um conjunto que é maior, maior do que meramente uma condição binária: o sim ou o não.  

Até porque o papel pelo papel não serve de nada… 

Exatamente, e o que adianta essa discussão no plano conceitual se na prática você verifica muitos profissionais, muitos jornalistas formados que não atuam no jornalismo e inversamente muitos que fazem um jornalismo e não tem formação. Quando você vai para o universo das empresas de comunicação há um controle maior, as empresas contratam quem está formado e tal, mas jornalismo não é só das empresas, jornalismo é produção, o jornalismo como prática social está aí no cotidiano, a gente produz, a gente dissemina informação, elabora informação, o universo da Internet é um universo pleno de produção de informação e não são só jornalistas que estão ali. A discussão passa a ser também minimizada pela própria realidade. A realidade é de que se produz algum tipo de jornalismo e nem se coloca o debate em torno do diploma ou não. Agora, sou professor de jornalismo e estou participando do processo de formação. Se você entra em sala de aula e o aluno está ali pela motivação de se profissionalizar e a profissionalização que lhe garanta algum espaço no mercado de trabalho e para isso o diploma é uma condição fundamental, então você se vê diante de uma situação que é bastante problemática, inclusive para afirmar de maneira nua e crua que diploma é fundamental. 

Mas às vezes até essa concepção do mercado de trabalho é muito restrita, os estudantes geralmente pensam que o único caminho é trabalhar nas grandes empresas de comunicação, mas a sua trajetória mesmo enquanto jornalista mostra o contrário, né? 

Sim. Eu nunca passei por uma empresa da imprensa burguesa e sempre atuando como jornalista. E aí é que está, essas situações da prática também te revelam uma série de coisas. A formação técnica que eu tive para jornalismo na minha experiência não foi suficiente para eu atuar com o tipo de jornalismo que eu iria atuar [imprensa sindical], então para que eu pudesse compensar uma deficiência na minha formação eu fui fazer um outro curso, fui fazer história. E se eu tivesse feito só história, eu teria condições de exercer a atividade de jornalista?  Talvez também não, a minha experiência diz que eu precisei dos dois cursos, acho que a questão passa mais pelos processos de formação e a discussão do diploma é a discussão corporativa. E aí para você enfrentar uma discussão que é corporativa, você abre guarda do corporativismo, você também fragiliza, “ah todo mundo exige que tem que ter diploma porque que eu não”. Fazendo uma comparação de outra ordem é mais ou menos como atuam os Estados Unidos, exigem que os mercados latino-americanos se abram para o comércio livre e tal, mas o deles está fechado. Você fragiliza o do outro, mas restringe o seu, então se a gente abre o espaço para atuação de outros profissionais, de outras áreas, sem o diploma, você também fragiliza a condição de se colocar como um grupo mais articulado que pensa a sua atividade profissional. A minha resposta foi mais uma colocação de vários elementos do que propriamente uma resposta.

Por Raquel Junia