Por Camila Araujo (NPC)
Desde as eleições presidenciais de 2014, o país observou uma série de manifestações conservadoras proliferarem por toda a parte do Brasil e até fora dele. Discursos de ódio começaram a ter nome, sobrenome, endereço e hora marcada. A direita começa a assumir-se como tal e sai do armário, sem qualquer pudor. Frases como “bandido bom é bandido morto”, criminalização do Islã em escala global, genocídio da população negra aos moldes da guerra na Síria e violência escancarada contra mulher – legitimada, ainda, por políticas que retiram direitos no Congresso brasileiro. Para o jornalista José Arbex Junior, a sociedade civil encontra-se numa encruzilhada. Ele afirma que a humanidade passa por uma cisão e está dividida pelo capital, que defende apenas seus próprios interesses.
O que o Brasil e a Síria têm em comum?
A guerra na Síria é considerada a guerra mais violenta do mundo: matou 250 mil pessoas em quatro anos, o que dá uma média de 60 mil por ano. Você vê, mas a mídia não te deixa lembrar. No Brasil, esse é o mesmo número de pessoas mortas à bala nas periferiras de São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e vários outros estados do país. Tem algo muito errado aí, porque apesar de ver tudo isso, você não consegue enxergar que no Brasil, existe uma Síria. O pior é que se for ver a natureza dessas mortes, verá que 70% das pessoas assassinadas são jovens negros que têm entre 15 e 30 anos de idade. Ou seja, o Brasil produz uma eliminação sistemática da juventude negra. É um genocídio bárbaro, mas não é mostrado como tal, não é apresentado como tal e não é enxergado como tal pelos brasileiros. Isso porque a mídia conservadora produz uma narrativa que oculta essa realidade.
O que você chama de “cisão da humanidade”?
Nunca a humanidade produziu tanto alimento. Mas ainda hoje, cerca de 800 milhões de pessoas passam fome no mundo. Como é que se explica? É que o capitalismo faz: ele usa a tecnologia para a produção de alimentos, só que ele não está produzindo alimentos, ele está produzindo mercadoria na forma de alimentos. Significa o seguinte: você não pode pegar a comida e comer, você tem que pagar por ela. A fome é resultado da pobreza, ou seja, se você não tem dinheiro, você não vai comer. O capitalismo usa a tecnologia, conquista grandes resultados (está mandando o homem para lua, para Marte, para a estação espacial, é fantástico) só que isso, ao invés de ir para o bem da humanidade em geral, vai para o bem estar de meia dúzia de pessoas, que tem lucro e o resto da humanidade cada vez mais pauperizada. É isso que Marx fala, o capital pressionado pela necessidade de lucro e pela ganância, transforma forças produtivas em forças de destruição. É isso que está acontecendo.
No caso dos islâmicos, por exemplo, que são hoje criminalizados, nós estamos falando de um bilhão e meio de seres humanos. E aí você pergunta: mas por que eles estão sendo criminalizados? Bom, se você for ver onde está a maior densidade islâmica do mundo, vai ver que é no Oriente Médio, uma área riquíssima em petróleo; na África, riquíssima em biodiversidade, petróleo, em minerais como diamante, ouro etc. Em todos esses países você tem uma maioria islâmica que está sendo humilhada, trucidada, dominada e bombardeada, tudo isso sustentado por um discurso da eclosão que pintam o Islã como o criminoso, o terrorista. Há um interesse claro por trás disso.
Atentados terroristas em Paris: na sua opinião, o que motivou?
Pra mim está muito obscuro. Porque justamente no momento que os governos de direita europeus afirmam que vão proibir a entrada de imigrantes, acontece esse atentado. Quer dizer, facilitou muito a tarefa dos governos de extrema direita, facilitou tanto que eu acho bastante estranho esse “coincidir”. Por que justamente nesse momento esse atentado aconteceu? Para facilitar a retórica contra os imigrantes, é isso?
O Obama bombardeou um hospital do Médicos Sem Fronteiras em outubro do ano passado. Não me consta que o Obama está preso. Os europeus estão bombardeando a população civil do Oriente Médio. Quem é que deve ser responsabilizado pela morte de mais de mil mulheres naquela região do Paquistão, onde foi atacada a Malala Yousafzai pelos drones do Obama? Esses caras não vão ser presos nunca? Então, quem são os terroristas? Por isso a retórica do terror é muito complicada. Ela serve para criminalizar o Islã e fazer um sinonimo entre Islã e terrorismo. E isso é muito complicado porque você colocando sob suspeita um bilhão e meio de seres humanos.
O que está sendo disputado pelas potências mundiais na Síria?
Em primeiro lugar o controle direto do petróleo. Em segundo, impor uma ordem mundial que diz claramente o seguinte: se eu estou interessado no seu país e você me resistir, eu vou bombardear o seu país. Portanto, coloque-se no seu lugar e obedeça às minhas ordens. É o mesmo que estão fazendo hoje na África, junto com os chineses. É o que eles já fazem no Oriente Médio e é o que estão fazendo na Amazônia com as grandes madeireiras, com a construção de Belo Monte. A mensagem é “dane-se o meio ambiente, danem-se as populações locais: ou nós compramos tudo ou nós arrebentamos tudo. E você vai ter que ficar calado vendo o que a gente vai fazer, se não nós vamos bombardear.
Diante desse cenário, como reagir e lidar com essa cisão?
Eu acredito que nós tenhamos que fazer um discurso não ideológico. Um discurso no seguinte sentido: ou a gente une forças para combater o capital, a destruição do meio ambiente, a matança de mulheres, a matança de negros e tudo mais que a gente vê hoje, ou nós vamos ser massacrados. Independente do partido que for, da frente que for, da religião que tiver, do time ao que se torce, enfim. A gente tem que se unir. Em maio de 2013 ninguém esperava que em junho teriam 2 milhões de pessoas em protesto na rua. Então, quando alguém vem fazer um discurso para mim que já parte do pressuposto ideológico, no sentido de “eu estou certo e o resto do mundo está errado”, eu digo que “está certo” e nem discuto. Apenas questiono: “tem um negro morrendo hoje no seu bairro? O que nós vamos fazer em relação a isso?” E é nesse nível que eu converso.
*José Arbex Jr. é editor especial da revista Caros Amigos, doutor em história social pela Universidade de São Paulo (USP) e professor de jornalismo na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Possui formação política de esquerda e é autor de mais de 20 livros, entre eles Showrnalismo – A Notícia Como Espetáculo (2001, 2002, 2005) e O Jornalismo Canalha (2003). Durante os anos de 1980 e 1990, trabalhou no jornal Folha de S. Paulo e, em 2003, foi editor-chefe do Brasil de Fato.