A televisão pública ideal para o Brasil deve ser independente economicamente, tanto do Estado, quanto da publicidade, e garantir sua existência independentemente dos humores dos governantes do momento. Essa TV precisa conquistar seu espaço e competir – sem obsessão por audiências – com as emissoras comerciais e conseguir tirar a população da condição de refém do modelo dominado pelo marketing. Assim é a televisão pública idealizada por Laurindo Leal Filho (Lalo), cientista social, doutor em Comunicação, apresentador na TV Brasil do programa “Ver TV”, entrevistado deste e-Fórum.
Para Lalo, o entretenimento deve ser um dos pilares da programação na televisão pública, que precisa ainda informar e capacitar o telespectador para ter suas próprias ideias. “O dono da verdade deve ser o público e não a emissora”, afirma. Leia a seguir.
Como o senhor define “TV pública”, considerando a realidade e as necessidades brasileiras?
Lalo Leal – No Brasil, é imperiosa a necessidade de uma televisão pública nacional forte, capaz de competir em pé de igualdade com as emissoras comerciais. Infelizmente, adotamos aqui o modelo de exploração privada da radiodifusão desde o seu início, sem abrir espaços para alternativas. Isso fez com que a população brasileira ficasse refém de um modelo único, cuja finalidade primordial é a realização de lucros para os seus controladores.
Descartou-se a ideia da prestação de um serviço de radiodifusão voltado para a ampliação do conhecimento, do incentivo ao espírito crítico e da ousadia na criação de formatos e conteúdos audiovisuais, entre outras características inerentes ao modelo público de rádio e TV.
No caso específico da televisão, é importante que ela, ao prestar esse tipo de serviço, crie um novo público capaz de exigir também das emissoras comerciais produções de melhor qualidade. Com isso, a TV pública não só cumpriria a sua missão específica, como também contribuiria para a melhoria de todo o conjunto da televisão brasileira.
Qual seria o papel do Estado/governo na TV pública que o senhor idealiza?
Lalo Leal – Ao Estado, acima dos governos, cabe a tutela institucional desses empreendimentos, na medida em que são eles os detentores das respectivas titularidades. Cabe, igualmente, impulsionar essas iniciativas oferecendo as condições institucionais e materiais básicas para o funcionamento desse tipo de emissora.
Assim como devem alocar recursos para a saúde, a educação e a cultura, os governos têm também a obrigação de investir na televisão pública. Ainda mais no Brasil, onde ela é, para a maioria absoluta da população, a única fonte de informação e de entretenimento. Nesse sentido, a TV Pública torna-se peça importante no aprimoramento da democracia, na medida em que pode oferecer visões de mundo além daquelas determinadas pelo mercado.
Quanto ao controle, a presença dos governos nos conselhos gestores é importante na medida em que os titulares dos cargos executivos têm o respaldo da sociedade obtido pelo voto. Mas para dar conta da ampla diversidade cultural existente nos pais, é igualmente importante a presença nos conselhos de representantes da sociedade, indicados por ela, em processos abertos e democráticos.
Quem deve financiar uma TV pública (além do Estado) e qual seria o mecanismo adequado? Ele incluiria a veiculação de anúncios pagos?
Lalo Leal – O modelo ideal é o do financiamento autônomo das emissoras públicas, capaz de torná-las independentes tanto do Estado como da publicidade, como ocorre em alguns países europeus onde as emissoras são mantidas exclusivamente pelas taxas pagas pelos telespectadores.
No caso brasileiro, acredito que não exista cultura nem condições materiais objetivas para que grande parte da população possa assumir mais esse encargo. Dessa forma, o ideal seria a existência de uma cesta de fontes de financiamento capaz de evitar a dependência excessiva da emissora em relação a apenas uma delas.
Sem dúvida, caberia ao Estado a fatia maior, mas a ela poderiam ser acrescentados recursos de doações e de apoios culturais a programas e programações, por exemplo. Mas propaganda, de forma alguma, descaracteriza a linguagem da emissora e a coloca no mesmo plano das empresas comerciais de comunicação ao passar a disputar, com elas, o mercado publicitário, com o inevitável rebaixamento da qualidade da programação. Quando isso ocorre, o departamento de marketing passa a ter mais poder do que os setores de produção da emissora, impondo critérios de mercado em detrimento da prestação de um serviço público.
Trata-se de criar uma nova rede de TVs ou de tentar transformar a rede atual, controlada pelo Estado?
Lalo Leal – Acredito que, no plano nacional, a TV Brasil está se constituindo na espinha dorsal da nova rede. Falta ainda a universalização do seu sinal para que a programação por ela produzida possa chegar, com alta qualidade técnica, a qualquer parte do país.
Além disso, diante das dimensões territoriais brasileiras e da sua diversidade cultural, o ideal seria que houvesse, além de um canal nacional, canais públicos regionais e locais. E mais ainda, que pelo menos a emissora nacional pudesse emitir, no mínimo, três programações diferenciadas por três canais independentes: um apenas com programação para crianças, outro exclusivamente de notícias e um generalista para todos os gostos. Por que não? Tecnologia, recursos humanos e financeiros existem, resta acioná-los.
A TV Cultura de SP, referência no Brasil, enfrenta grave crise. Estamos perdendo um modelo de TV pública no país?
Lalo Leal – Crise na TV Cultura de São Paulo não é novidade. Em meados da década de 1980, publiquei um livro (Atrás das Câmeras – Relações entre Cultura, Estado e Televisão. Ed. Summus, SP) sobre essa emissora onde analisava as crises ocorridas desde a sua inauguração, em 1968. De lá para cá, nada mudou.
Apesar de ser mantida por uma fundação de direito privado, portanto imune à intervenção estatal, a TV Cultura vive sempre sob pressão dos governos de turno do Estado de São Paulo. Ainda que formalmente autônomo, o Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta é muito submisso às imposições dos governos do Estado e muito distante da sociedade. No entanto, não acredito que o modelo esteja se perdendo.< /p>
Na minha opinião, ele pode ser mantido e aprimorado. Começando, por exemplo, com a ampla divulgação dos nomes e dos contatos de todos os conselheiros da Fundação Padre Anchieta e das suas disponibilidades de horários para o atendimento do público. Afinal, eles não são os representantes da sociedade? Para exercer essa tarefa, o requisito número um é ouvir os seus representados.
Qual seria o tipo de programação ideal para uma TV pública? Deveria abdicar de transmitir novelas, por exemplo?
Lalo Leal – Não. O entretenimento deve ser um dos pilares da programação de uma TV pública e nele a dramaturgia deve ter um papel central. Por que não levar ao ar séries teatrais baseadas em clássicos da literatura universal contando com os recursos cenográficos e técnicos consagrados pelas novelas?
A programação deve ser atraente, construtiva, de bom nível, que dê conta de toda a riqueza cultural produzida no país. Sem obsessão por altas audiências, mas também sem desprezá-las. Buscando atender aos mais variados gostos do público, dentro de padrões éticos e estéticos elevados. “O serviço público de rádio e televisão deve tornar o popular respeitável e o que é respeitável popular”, resumia Alasdair Milne, diretor geral da BBC nos anos 1980.
Para deixar tudo isso mais claro, dou exemplos de como seria parte da programação de uma rede pública. Deve, por exemplo, resgatar os programas musicais de qualidade, exibindo-os no horário nobre, na faixa das 20h, concorrendo diretamente com as novelas e os telejornais das emissoras comerciais. Aliás, a música já foi, em outras épocas, o carro-chefe das programações das grandes emissoras brasileiras. Hoje ele é apêndice dos interesses das gravadoras.
No domingo à tarde, por exemplo, quando o público brasileiro está acostumado a ver programas de auditório – sempre os mesmos, a mesma coisa – é possível fazer um programa agradável, estimulante, sem cair na baixaria. A TV Bandeirantes colocou no ar o programa É tudo improviso, feito por um grupo de teatro que trabalha com humor de alto nível. Esse grupo numa TV pública, num domingo à tarde, estaria conquistando telespectadores desses programas de variedades para um outro nível de produção artística e até levando gente ao teatro e à música mais elaborada.
Outro exemplo seria o da rede tendo como missão dar ao público um cinema de bom nível, nacional e estrangeiro, exibido sem intervalos. Algo que alguns canais a cabo já fazem para poucos privilegiados (menos de 10% da população brasileira). Para não falar da necessidade de uma programação infantil sedutora, com conteúdo educativo, mas sem loiras, prêmios ou merchandisings. E um jornalismo crítico e independente, capaz de oferecer ao telespectador informações que o habilite a tomar, ele próprio, suas decisões. O dono da verdade deve ser o público e não a emissora.
O Brasil, infelizmente, é uma das poucas grandes democracias do mundo que não exibe debates políticos na TV como rotina. Eles surgem, como raios em céu azul, às vésperas das eleições, completamente engessados. Dá inveja ver, por exemplo, os programas de debates políticos regulares na TV argentina ou os debates sobre os temas do dia, toda a noite, na TV britânica.
Se um dia a TV pública brasileira atingir essas metas, estaremos dando um salto de qualidade nunca visto em nossa televisão. Aproximando-a do modelo britânico, reconhecido como o melhor do mundo. E que tem como um dos seus objetivos “despertar o público para ideias e gostos culturais menos familiares, ampliando mentes e horizontes, elevar a qualidade de vida do telespectador, em vez de meramente puxá-lo para o rotineiro com programas concebidos como uma forma de capacitar o telespectador para uma enriquecedora experiência de vida. Parece sonho não? Mas sem ele, estaremos condenados à mediocridade.
Quais são as perspectivas para a TV pública brasileira, considerando as mudanças que ocorrerão nos governos federal e estaduais?
Lalo Leal – O ideal seria que não houvesse mudança nenhuma. Que as emissoras seguissem suas vidas independentemente dos humores dos governantes do momento. Sei que isso é difícil por aqui. A ameaça, já superada, de uma vitória da oposição a nível nacional colocaria em risco o projeto da TV Brasil. Daí a necessidade da criação de mecanismos de controle e financiamento estáveis para todas as TVs públicas como forma de blindá-las contra qualquer tentativa de retrocesso.
Laurindo Leal Filho – Cientista social, doutor em Ciências da Comunicação pela USP e pós-doutor pelo Goldsmiths College da Universidade de Londres. Publicou os livros “Atrás das Câmeras, relações entre Estado, Cultura e Televisão”. “A melhor TV do mundo, o modelo britânico de televisão”, “A TV sob controle, a resposta da sociedade ao poder da televisão” e “Vozes de Londres, memórias brasileiras da BBC”, além de artigos sobre cultura e comunicação, com ênfase na televisão, em publicações científicas e de divulgação.
Professor aposentado da Escola de Comunicações e Artes da USP, é ouvidor-geral da Empresa Brasil de Comunicação e apresentador do programa Ver TV, exibido pela TV Brasil e pela TV Câmara. Atuando, principalmente, nos temas: política, políticas públicas de comunicação, televisão, televisão pública, rádio e jornalismo. Foi Secretário de Esportes, Lazer e Recreação da Prefeitura Municipal de São Paulo na gestão Luiza Erundina (1989/1993).