Por Cátia Guimarães / Observatório da Imprensa
A maior afronta ao Estado de direito no Brasil não são os black blocs, como defendem os pacifistas, e nem mesmo os miseráveis embrutecidos da Polícia Militar, como costumam apontar os radicais. A instituição que mais corrói até os limitados caminhos de liberdade que a democracia capitalista pode oferecer não precisa usar máscaras nem se expor ao descontentamento das ruas. Organizações Globo: esse é o aparelho privado de hegemonia que assumiu, sem medos, o papel de recolocar o barco na direção que ele seguia antes dos abalos de junho. Mas quem leu Gramsci sabe que hegemonia é mais do que um disciplinamento artificial, que o bom resultado desse processo, para a classe que quer se manter dirigente, requer que a relação entre consenso e coerção, força e convencimento, seja razoavelmente equilibrada. Quando abusa da força – ainda que só ideologicamente –, atacando violentamente todos os indivíduos, grupos e instituições que acompanham os movimentos das ruas, o/a Globo está pondo em risco a dimensão do consenso estável.
Toda a cobertura das prisões políticas ocorridas no Rio de janeiro, mas também em São Paulo, traz evidências disso. Na edição de quarta-feira (23/7) do Jornal Nacional, William Bonner não conseguiu disfarçar a cara de derrota e desaprovação quando deu a notícia de que o desembargador Siro Darlan havia concedido habeas corpus para 23 presos políticos. Informação e cara feia, nem um detalhe a mais. Mas o último golpe de verdade, pelo menos enquanto escrevo, foi um editorial publicado no dia anterior (22/7), intitulado “Entre a liberdade de manifestação e a criminalidade”, em que o jornal O Globo diz, no espaço de opinião, tudo aquilo que ele tentou travestir de informação nas matérias que fingiu que eram jornalísticas.
Mentiras e meias verdades
O texto dá destaque ao fato de “repórteres da imprensa profissional” terem se “transformado em alvo” dos vândalos (ilustrados pelos black blocs, mas não só), lembrando, como sempre, da morte do cinegrafista Santiago Andrade. Com isso, ignora no editorial, como sempre ignorou nas reportagens, a informação da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo que mostra que 70% dos casos de agressão contra profissionais da imprensa em manifestações partiu da Polícia Militar, e não de ativistas.
O editorial informa que, “liberada parte do material colhido pela polícia nas investigações, ficou-se sabendo que poderia ter havido uma carnificina nas manifestações que programaram para o dia seguinte, o da final, na Tijuca”. Em primeiro lugar, é bom esclarecer que o material não foi “liberado”, mas traficado por autoridades do Estado brasileiro diretamente para as Organizações Globo, que tiveram acesso ao inquérito antes do desembargador envolvido no caso e antes mesmo dos advogados de defesa. Portanto, “ficou-se sabendo” pelo/a Globo algo que não podia ser contestado no detalhe simplesmente porque o sujeito oculto do/da Globo não funcionou para o direito de defesa que a democracia garante.
Até que o julgamento termine – na verdade, ele primeiro precisa começar, porque até agora só houve condenação pública – e a polícia (e o/a Globo, claro) prove que drink significa coquetel molotov, líquido significa gasolina e livro significa bomba, a “carnificina” poderia ser considerada, no máximo, uma bebedeira intelectual. Se quisesse ser sensacionalista e irresponsável como o editorial do Globo, eu diria que aconteceu, de fato, uma carnificina na Tijuca, no dia da final da Copa, só que feita pela polícia. Não foi uma carnificina, não houve “matança” ou “extermínio”, que é o que essa palavra significa, mas houve gente presa por horas numa praça pública e pessoas feridas impedidas de voltar para casa ou de seguir para um hospital. E quem fez isso foram vândalos armados e fardados, organizados numa quadrilha oficial.
O editorial afirma a adesão acrítica e unilateral às informações incompletas da polícia, que as matérias publicadas pelo jornal já tinham deixado claro. Informa que as ligações telefônicas grampeadas pela polícia e “vazadas” pelo Globo apontam conversas sobre compra de fogos de artifício e confecção de bombas. Isso é mentira. Como não temos acesso a todo material do processo, não se sabe se essas conversas existem, mas o que foi disponibilizado pelo/a Globo não contém esse conteúdo.
Em nenhuma gravação apresentada pelo “furo de reportagem” desse grupo empresarial travestido de jornalístico fala-se em nada do que o editorial cita. A única referência próxima aparece quando um dos meninos investigados comenta, com sua interlocutora, sobre o coquetel molotov que ele viu cair sobre um policial. Ele ri e comemora, é verdade. O Globo só esquece de dizer que isso (o riso e a felicidade íntima com o fato) não é crime. Logo depois das primeiras manifestações de junho, ouvi uma liderança de favela contar que a maior felicidade para os moradores de comunidade que estavam na passeata foi ver os black blocs colocarem o “caveirão” para correr. Para pessoas que vivem oprimidas por uma polícia que humilha, bate e mata diariamente, principalmente nos bolsões de pobreza desse estado, não se pode pedir sentimento cristão. Não comemorei nenhuma violência pessoal sofrida por qualquer pessoa em qualquer manifestação, mas não vou fazer julgamento moral de quem sofre a dor que eu não sofro e muito menos transformar isso em crime. Lamento pelas almas sensíveis, mas a fila da nossa sensibilidade está grande, com Amarildos, Cláudias e muitas crianças palestinas para serem choradas na frente.
Do editorial para as ruas
Por fim, o editorial volta a atacar partidos políticos e sindicatos – estes referidos como “máquinas sindicais” – citando, nominalmente, o PSOL, o Sindspetro, Sindsprev e Sepe. Acusa-os de cometerem “ilegalidade”, sendo “cúmplices de atentados” e de apoiarem “organizações antidemocráticas, contrárias à Constituição”. Critica diretamente os parlamentares do PSOL que formalizaram uma queixa contra o juiz que decretou as prisões políticas junto ao Conselho Nacional de Justiça e, numa insinuação leviana, quase lamenta que o PSOL “continue a negar” seu envolvimento, não se sabe bem com o quê.
Para qualquer leitor minimamente informado e bem intencionado, não é preciso apontar o mundo de discordâncias e turbulências entre partidos políticos e movimentos sociais combativos à participação eleitoral que o editorial do Globo oportunamente ignora. O esforço é de matar todos os coelhos com uma cajadada só mas, para nos mantermos entre os ditos populares, o tiro pode sair pela culatra.
Que os anjos digam amém e a união que o Globo promoveu transborde das páginas do jornal e se transforme em ação efetiva. Que a solidariedade em função dos presos políticos, que articulou frações muito diversas de indignados com a violência e a arbitrariedade a que chegamos, sobreviva às diferenças. Que os partidos políticos “mais à esquerda” e sindicatos não recuem, e não aceitem se defender daquilo que é – ou deveria ser – a sua própria razão de existência: a relação orgânica com os movimentos sociais organizados, com as lutas populares e com a democracia direta. Transformar em acusação a solidariedade de classe, materializada no apoio financeiro e logístico a manifestações, e o exercício efetivo da representação popular que justifica um mandato eleitoral é parte da estratégia de trazer as forças sociais para o campo de quem se coloca contra elas, sob a falsa máscara do terreno neutro da democracia, que só é convocada nessa hora para mostrar os seus limites.
O momento atual no Brasil é pedagógico em ensinar que não se pode cair na armadilha de submeter inteiramente a luta concreta à institucionalidade porque, sozinha, a institucionalidade é o terreno do outro. Não há, portanto, direito de resposta que dê conta da concretude que o editorial do Globo e todo esse ataque aos princípios mínimos da democracia representam. A resposta está nas ruas, antes, durante e depois das eleições, no Executivo, no Legislativo e, principalmente, na organização de base. O importante é saber que, em todos esses espaços, existem eles e existimos nós. O nome disso é luta de classes.
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Globo inventa novo modelo de jornalismo investigativo
No tempo em que a democracia se disfarçava de bem comum, a imprensa se disfarçava de instrumento da democracia. Como tratou-se, desde sempre, da democracia burguesa, o fato de essa imprensa ter se tornado grande empresa capitalista não era um inconveniente porque o seu grande trunfo era a independência em relação ao Estado. O argumento era que a “livre concorrência” no mercado e a liberdade de “escolha individual” – o tal poder do controle remoto – seriam suficientes para impedir que interesses particulares se sobrepusessem aos interesses da sociedade. Claro que isso nunca foi verdade, até porque, no frigir dos ovos, apesar de todas as disputas internas, o Estado é instrumento de classe e, não por acaso, da mesma classe que a grande imprensa representa. Mas essa imagem fazia parte do jogo. E uma das ferramentas mais importantes desse papel que a imprensa dizia desempenhar na democracia que se dizia ter é o jornalismo investigativo, que andava mal das pernas, mas acaba de ser ressuscitado numa versão adaptada.
Depois de uma primeira cobertura abstrata, em que sobravam adjetivos e faltavam dados sobre as prisões de manifestantes ocorridas no Rio de Janeiro no dia 12/7, o/a Globo saiu a campo, correu contra o tempo e nos brindou com uma enxurrada de informações em primeira mão, verdadeiros furos de reportagem. Não é jornalismo investigativo e sim um jornalismo que reproduz a investigação dos outros – nesse caso, a polícia. Mas como também não é democracia, quem vai notar a diferença?
No lugar daquela imagem romântica do jornalista que segue pistas, convence fontes e apura as inconsistências e os não-ditos, principalmente das ações relacionadas ao Estado, temos altos executivos que, provavelmente com um simples telefonema a um dos seus, conseguem acesso a um inquérito que nem o desembargador envolvido no caso nem os advogados dos acusados tinham lido. A isso se chama furo de reportagem e ainda se diz que faz bem à tal da democracia. No lugar das emocionantes descobertas e desmentidos públicos, temos a reprodução, sem dúvidas nem questionamentos, do que a polícia diz que viu, ouviu e encontrou e tudo apresentado de forma mais concisa, definitiva e dinâmica do que no relatório da investigação. Durma-se com um barulho desses: os grandes jornalistas do/da Globo viraram copidesques da polícia.
Manipulação explícita
Foi assim que o Globo e o Jornal Nacional nos explicaram, didaticamente, que quando um manifestante fala “líquido” ou “drink”, ele quer dizer “gasolina” ou “coquetel molotov”. Entenderam? Nem eu. Não tenho ideia do que essas pessoas conversavam entre si, mas a tal grande imprensa que se diz independente deveria estar apurando junto à polícia explicações sobre como se chegou a essa conclusão. A polícia – que compõe o Estado – investiga o cidadão e a imprensa – que na farsa que se manteve até pouco tempo, fingia vigiar o Estado em defesa do cidadão – reproduz a investigação da polícia. Simples assim.
Atos que teriam sido descritos por testemunhas – que não são identificadas nas matérias e não se sabe se o são no inquérito –, ouvidas pela mesma polícia que acusa, nas páginas dos jornais viram afirmações de atos e vontades dos manifestantes presos. E tudo isso caprichado nas tintas, lançando-se mão de recursos escusos para promover uma manipulação muito explícita, própria de um período em que os grupos garantidores dos seus interesses de classe partem para o tudo ou nada.
Num momento tenso e decisivo para o desenvolvimento do caso, exatamente enquanto uma das ativistas que está com a prisão decretada pedia asilo no consulado do Uruguai, o Globo online publicou aquela que deve ter sido a chamada mais corajosamente desonesta da história desse grupo empresarial no pós-ditadura empresarial-militar: “Eloísa Samy ordenava atos violentos e fazia reuniões em casa”. Subchamada: “Advogada pede asilo político ao consulado do Uruguai no Rio”. Assim mesmo, sem “segundo fulano”, “de acordo com beltrano”. O jornal repete, em nome próprio, assumindo para si, a acusação de alguém que nem foi julgado.
Pouco tempo depois, o texto mudou – “Eloísa Samy é acusada de organizar atos violentos entre ativistas” –, mas, para não deixar dúvidas sobre a certeza que o jornal queria provocar, acrescentou-se um link em que se lia: “Escuta revela que Samy avisou manifestantes sobre busca e apreensão”. São chamadas que não correspondem aos títulos, que não correspondem ao conteúdo da matéria e, portanto, não informam coisa alguma. Desafio alguém que, influenciado por essa campanha vergonhosa, esteja apoiando a prisão dessas pessoas, a me explicar, a partir das informações dos jornais, qual foi o crime que essa moça cometeu. Talvez no inquérito as coisas estejam mais organizadas e façam algum sentido, mas o fato é que, na imprensa, há um claro e intencional esforço de desorganização e fragmentação das informações que, não compreendidas, só reforçam o senso comum conservador que, de modo geral, prefere a concretude da repressão, mesmo que injustificada, à abstração da garantia de liberdades e direitos.
Problemas e limites
Não foi um caso isolado: “Sininho admite que há provas para ser indiciada em MG”, dizia outra chamada amplamente repetida no Globo online, com variações na versão impressa e nos outros veículos desse grupo empresarial. Em primeiro lugar, vale perceber que essa fórmula sugere ao leitor menos atento que houve um fato novo – algo como uma confissão da militante, transformada em inimiga pública número 1 pela grande imprensa brasileira. Mas isso nem de longe é o pior. O texto da matéria explica que a informação anunciada na chamada constaria de uma conversa telefônica gravada, que estaria transcrita no relatório do inquérito a que o veículo teve acesso. Mais uma vez, é trabalho da justiça apurar a procedência da “prova”, mas, jornalisticamente, o pulo do gato, com o qual as autoridades que “vazaram” o inquérito para o/a Globo certamente contaram, foi o fato de a primeira versão dessa matéria conter o link para o áudio de uma conversa telefônica da tal Sininho.
A conversa traz as palavras-chave – polícia e Minas Gerais –, mas não há nela qualquer referência a provas ou outra coisa que indique confissão de algum crime. Ao contrário: o principal argumento da ativista para não ir a Minas é que lá as coisas estavam mais tensas, com gente colocando fogo em ônibus. Há, portanto, um áudio que não corresponde ao que é citado na matéria e destacado no título e na chamada – mas quantas pessoas sabem disso? Quantos se deram ao trabalho de clicar no link, ouvir o áudio até o final e comparar com a (des)informação produzida pelo jornal? E qual o feito que isso poderia ter em meio a um bombardeio de acusações sem defesa? Na cobertura inicial, junto com jornais subversivos, computadores e celulares, a diferença entre uma garrafa de gasolina e um explosivo era principalmente constrangedora.
No meio do que se tenta vender como um “furo de reportagem”, a distância entre o que a matéria descreve e o que o áudio mostra denota a mais pura e consciente desonestidade. O julgamento passa a ser feito pelas páginas dos jornais ou pelo sorriso do William Bonner e o resultado é que tudo que a conquista da democracia, com todos os seus problemas e limites, garantiu, como direito de defesa e presunção de inocência, está sendo diariamente rasgado pelas Organizações Globo, sem que se possa fazer nada.
Versão atualizada do Cidadão Kane
Não faltaram outros artifícios rasteiros, que criam sentido pelo impacto e pela fragmentação. A imagem impactante de um incêndio em que uma pessoa aparece com o braço levantado, aparentemente comemorando, foi repetida mesmo sem que houvesse qualquer relação desse caso e dessa pessoa com os envolvidos e com o conteúdo das matérias; deu-se destaque a uma fala em que a tal Sininho comemora a derrota da seleção brasileira, numa tentativa vulgar de aumentar a rejeição pública a essa moça, que foi alçada a liderança maligna não se sabe do quê nem por quê; ressaltou-se, na mesma fala, a frase em que a “vilã” da vez comenta que a manifestação do jogo da final da Copa vai “bombar”, num lamentável esforço de associar essa gíria ao uso de bombas; e por aí foi.
Mas não parou. Depois de esgotar todas as combinações possíveis de fragmentação sensacionalista das informações, insinuando sem mostrar e julgando sem provar, o/a Globo reeditou a fórmula que foi amplamente usada no momento seguinte às manifestações de junho do ano passado. Depois da inimiga pública individual, resgataram-se os inimigos públicos coletivos, que também foram artificial e interesseiramente construídos: os sindicatos e partidos políticos. Embora faça questão de dizer que manifestar – pacificamente – não é crime, a doação de comida, transporte e carro de som para manifestantes é mais uma vez tratada como financiamento de atos criminosos em defesa de interesses escusos dos sindicatos envolvidos. Para isso, basta juntar as duas informações – a doação e a ocorrência de algum ato de violência em algum protesto – e produzir uma chamada sensacionalista.
Como é parte do processo de construção ideológica a disseminação de valores que são próprios da ordem burguesa, como o individualismo, a competição e a primazia dos interesses particulares, é fundamental que qualquer manifestação de solidariedade de classe, que é o único recurso de que os trabalhadores dispõem, seja rapidamente transformada em aparelhamento institucional, barganha de interesses ou mesmo formação de quadrilha. É no mínimo curioso que ninguém tenha usado as mesmas lentes “investigativas” para denunciar o apoio financeiro que o ex-governador Sergio Cabral deu, em 2012, para garantir a presença de manifestantes nas ruas contra a distribuição dos royalties do petróleo. Na época, para incentivar a presidente Dilma Rousseff a vetar o projeto que havia sido aprovado no Congresso, e que se argumentava que traria muitos prejuízos ao estado do Rio, não só vários o ônibus foram alugados para trazer pessoas de diferentes cidades do estado como o então governador decretou ponto facultativo para o serviço público. Era dinheiro público financiando manifestação, mas a imprensa não achou que era um problema. Essa é a cara, sem máscara, da liberdade de imprensa burguesa, calcada no modelo profissional do jornalismo burguês.
E não é nova. Diz a lenda que, em 1896, quando um repórter do New York Journal enviado a Cuba para cobrir a guerra hispano-americana informou que estava voltando porque, chegando lá, descobriu que não havia guerra nenhuma, William Hearst, um dos mais famosos empresários da imprensa dos EUA, e que tinha muito interesse no conflito, teria respondido simplesmente: “Não volte. Você enviará as fotos e eu farei a guerra”. Não se sabe se esse diálogo é verídico, mas ele parece perfeito para ilustrar o processo de manipulação explícita que as Organizações Globo estão promovendo na cobertura das prisões políticas que denunciam os limites intransponíveis da democracia burguesa. “Me mande o inquérito que eu produzo as provas”: eis a versão mais atualizada da adaptação brasileira do Cidadão Kane.
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