Por Gustavo Mehl
Justiça Global: global.org.br

No dia 31 de dezembro de 2007, Deize da Silva de Carvalho estava reunida com a família na casa de sua mãe no morro do Cantagalo, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Faltavam apenas dez minutos para a meia noite quando o telefone tocou. Do outro lado da linha, o policial informou que o jovem Andreu Luis da Silva de Carvalho, de 17 anos, havia sido detido por furto e estava sendo encaminhado para uma unidade estadual para adolescentes infratores. Aquela era a última notícia que Deize teria de seu filho ainda com vida.

Na manhã do dia 1º de janeiro de 2008, pelo menos 11 jovens testemunharam a sessão de tortura a que Andreu foi submetido no Centro de Triagem e Recepção (CTR), na Ilha do Governador, instalação do Departamento Geral de Ações Socioeducativas do estado do Rio de Janeiro (Degase). O garoto foi espancado por cerca de uma hora e meia. Os agentes usaram pedaços de pau, mesas e cadeiras, e o asfixiaram com um saco plástico. Quando o rapaz já cuspia sangue, o agente Wilson Santos chegou a esfregar sabão em pó no seu rosto repetidas vezes. Andreu, que havia acabado de receber seu primeiro salário como garçom e estava com o noivado marcado para o dia 20 daquele mês, morreu por volta de 9 horas da manhã do primeiro dia do ano de 2008.

Do sofrimento à militância

Aquele era o início de um ano de muita dor para toda a família de Deize. Hoje, dois anos depois, o sentimento de injustiça persiste. O caso se arrasta e continua em fase de inquérito policial. Nenhum dos envolvidos foi responsabilizado, e todos continuam empregados pelo Degase, trabalhando normalmente no CTR. Outras denúncias de maus-tratos e abusos na unidade se tornaram públicas. Apesar disso, durante esses dois anos Deize conseguiu encontrar na revolta uma razão para lutar. Procurou organizações da sociedade civil e a Comissão de Direitos Humanos da ALERJ e conheceu nesse caminho outros casos de assassinatos praticados por agentes do Estado. Através da troca de experiências e da união de forças com outras mães e outros familiares de vítimas de violência, Deize foi fortalecendo sua resistência e amadurecendo a sua militância.

                              Foto por Isabel Mansur


                                      Deize Silva de Carvalho, em frente ao portão do CTR

No último sábado, 16 de janeiro, dia de visitas, Deize Silva de Carvalho reuniu cerca de 60 pessoas na entrada do CTR. Com um carro de som, faixas, panfletos e cruzes de madeira, o grupo recordou a morte de Andreu e de outras vítimas do Estado. “Nós estamos aqui para que certos agentes do Degase saibam que a família do menino que eles mataram continua lutando e não perdeu a esperança na justiça”, dizia, emocionada, a mãe de Andreu ao microfone, olhando para as pessoas em pé na fila da visita, mas falando alto para ser ouvida do outro lado do muro. “Não quero que nenhuma mãe passe pelo que eu passei.”


Diante da presença incômoda dos manifestantes, funcionários do Degase liberaram a entrada dos familiares duas horas mais cedo que de costume, mas não evitaram que alguns parentes que estavam na fila se aproximassem do grupo. “Meu filho apareceu com o dente quebrado na semana passada, mas não quis me dizer o que aconteceu”, disse uma senhora, levantando a hipótese de que o garoto tivesse sido agredido e que estivesse sendo ameaçado. “A gente sabe que essas coisas acontecem, mas fica com medo de nosso filho sofrer represálias se tomarmos alguma providência.” Para Deize, uma das principais razões para a manifestação era justamente orientar os parentes dos adolescentes internados sobre como denunciar indícios de tortura ou qualquer tipo de abuso dentro das unidades do Degase.

Mães se unem contra a violência

Entre os manifestantes, a consciência de que o assassinato de Andreu é mais um entre diversos casos de violência que envolvem agentes públicos no Rio de Janeiro. Outras mães estavam presentes no ato deste sábado, dentre elas Marcia Jacintho, mãe do menino Hanry, morto por policiais no bairro do Lins em 2002. “Temos todas um sofrimento comum. Nossos filhos estão sendo barbaramente assassinados por representantes do Estado sem que nada tenha sido feito pelas autoridades para evitar novos casos”, disse Márcia, que completou: “O governo do estado se comporta como o ‘exterminador de futuros’ quando executa os jovens negros e pobres do Rio de Janeiro. Esta realidade se repete em outros estados. É preciso estarmos unidas nesta luta.”


Marcia Jacintho, com uma camisa em memória
de seu filho Hanry


Outra que integrava o grupo na porta do CTR era Bernadete, mãe do garoto Cristiano de Souza, que também foi assassinado por agentes do Degase em novembro de 2008. Seu filho foi espancado e morto quando estava internado no Educandário Santo Expedito, que funciona no complexo penitenciário de Bangu, nas instalações do antigo presídio Muniz Sodré. O caso evidenciou que os maus-tratos são comuns em unidades do Degase e foi o estopim para que a organização de defesa dos direitos humanos Projeto Legal iniciasse uma campanha de cartas para o fechamento do Santo Expedito. Um dos panfletos distribuídos em frente ao CTR era justamente a convocação para participar da campanha. “Guantánamo vai fechar. Santo Expedito continua aberto”, dizia o texto, em uma referência ao presídio norteamericano localizado em Cuba, que se tornou símbolo de torturas e violações de direitos humanos.

Participe da campanha pelo fechamento do Santo Expedito

Ao fim do ato, Lindomar Darós, integrante do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro, resumiu o sentimento dos manifestantes: “Nossa defesa é pelo direito à vida, sempre. Nenhum ser humano pode atentar contra a vida de outro e a situação é ainda mais grave e perigosa quando quem o faz é um representante do Estado”.