Outras Palavras participa de projeto para estabelecer, nos próximos meses, intercâmbio entre dezenas de publicações contra-hegemônicas. Conheça as bases da proposta, o que ela já desenvolveu e os próximos movimentos
Por Antonio Martins e Mika Ronkko | Imagem: Danza Contemporánea de Cuba
Na áspera luta para vencer os oligopólios da mídia hegemônica, deu-se um pequeno passo a mais, no último sábado (30/1). Foram lançadas, numa atividade do Fórum Social Mundial (virtual)-2021, a ideia de uma rede mundial de mídias alternativas e uma estratégia para torná-la real, em alguns meses. O projeto tem o nome provisório de Mandala. Se bem sucedido, cumprirá três objetivos. Do ponto de vista editorial, oferecerá a centenas de publicações contra-hegemônicas, espalhadas pelo mundo, acesso a um enorme acervo de novos conteúdos, informativos e analíticos. Este material – textos, vídeos, imagens e áudios – será compartilhado em regime de reciprocidade, sem contrapartida mercantil. No plano simbólico surgirá, portanto, uma alternativa às lógicas do copyright; da “propriedade intelectual”; da restrição de acesso às ideias e bens culturais. Terceiro – mas não menos importante: estará estabelecido um canal de diálogo político entre mídias que são, também, espaços de reflexão sobre os caminhos para superar o capitalismo. Este intercâmbio parece ainda mais importante em tempos turbulentos – repletos de ameaças mas também de oportunidades. [Outras Palavras orgulha-se de ser parte do esforço que lançou a iniciativa.]
A nova rede é necessária devido a uma contradição que vai se tornando mais clara e ruidosa a cada dia. Nos últimos vinte anos, o ecossistema das mídias transformou-se. A monotonia do discurso único foi questionada. Emergiu, com base em muitos países, uma galáxia de publicações críticas ao neoliberalismo. Elas souberam usar as asas da internet para atingir novos públicos, ampliar suas redes de colaboradores e contornar custos antes proibitivos. O oligopólio das corporações midiáticas não foi batido. Mas surgiram, como contrapartida a ele, jornais e revistas capazes de desafiar as narrativas do conformismo, de sustentar que as lógicas capitalistas não são as únicas possíveis e de estimular a mobilização social em favor de novos mundos.
Porém (e aqui está o impasse a ser vencido) estas publicações são, em sua grande maioria, frágeis. Lidam com orçamentos limitados, tempo escasso, equipes reduzidas e sobrecarregadas. Têm dificuldade de acompanhar os grandes temas mundiais, ou mesmo acontecimentos e temas distantes de seu âmbito traducional de cobertura. Seu grande trunfo – a diversidade, a capacidade de abordar a crise civilizatória em que vivemos a partir de múltiplas perspectivas – torna-se também seu calcanhar-de-aquiles – a fragmentação, a dificuldade de avançar, a necessidade de postergar os melhores planos.
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Num tempo em que o pensamento dominante comanda a mercantilização total das relações sociais, a Mandala proporá o oposto. Convidará à colaboração, ao compartilhamento, aos intercâmbios não-mercantis. Estabelecerá troca permanente de conteúdos por meio da reciprocidade. Cada publicação participante da rede poderá traduzir (quando necessário) e publicar sem ônus textos publicados em todas as demais. Em contrapartida oferecerá, ao demais integrantes do pool, seus materiais. O arranjo traz vantagem dupla. Os editores de uma revista virtual na Argentina, por exemplo, poderão contar com material sobre as primeiras impressões acerca do governo Biden; sobre os protestos contra a ultradireita na Polônia; sobre a resistência dos agricultores indianos às leis de mercantilização do campo. Mas estes editores argentinos terão, ao mesmo tempo, um novo círculo de relações editoriais para divulgar suas reflexões sobre o sucesso da campanha pelo direito ao aborto, ou as denúncias sobre novas leis em favor de sementes transgênicas em seu país. Esta reciprocidade básica pode abrir caminho, adiante, para formas mais intensas de colaboração. Um conjunto de publicações poderia, por exemplo, examinar e reportar, em conjunto, como a quebra das patentes farmacêuticas poderia assegurar a produção rápida de vacinas contra a covid-19 para todos os habitantes do planeta. Ou investigar os meios de promover Justiça Tributária Global, num mundo em que a pandemia está aprofundando as desigualdades. A Mandala permitirá expor a potência da circulação do imaterial – informação, cultura, conhecimento, comunicação – quando não submetida ao cadeado das patentes.
A rede pretende servir-se, para tanto, de um fato notável, ligado ao pós-capitalismo: a emergência do movimento pelos Creative Commons. Há vinte anos, pensadores e ativistas de todo o mundo desenvolvem e difundem alternativas para que os bens imateriais sejam um Comum, um patrimônio compartilhado por toda a humanidade. Este esforço deu origem a um conjunto de licenças de circulação, ou seja, acordos jurídicos para troca de bens culturais em bases colaborativas. Falta, neste leque, uma licença específica para intercâmbio de conteúdos jornalísticos, nas bases expostas acima. Construí-la será uma das primeiras ações da Mandala.
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Mas de nada adiantará estabelecer, em princípio, a livre circulação de conteúdos se não houver informação constante sobre o que os participantes da Mandala produzem. Este é o segundo desafio de curto prazo: tornar visível, de forma prática, o vastíssimo conteúdo lançado todos os dias pela galáxia mundial das mídias alternativas.
A primeira ferramenta para isso será um agregador público de conteúdos. Um protótipo, muito embrionário, já ficou pronto, graças ao trabalho de programação associado à Mandala. Vale a pena examiná-lo, para ter noção de potência futura. Está em www.mandala.news. Em sua página inicial, o site reúne um primeiro elenco de 29 publicações alternativas de diversos países, escolhidas apenas para efeito de demonstração. Já aí emergem riqueza e diversidade de conteúdos. É possível visualizar, num único endereço, as três últimas postagens feitas por jornais, revistas e, futuramente, vídeos e podcasts. Além de útil aos editores, o resultado pode ser muito estimulante para o conjunto público interessado em ir além do oligopólio das mídias. E a tecnologia entra em jogo: uma vez programada, a página é renovada automaticamente, por meio da linguagem RSS. Não é necessário trabalho humano algum para atualizá-la.
Basta um clique a mais para mergulhar mais profundamente nos conteúdos de cada publicação. Experimente acessar, por exemplo, o link azul El Salto, que aparece associado às três matérias desta revista espanhola listadas na página inicial da Mandala. Vai se abrir uma nova seção, onde aparecerão, em mais detalhe, os 12 conteúdos mais recentes de El Salto. Não há nenhum prejuízo para a audiência da revista. Ao contrário: trata-se de uma vitrine global. Para ter acesso a cada postagem, é preciso clicar em seu título, e dirigir-se ao site respectivo.
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Mandala é uma proposta aberta, que vem sendo construída há anos. A ideia foi lançada em Dakar, Senegal, no Fórum Social Mundial (FSM) de 2011. Uma oficina organizada por Outras Palavras (Brasil) e Voima-Le Monde Diplomatique Finlândia reuniu diversas publicações alternativas. Aí amadureceu o nome da rede, carregado de simbolismo anticolonial. Mandala,que significa círculo e ligação com o cosmo, é uma palavra originária do sânscrito, um idioma do Sul global. Porém, está presente em quase todas as línguas contemporâneas, num sinal de que outra globalização é possível. Apesar do entusiasmo inicial, contudo, a iniciativa entrou em hibernação. Foi outra vítima do acúmulo de tarefas dos proponentes e da necessidade infernal de concentrar todo o foco do trabalho nas atividades quotidianas…
Há alguns meses, os proponentes decidiram trazê-la de novo à luz do dia. Estávamos convencidos de sua necessidade e urgência, num mundo acossado pelo ultraliberalismo e pelos novos (?) fascismos; mas em que cresce, ao mesmo tempo, a noção de que é preciso construir e expandir lógicas opostas às do capital.
O movimento repercutiu. A atividade virtual realizada em 30/1, como parte do programa do FSM-2021 teve presença ativa de publicações como BiodiversidadLA (da Argentina), Laura Flanders’ Show (EUA) e ATTAC-Alemanha. Diversas outras, mesmo sem poder participar da atividade, anunciaram seu interesse na rede. O envolvimento de pesquisadores da Lavits (Rede Latinoamericana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade) e da Oficina Quijaua de Software Livre permitiu construir a primeira versão do agregador de conteúdos e abrir a perspectiva de colaboração com o Creative Commons.
O encontro de 30/1 permitiu traçar uma estratégia de construção da Mandala. Numa primeira etapa, que dever ser cumprida em alguns meses, há três objetivos claros: a) Reunir o primeiro elenco de publicações participantes, com ênfase na busca de parceiros também na Ásia e África, onde os contatos são mais escassos; b) Desenvolver uma licença Creative Commons específica para o compartilhamento de material jornalístico em diversas linguagens. A partir da ideia geral de reciprocidade, exposta acima, a licença deve adequar-se a situações às vezes complexas. Por exemplo: como envolver publicações alternativas cujo conteúdo é restrito a assinantes. Haverá trabalho e debate coletivo à frente; c) Construir uma nova versão do agregador de conteúdos. Além de aprimorada graficamente, ela deverá prever, por exemplo, páginas temáticas, um motor de busca refinado e potente e construção de padrões de metadados (para que os conteúdos apareçam ao público de forma mais homogênea).
Como se viu, contudo, as possibilidades de diálogo e colaboração são muito mais vastas. O objetivo essencial da formalização da rede, da licença jurídica e do motor de busca é tornar a vasta galáxia da comunicação alternativa mundial visível – para si mesma e para o público. Sua postura crítica e sua disposição de enxergar o mundo em profundidade – quando o jornalismo tradicional rende-se ao mercado – podem ser cruciais para a construção do pós-capitalismo. Mandala pretende ser uma ferramenta para ampliar esta potência