A continuação de “Dogville”, de Lars von Trier, tem diversas dimensões. Mas a principal delas é, sem dúvida, a denúncia do racismo e de como funciona a opressão. Não só nos Estados Unidos, nem apenas em seu aspecto ativo, mas também em sua forma passiva e universal. Por Sérgio Domingues, novembro de 2005
No início do primeiro filme da trilogia, Grace chega a Dogville fugindo da arrogância de seu pai. Disposta a provar que ser humilde e servir as pessoas é o caminho da harmonia na vida social. No início de “Manderlay”, Grace está deixando para trás uma Dogville arrasada. Depois de sofrer todo o tipo de humilhação e violência por parte dos moradores do lugarejo, Grace deixa se convencer por seu pai, que despreza seu amor tolo pelas pessoas. Ela permite que os capangas de seu pai queimem Dogville e matem seus habitantes.
Voltando para casa com seu pai (Willem Dafoe), Grace (Bryce Dallas Howard) se depara com uma fazenda em que a escravidão continua, 70 anos após seu fim oficial nos Estados Unidos. O local chama-se Manderlay e fica no Alabama, estado do sul do país. Grace usa as metralhadoras e rifles dos capangas de seu pai para obrigar a proprietária do local a libertar os negros cativos. Os recém libertos reagem com temor e desconfiança. O negro veterano Wilhelm (Danny Glover) acha que terão dificuldades para se adaptar à liberdade. O orgulhoso Timothy (Isaach De Bankolé) desconfia das intenções da moça branca e rica. Contra a vontade de seu pai (Willem Dafoe), Grace resolve ficar e provar que a liberdade é melhor que qualquer escravidão. Mas não abre mão de fazer isso acompanhada de alguns homens armados.
Com a morte súbita da proprietária do local (Lauren Bacall), Grace e os negros libertos assumem a administração da fazenda. Os problemas são muitos e começam com a indiferença dos negros em relação ao plantio do algodão na época certa para sua colheita. Mas o maior obstáculo é a resistência dos negros em considerar sua nova condição de trabalhadores livres superior à anterior. Em certo momento Wilhelm afirma que a libertação alcançada 70 anos atrás pouco mudou a situação dos negros. Em resposta, Grace cita os “40 acres de terra e uma mula” que foram prometidos a cada negro liberto no fim da Guerra Civil americana. Wilhelm diz que tal promessa nunca foi cumprida. E é verdade. O que era para ser uma reforma agrária voltada para os negros jamais foi feita. Virou um mito.
Para Lincoln, os negros eram inferiores
Na verdade, nem mesmo a Guerra Civil teve como única causa o fim da escravidão. O debate em torno do cativeiro negro era mais um pretexto na briga entre os brancos do sul e do norte do país. Os primeiros queriam manter sua autonomia e as atividades ligadas às grandes plantações. Os segundos queriam mais centralização política e expansão da indústria. Abraham Lincoln entrou para a história como “o libertador”, mas considerava os negros inferiores e defendia sua volta à África. Em plena guerra, Lincoln decretou o fim da escravidão apenas nas regiões controladas pelos sulistas para privá-los da força-de-trabalho negra e enfraquecer seu esforço de guerra.
Terminada a guerra, a necessidade de manter a união entre os brancos fez com que os nortistas fechassem os olhos à criação da Ku Klux Klan, em 1866. Um pouco mais tarde, vieram as leis de separação nos estados do sul. Negros não podiam freqüentar os mesmos lugares públicos que os brancos. O filme de Lars Von Trier se passa em 1933. Seriam necessários mais 32 anos de muita luta para que essas leis caíssem. No norte, elas não foram necessárias. Os negros eram muito poucos e um racismo informal como o que conhecemos no Brasil era suficiente.
Outro mito que se construiu é a de que o racismo declarado dos Estados Unidos teria permitido aos negros que reagissem e progredissem. Não é bem assim. Além do que nos mostrou a tragédia do Katrina, há números bastante evidentes. Em 2005, o desemprego entre os negros é de 10,8% entre os negros. Entre os brancos, é de 4,7%. Mais de 70% dos brancos têm casa própria, contra menos de 50% dos negros. Os negros têm três vezes mais chance de ir para a cadeia. O total de rendas de uma família negra é 10 vezes menor do que de uma branca.
De qualquer maneira, essa situação não justificaria o que parece ser o conformismo dos personagens negros do filme. Mas, há aí outra dimensão do racismo ou de outras formas de preconceito e discriminação. Em primeiro lugar, não nos esqueçamos que a escravização negra dos séculos 16 a 19 deve ser o maior caso de aprisionamento e deslocamento forçado de seres humanos em toda a história de nossa espécie. Milhões de pessoas foram transferidas para as Américas em navios que eram verdadeiros matadouros. Vieram para trabalhar numa terra desconhecida, em condições terríveis e sob extrema violência.
O segredo é conquistar as almas
Mas, não só isso. Todo um corpo de teorias com pretensões científicas foi criado para justificar esse crime sem antecedentes. O racismo, como teoria da superioridade da “raça branca” sobre “as outras”, foi criado para justificar a escravidão negra. Portanto, não se trata apenas da repressão, da violência, das correntes, do tronco e do chicote. Trata-se também de dominação ideológica, de convencimento e justificação. É por isso que damos o nome de opressão a esse tipo de dominação. Não se trata apenas de repressão, mas de fazer o oprimido internalizar o preconceito e a ele se acomodar. Infelizmente, é um mecanismo bastante eficiente. Afinal, é mais provável que o negro, a mulher, o homossexual, sem consciência sintam culpa pelo que são do que enxerguem o erro na perseguição que vem da sociedade. A tendência é assumir a inferioridade que lhes atribuem e justificar a discriminação.
Esse parece ser o caso dos negros de Manderlay. Eles continuam, por exemplo, a comparecer no pátio na hora em que a senhora branca determinou, mesmo após a morte dela. No entanto, os desdobramentos posteriores do filme não permitirão que as coisas sejam explicadas apenas por isso. A internalização da opressão não leva apenas à passividade. Também es
tabelece as bases para um pacto terrível e resistente, em que os oprimidos se acomodam à situação e a reproduzem. A isso, chamamos hegemonia. Não é apenas a repressão e a dominação política. Não se trata de prender braços e pernas, convencer a inteligência ou vencer pelo estômago. É o mesmo que conquistar as almas. E, aí, a máquina da opressão funciona às mil maravilhas para os que estão por cima. Não só nos Estados Unidos, mas onde quer que relações de dominação existam.
O grande achado de “Manderlay” é a postura de Grace. Ela praticamente obriga os cativos a se libertarem, lembrando uma estranha e perigosa frase atribuída a Che Guevara: “É preciso libertar os homens, mesmo que eles não queiram”. O pai de Grace cita o exemplo do passarinho acostumado à gaiola, que morre quando o libertam porque já não sabe voar. Se isso é verdade para os negros de Manderlay, Grace também cai prisioneira de uma armadilha. Não se trata de negar a violência que os dominados são obrigados a utilizar para responder à violência dos dominadores. O problema são as soluções autoritárias para situações de injustiça. Alternativas que acabam aprofundando a própria lógica da injustiça. Um problema enorme, enfrentado por todas as revoluções. Que Grace não tenha apresentado soluções para isso não é o mais grave. Grave é o fato de suas ações terem acabado por manter a máquina do racismo em funcionamento.
Este é o segredo do combate à dominação de classe. Combinar resistência e o combate à exploração e à violência com o desmonte dos mecanismos de dominação ideológica. O final surpreendente de Manderlay pretende mostrar que, tal como o relógio que foi regulado de forma imprecisa, a luta pela liberdade humana não pode abrir mão de um entendimento claro do que seja a auto-emacipação dos explorados e oprimidos.
Em “Dogville”, Grace adota a servidão e acaba escrava. Em “Manderlay”, a personagem cede à arrogância bem intencionada e torna-se autoritária. Entre a servidão do primeiro e a arrogância do segundo, esperemos que Von Trier nos apresente uma proposta interessante no terceiro e último filme.