Por Marcela Figueiredo
BoletimNPC- Como foi o seu primeiro contato com a favela?
Marcos Alvito – Eu tinha 35 anos, carioca, criado em Botafogo, de família classe média e nunca tinha entrado em uma favela. Você tem um circuito no Rio de Janeiro que fazem como que as pessoas sejam separadas antes delas se separarem (…) Você não diz: “eu não quero conhecer a favela”. Você acaba freqüentando lugares onde as pessoas que são moradoras de favela não freqüentam. (…) Eu comecei a fazer doutorado em antropologia na USP, conheci uma professora maravilhosa, que mais tarde passou a ser minha orientadora, minha mestre, Maria Lúcia Montes. Ela tem uma visão genial. Abriu minha cabeça e me permitiu entender melhor o mundo, a realidade. Ela começou a falar de uma ida que ela tinha feito a Vigário Geral. Contando do baile funk, os bondes. Eu fiquei muito impressionado. Ela estava falando da minha cidade. Eu era carioca, nunca tinha entrado em uma favela e não conhecia aquela realidade. Aí eu procurei o Marcelo Freixo. Ele fazia um trabalho social na penitenciária e, várias vezes, já havia me convidado para ir lá e eu nunca tinha ido. Disse a ele que eu queria fazer esse trabalho na penitenciária, mas que queria conhecer a realidade da penitenciária primeiro. Nisso, eu comecei a fazer contato com pessoas ligadas à Casa Da Paz, com o Caio Ferraz, e fui a Vigário Geral. Foi a primeira favela que eu entrei. Depois eu conheci um poeta de Acari, e fui a Acari também . Mas fui só para visitar, para conhecer. No início meu trabalho era na penitenciária.
BoletimNPC- Como iniciou sua pesquisa na favela?
Alvito – Eu fui proibido de entrar na penitenciária e fui fazer minha tese de doutorado em Acari.
BoletimNPC- Por que você foi proibido de entrar na penitenciária?
Alvito – A gente fez uma semana da cultura na penitenciária. Nós chamamos para palestrar o Caio Ferraz, a mãe do Cazuza. Tiveram filme, peça de teatro, várias coisas. Ao mesmo tempo eu cometi um erro muito grave que foi chamar esse poeta para desenvolver esse projeto de redação junto aos presos. Ele chamou dois outros compositores. Um deles era compositor de samba e o outro ficou conversando com um dos presos. Esse preso era o chefão de Acari. Embora esse compositor fosse realmente compositor, ele era também presidente da associação de moradores. Nisso, a diretora do presídio achou que nós estávamos utilizando o projeto para servir de ponte para articular contato entre os presos e as pessoas de fora. Ela achou que isso estava colocando em risco a penitenciária. Eu não tinha idéia nenhuma, eu era completamente novato nessa história. Depois, quando eu iniciei minha pesquisa em Acari, eu descobri que esse presidente da associação de moradores, tinha sido colocado lá pelo chefão do trafico. (…)
BoletimNPC- As experiências vividas corresponderam as suas expectativas anteriores?
Alvito – Eu não tinha expectativa com relação à favela. Eu nunca achei que era na favela que moravam os marginais. Eu era professor. Na época eu era de esquerda, naquela época isso fazia algum sentido. Eu sabia que na favela era o lugar onde moravam as pessoas que tinham necessidades econômicas de morar ali. Eu sabia um pouco das histórias da favela. Muito pouco, porque é uma história muito mais rica e complexa do que se pensa. É uma história que não se ensina na escola. Não se ensina na faculdade. Mas eu me surpreendi. Não pelo lado consciente, mas por uma séria de pré-supostos inconscientes que eu tinha com relação aos moradores da favela. São determinadas coisas completamente vergonhosas. Uma vez eu estava entrando em Acari e vi uma moça loira de olhos azuis. Eu perguntei pro Delei, um poeta de Acarí, quem era aquela moça. Ele disse que era uma moradora (…) Aí eu percebi que o meu pré-suposto era de que na favela era lugar de moradia de negro, mulato, nordestino, mas que uma moça loira esá deslocada daquela situação (…). A favela me surpreendeu muito. Ela me fez ver a profundidade dos nos
sos pré-conceitos. Eles são forjados por novelas, filmes, romances (…) A favela foi uma grande escola pra mim. Eu era um menino de classe média, que sempre tinha feito o caminho de um menino normal de classe média, que eu chamo do peixinho de aquário. Eu vi que a realidade era muito maior. Eu pude conhecer um outro lado daquilo que chamam de povo. Eu vi que eram pessoas lutadoras, com uma história rica. Eu vi como elas construíam a história delas. Aquilo tudo me emocionou muito. A favela foi pra mim uma grande escola de vida de compreensão da realidade brasileira. Eu pude perceber que as formulas que tanto a direita quanto a esquerda têm não dão certo. De um lado tem a direita dizendo que é todo mundo preguiçoso, criminoso. De outro lado tem a esquerda dizendo que eles são coitadinhos, que eles sofrem. Isso não é verdade. (…).
BoletimNPC- O que você pode constatar de mais positivo na favela?
Alvito – O pulsar do desejo de estar vivo, de ser feliz, de construir sua vida, fazer tudo de bom para sua família. É a amizade que existe.
BoletimNPC- E que constatou de mais negativo?
Alvito – É o processo que está acontecendo hoje, que não foi construído na favela, que o ponto de partida desse processo não é na favela. É um processo globalizado, internacional. É um processo econômico que mexe com muito mais dinheiro que a indústria automobilística, que é o tráfico de drogas, tráfico de armas. De todos os lugares, o mais afetado, sem dúvidas, é a favela. Sem ela ser a origem, a controladora, ser a cabeça, ser a administradora da coisa, é onde as pessoas mais sofrem. Eu pude experimentar isso. Eu levei meu filho algumas vezes em Acari, quando ele era pequeno. Era muito angustiante eu passar como meu filho nos braços e ver passar um menino de 15 anos com uma metralhadora, uma granada, na mão. Dava uma aflição. Você viver cotidianamente assim, eu acho que ninguém merece. Ainda mais aquelas pessoas que lutaram tanto. Essas mesmas pessoas convivem com uma insegurança total. Existe um outro lado que não é comentado, mas que eu acho que tem um impacto muito forte sobre a cidade do Rio de Janeiro, sobre a cultura brasileira como um todo. Esses bairros populares eram lugares onde se tinha uma intensa troca cultural. Tinha as quadrilhas de festa junina, tinha os campeonatos de futebol, tinha as associações de cunho político que dependiam dessa troca e dessa circulação de pessoas entre as favelas. Em uma cultura onde o futebol é tão presente, se você não pode ir a uma determinada favela nem para jogar futebol… isso empobrece tanto a cultura (…) são todos moradores de favela. E estão se matando uns aos outros. Isso é a coisa mais triste. A gente vive uma realidade sem sentido no Brasil. É impossível a gente se acostumar com isso.
BoletimNPC- Como você avalia o caso recente que ocorreu com o menino João, durante uma tentativa de assalto no Rio de Janeiro?
Alvito – Eu avalio que a opinião pública está muito certa em ficar chocada. Em perceber que isso é uma barbárie. Mas essa barbárie, vem acontecendo há muitos anos, cotidianamente. Pessoas sendo despedaçadas, queimadas. Pessoas sendo mortas e seus restos mortais sendo jogados para os porcos comerem. Pessoas sendo cotidianamente torturadas, extorquidas. Eu estou falando de polícia, de facções do tráfico, um contra o outro, não importa. Eu não sou a favor de nenhum deles. Essa barbárie esta acontecendo o tempo todo. Ela é permanente. O caso do João é um caso que de certa maneira veio à tona. Mais é um dos casos que vêm acontecendo cotidianamente. Existem mães que seus filhos são assassinados e elas nunca poderão ver o corpo do filho dela. Nunca vai poder fazer o enterro do filho dela. Eu já vi mãe agradecer a Deus por poder ter o corpo do filho para enterrar. Quanto a essa barbárie a sociedade não tem a mesma sensibilidade. Ela não consegue. Eu acho que tudo isso que está se fazendo em volta da morte desse menino é correto. A gente deve se chocar. Se perguntar: Por que isso está acontecendo? Agora, e as outras mortes? Eu não vejo ter a mesma reação (…). se eu for ao morro do Cantagalo e conversar com uma mãe, se ela confiar em mim, não vai demorar cinco minutos para ela me contar uma história tão terrível quanto a que aconteceu com o menino João. É uma história que não saiu no jornal. A dor do povo não sai nos jornais (…) quando morre alguém de classe média, tem nome, sobrenome, foto, minuto de silêncio. Eu acho isso tudo corretíssimo. Mas, e os outros? Qual o nome? Quem é a mãe dele? Essas mães não aparecem. Essa dor não aparece no jornal. Eu acho que essas mães, ao mesmo tempo em que elas ficam chocadas. Elas devem falar: “E o meu menino?”…
BoletimNPC- O que você queria que as pessoas que não conhecem a favela conhecessem?
Alvito – Eu gostaria que elas conhecessem a luta daquelas pessoas. Gostaria que elas conhecessem a honestidade. Gostaria que elas conhecessem a dignidade. Eu, por exemplo, fiquei em Acari quase três anos, fazendo meu trabalho de campo. Nunca ninguém me pediu dinheiro emprestado. Se eu pagava uma cerveja pra alguém, na semana seguinte o cara ficava louco, querendo pagar uma cerveja pra mim. O cara não suportava a idéia de que ele poderia ser visto como um parasita. Eu encontrei pessoas com uma ética, uma dignidade, com uma capacidade de viver, de ser alegre, de celebrar.
Uma das coisas mais bonitas que eu vivi em minha vida foi em Acari. Foi quando no aniversário de um líder comunitário que faz aniversário próximo do dia do meu. Ela faz aniversário cinco dias depois do meu aniversário. Eu sou flamenguista, isso tem que sair na matéria: Eu sou flamenguista. Mas esse líder comunitário é botafoguense. No dia do aniversário dele eu comprei um meião do botafogo que é lindo, e dei pra ele. O cara jogava bola todo dia. É botafogo doente. Eu dei a meia pra ele no começo do meu trabalho de campo. Quando eu já tinha terminado o trabalho de campo, já tinha publicado o livro, ele me convidou para jogar bola com o time de Acari em Petrópolis. Foi quando eu descobri que o cara tinha guardado aquela meia para quando jogasse bola comigo. O cara é botafoguense doente e guardou a meia, mais de dois anos, para o dia em que jogasse bola comigo.
Ele virou pra mim e disse; “você conhece isso aqui?”. E não falou mais nada. Eu quase chorei naquela hora. Aquilo era um sinal de amizade. O que eu acho mais bonito é que a amizade não é a palavra. Na favela o que vale é a ação. Você é meu amigo? Então vem bater a laje comigo, me arruma um trabalho, conversa comigo. O que eu queria que as pessoas conhecessem da favela é isso. É a amizade verdadeira. Eu queria que elas conhecessem a luta das pessoas e a amizade verdadeira
BoletimNPC- Como você avalia a abordagem que os meios de comunicação fazem da favela e de seus moradores?
Alvito – Eu acho que já foi bem pior. Há dez anos, quando eu comecei a pesquisa era assim a manchete do Jornal Nacional: “Polícia tenta identificar ponto de cativeiro”. O problema há dez anos era o seqüestro. Aí eles mostravam um helicóptero sobrevoando as favelas e mostrando. Sem falar a palavra favela. Naturalizando que o lugar do cativeiro deve ser a favela. E depois, a maior parte dos seqüestrados daquela época foram encontrados fora da favela. Até porque os donos das bocas de fumo, não queriam que ninguém que fosse seqüestrado fosse levado para lá. Eu acompanhei um caso no tribunal de justiça onde o chefe do tráfico que desbaratou um cativeiro e entregou para a polícia, com um bilhete dizendo que tinha sido ele que entregou e que ele não queria cativeiro na área dele. Mas, para a sociedade brasileira, todos os males vêm da favela, todos os males vêm dos negros, todos os males vêm dos pobres. Quando se falava da favela, se falava em barraco, embora todas as casas hoje sejam de alvenaria. Na maior parte das favelas não se tem mais barraco. Tem casa de alvenaria. Parece muito ruim hoje, mas se você for ver, há dez anos era muito pior. Você não tinha o site tipo o Viva rio, embora eu descordasse do Viva Rio em muita coisa. A favela não tinha voz nenhuma. Hoje ela tem um pouco mais. Eu acho que hoje a sociedade começou a despertar um pouco para o fato de que os moradores da favela não são os criminosos. Mais uma vez é a idéia do outro que permanece. O jornal ele é ao mesmo tempo formado e formador da opinião pública. Se você descrever alguma coisa que esta totalmente contra a opinião pública, ele é suicida porque as pessoas não compram o jornal. E ao mesmo tempo ele vai fortalecer aquilo que todo mundo já pensa. Você tinha uma matéria no Jornal do Brasil que era: “O retrato da infância criminosa brasileira”. Nessa matéria dizia de onde vinham os menores infratores, de que bairros, qual era a faixa econômica da família deles, que crimes eles cometiam. E nessa matéria tinha a foto de um menino negro com uma tarja preta no rosto. Aí você vai ler a matéria, não tinha nada que dizia que aqueles meninos fossem negros, brancos ou mulatos. (…) Eu escrevi uma carta para o Jornal do Brasil dizendo: como é que ele coloca uma foto de um menino negro, se na meteria não tem nada falando nem de negro, nem de branco, nem de mulato? Nada que fundamente que o menor padrão que comete crime seja um negro. No grosso, eu acho que a imprensa está tentando superar isso. A gente tem que perceber que existe alguma mudança. (…) Ainda tem o grande problema de que a imprensa não entra na favela. Ela não fala com morador. Então é difícil você escrever sobre certa coisa que você não conhece. Às vezes não é nem por má fé. É pro ignorância mesmo. É por não conhecer.
BoletimNPC- Você ainda faz algum trabalho relacionado à favela?
Alvito – De lá (pesquisa em Acari) pra cá eu primeiro comecei um trabalho no morro do São Carlos, que era um trabalho voluntário de história oral. Eu estava muito preocupado com a questão da memória desses lugares. Mas eu não pude terminar porque eu tive que voltar a dar aula na universidade. Muito poucos alunos queriam fazer. Eu falei com duas turmas onde todo
mundo era de esquerda, todo mundo revolucionário, e quando falei vamos à favela ninguém quis. Depois eu comecei a dar aula para polícia, então eu comecei a pesquisar a polícia militar. Só que esse trabalho com a polícia é um trabalho impublicável.
BoletimNPC- Por que?
Alvito – O que eu descobri, o que eu ouvi nessas entrevistas eu não poderia jamais colocar em um livro. Não tinha condição. Eu só digo isso. Não tinha condição de colocar. Não tinha condição. Nem pra mim, nem pra eles, nem pra quem concedeu as entrevistas. Não tinha condição de colocar. Eu ia pensando como fazer o livro. A primeira coisa que eu penso é em não prejudicar as pessoas que deram entrevista. Ia pensando como ia montar… Mas eram histórias de vida. A força das entrevistas era o fato de serem histórias de vida. A maioria falava assim: “Eu nunca pensei em ser policial, eu nunca quis ser policial, mas aconteceu isso, isso e aquilo e eu virei policial” .(…) Pelo que você conhece da polícia no Rio de Janeiro… Mas que é um braço da sociedade brasileira.
Ela está fazendo o que a sociedade em última análise quer. Se não ela mudava isso. Porque na zona sul ela age diferente. Uma das coisas que eu posso revelar da pesquisa e que os policiais falaram é isso: “Na zona sul eu ajo de maneira diferente”.
Hoje eu estou pesquisando policiamento de torcidas organizadas. Dizem as más línguas que essa é a desculpa que eu dou pra minha mulher para ficar assistindo jogo de futebol. Mas depois que a pesquisa for publicada eles vão ver que não. E é um assunto que eu acredito ser de extrema importância na sociedade contemporânea. (…) Está havendo um processo de criminalização das torcidas organizadas. Que tem seus problemas, mas, mais uma vez a gente esta pensando somente em evitar a conseqüência sem atacar a causa. Mas isso daria uma outra entrevista. Então não tem haver , especificamente com a favela, embora o tema favela esteja presente. Esses grupos de torcidas organizadas, têm os pelotões, têm os grupos que são de determinadas favelas. A questão da polícia, a questão da violência, a questão da polícia com os mais pobres, a questão da relação branco e negro.
No futebol é um dos poucos lugares onde o racismo é aberto. Todas as torcidas cantam para a torcida do flamengo: “Ela, ela, ela, silêncio na favela”.
Até mesmo o time do Vasco que gosta de dizer que foi o primeiro time que colocou negro. O que é mentira porque o primeiro que colocou negro foi o Bangu. A torcida do fluminense canta que chegou a playboyzada. Eles, simbolicamente, se vêem como os brancos. Aquilo que todo mundo negaria, no futebol eles se assumem.
Uma outra pesquisa que eu comecei e não acabei na favela, depois da pesquisa de Acari, eram as lendas. Eram histórias da mulher do latão, da mula sem cabeça, do lobisomem. E tinham histórias muito interessantes, tinham pessoas que contavam histórias de que ouviam correntes arrastando. Coisa que eu acho que tem haver com esse passado escravista. Essa foi uma das últimas pesquisas que eu fiz em favela. Essa, e uma que eu fiz lá no morro do São Carlos que eu chamava de história viva.