Por Alan Tygel
Da Página do MST
Como parte do Especial sobre os 50 anos do golpe civil-militar no Brasil, a Página do MST entrevistou a jornalista, psicóloga e escritora Maria Rita Kehl. Ela atuou na imprensa alternativa durante a ditadura como editora do jornal Movimento, um dos principais meios de comunicação da resistência ao regime militar, e nos últimos anos realizou atendimentos psicanalíticos na Escola Nacional Florestan Fernandes.
Maria Rita Kehl ganhou notoriedade nacional durante as eleições presidenciais de 2010. Na época, ela escreveu no jornal Estadão um artigo em que ironizava as reclamações de moradores de Fortaleza que não conseguiam contratar um porteiro para seu prédio: “É curioso que ninguém tenha questionado o valor do salário oferecido pelo condomínio da capital cearense. A troca do emprego pela Bolsa-Família só seria vantajosa para os supostos espertalhões, preguiçosos e aproveitadores se o salário oferecido fosse inconstitucional: mais baixo do que metade do mínimo.” Ela foi demitida do jornal logo em seguida.
Desde 2012, Maria Rita Kehl participa da Comissão Nacional da Verdade, coordenando o Grupo de Trabalho de Graves Violações de Direitos Humanos no Campo ou Contra indígenas e também o GT Araguaia.
Entre os trabalhos da Comissão, palestras e atendimentos em seu consultório, Maria Rita concedeu uma entrevista à Página do MST, parte por telefone, parte por e-mail.
Confira:
Quais são os principais resultados do Grupo de Trabalho sobre camponeses e indígenas até agora?
A Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi criada para investigar os crimes do Estado, no período não só da ditadura, mas entre dois fins de ditadura: 1946, que é o fim da ditadura de Getúlio, até 1988, que é a outra constituinte que terminou de vez com a nossa ditadura. De vez nunca terminou, mas aquela que encerrou formalmente a nossa ditadura. (risos)
Eu não vou trazer nada que já não tenha sido pesquisado, porque eu estou me baseando em documentos. Ou seja, não sei se é resultado, mas tem uma primeira informação que eu acho importante estar no relatório da CNV.
A maior novidade é que camponeses e índios sejam incluídos entre as vítimas. É novidade porque percebo o tanto que isso foi contestado. Quando a CNV começou, fiquei sabendo que muita gente de direita, inclusive muitos jornalistas, nos desqualificou muito, dizendo que camponês e índio “não têm a ver com isso”, “que vai ser uma mentirada”.
Qual motivo de ainda haver tanto desconhecimento sobre as violações aos índios e camponeses no período da ditadura?
Acho que é pelo isolamento. E também pelo fato de que eles não estavam necessariamente combatendo a ditadura. Eram, muitas vezes, vítimas acidentais do processo de desenvolvimento, principalmente no caso dos índios.
Agora não é tão desconhecido assim, porque alguns antropólogos já nos anos 1970 divulgavam isso. Até porque não era um fato tão político, por isso não era tão censurado.
A Cláudia Andujar, que fotografou os Yanomami, fez uma grande campanha em defesa deles. Isso chegava à sociedade, mas não se pensava nesses fatos como crimes políticos.
A grande diferença da CNV é incluir o que aconteceu com os índios como violações de direitos humanos por parte do Estado.
Qual a diferença entre o caráter das violações aos direitos humanos dos indígenas e dos camponeses das outras violações ocorridas?
A diferença é que muitas organizações camponesas e praticamente todos os grupos indígenas estavam lutando em conflitos locais, na defesa de seu direito à terra, embora nem soubessem que existia uma ditadura no Brasil.
Pense no isolamento, na falta de acesso à informação, no analfabetismo que caracterizavam a situação do pequeno posseiro há 50 anos.
A biografia do Manoel da Conceição é bem ilustrativa desse ponto: os posseiros de Pindaré Mirim começam lutando para que o fazendeiro não soltasse o gado em cima das roças deles, que era um modo disfarçado de destruir lavouras e expulsar posseiros.
Eles apanham da polícia local, aos poucos se organizam, formam um sindicato, apanham novamente… Demoram a entender que os conflitos locais estão articulados com a aliança de classe que sustentou a ditadura militar.
Os índios, como iam saber do que se passava? As piores violações foram contra povos indígenas que viviam isolados, no período das grandes obras dos governos Médici e Geisel na Amazônia.
O Davi Kopenawa, líder dos Yanomami muito ativo na época da invasão de suas terras pela Perimetral Norte, deu um depoimento à CNV que começava assim: “eu não sabia que existia governo. [entendi isso quando] Foi chegando, invadindo nossas terras, matando nossos irmãos…”
O indígena não sabia nem que ele morava dentro de um país. Agora mudou, mas para um povo isolado, o país que ele vive é a nação indígena à qual ele pertence.
Esses índios tomaram contato com o fato que de que existia um Brasil, um governo, da pior forma possível, que foi a violência contra eles.
Eles não tomaram contato pelo fato de que estavam dentro de um país porque veio uma equipe de saúde, cuidar das doenças, da nutrição.
Viram estradas sendo abertas, máquinas, aproximação não cuidadosa do homem branco, dizimando as tribos por epidemias e por violência. Houve confrontos armados, tortura, vários casos graves de violência intencional do Estado. Mas o que mais dizimou os índios foi o descaso do Estado, e nosso trabalho é investigar e denunciar as vítimas por ação ou omissão.
Alguns funcionários e ex-funcionários da FUNAI que entrevistamos disseram que a maior violência do Estado foi mandá-los fazer frentes de aproximação com os índios sem levar vacina, sem vacinar os próprios agentes, sem levar remédio para coisas banais como gripe e sarampo.
Iam para dizer que havia um projeto, que iriam fazer uma hidrelétrica, que as mineradoras, todas estrangeiras multinacionais, queriam ter acesso às terras que tinham minerais com muita procura.
Como os índios não têm defesa imunológica, eles morriam como moscas. Isso que parece acidente não é, porque desde o Xingú já se sabia que os índios eram contaminados e não tinham defesa para as doenças dos brancos. É um descaso ativo.
Por que a repressão aos camponeses foi tão violenta logo nos primeiros dias após o golpe? Tem relação com o clima favorável à Reforma Agrária dos últimos dias de João Goulart?
Creio que essa repressão imediata tem a ver com a atuação do Partido Comunista em apoio a vários movimentos camponeses.
No período de 1946 a 1964, primeiro período das investigações da CNV, o PCB, então na legalidade, apoiou fortemente as guerrilhas de Porecatu e Pato Branco, no Paraná, a luta dos posseiros de Trombas e Formoso, em Goiás, e as Ligas Camponesas, que organizaram congressos com milhares de militantes no nordeste, em Minas.
O medo era de uma revolução de modelo cubano no Brasil. Acho que esta é a melhor explicação, além do compromisso óbvio dos militares com o latifúndio.
Até que ponto a CNV pode chegar? Você concorda com as críticas daqueles que afirmam que a comissão seria inútil, pois não se poderá punir os crimes?
A CNV pode chegar só até a entrega do relatório, em seguida deixará de existir. Nossa pesquisa compreende o período entre 1946 e 1988. O único instrumento que temos para tocar em questões do presente é o capítulo das recomendações.
Tenho certeza de que este será um capítulo muito debatido entre nós, porque temos posições divergentes sobre muitos assuntos – a começar pela recomendação sobre a revisão da Lei da Anistia.
Não há consenso no grupo e não sei se chegaremos a ele. No que toca aos meus temas, sei que posso recomendar a homologação das terras indígenas já existentes, muitas delas ameaçadas por processos de reintegração de posse por parte de fazendeiros em suas regiões, como no Sul da Bahia, Mato Grosso do Sul, Oeste do Paraná.
Podemos também incluir uma enfática recomendação pela agilização dos processos de redistribuição de terras no Brasil, tendo em vista uma Reforma Agrária reparadora das injustiças históricas sofridas pelos camponeses.
Não concordo que por não poder punir crimes a CNV seja inútil. Aliás, não costumo concordar com raciocínios do tipo “tudo ou nada”. A CNV não tem todo o poder que os brasileiros, sobretudo as vítimas e parentes de vítimas, gostaria que tivesse.
Mas estou convencida de que a investigação dos crimes cometidos por agentes do Estado brasileiro durante o longo período de 42 anos que nos toca investigar, cujo resultado virá a público em nome do próprio Estado, é um enorme avanço democratizante para um país conservador como o Brasil.
Como você tem visto os debates em torno da revisão da Lei da Anistia? Há alguma possibilidade de se chegar à punição dos criminosos?
Sinceramente, não tenho esperança de que a sociedade brasileira deseje esta revisão. Basta ver a frequência com que os defensores da punição aos torturadores são chamados de “revanchistas”, tanto pelos próprios militares, o que é compreensível, quanto por cidadãos que, embora desaprovem a tortura, os desaparecimentos de cadáveres e outros crimes hediondos cometidos no período, estão comprometidos de forma tão profunda e inconsciente com o “jeitinho brasileiro” de deixar para lá, que acabam por endossar o coro dos assassinos indignados.
Até agora, não vi ninguém contestar a fundo o uso que se faz do termo “revanchismo”. Ora, o que é uma revanche? No esporte, é a oportunidade de um time derrotado virar o jogo e sair vitorioso em uma segunda rodada, não é isso?
Por que a grande maioria democrática da sociedade brasileira se envergonharia de querer uma revanche sobre a minoria civil-militar que nos derrotou durante 21 anos? É incrível como as pessoas repetem bobagens ou raciocínios de má fé sem pensar no que dizem.
Nunca vi, em nenhuma passeata, alguém levantar uma faixa “Pelo reconhecimento ao direito de revanche!”
Você recebeu o prêmio João Canuto de Direitos Humanos em 2013 junto com a família de Cícero Guedes, militante do MST assassinado em Campos dos Goytacazes. O acampamento que Cícero coordenava fica na Usina Cambahyba, apontada como palco de crimes da ditadura. A senhora vê ligação entre a violência no campo da época da ditadura e hoje?
Claro que sim. Existe uma continuidade direta, tanto no que se refere à violência contra índios e camponeses quanto à violência policial contra cidadãos negros e pobres nas cidades.
Este é um dos efeitos mais nefastos da impunidade dos perpetradores de graves violações de Direitos Humanos. Você sabe que, em maio de 2006, a polícia paulista matou e fez desaparecer os corpos de jovens e adolescentes das periferias de São Paulo, Santos, Guarulhos, em número maior do que os militantes urbanos durante toda a ditadura?
Por que as polícias continuam militarizadas, quase 30 anos depois do fim da ditadura militar? Uma pesquisadora norte-americana concluiu que o Brasil é o único país, entre os que tiveram ditaduras na América Latina, em que a polícia mata mais na democracia do que no período da repressão.
Quanto ao campo, termino essa entrevista com uma observação feita pela minha colega de atendimentos psicanalíticos na ENFF, Noemi Araújo: quem diminuiu o padrão da “pistolagem” no campo não foi nenhum governo democrático, nenhum governador estadual pós 1985.
Quem conseguiu diminuir o padrão dos assassinatos de camponeses foi o MST, ao organizar mais de 2 milhões de trabalhadores rurais no país em defesa de seu direito à terra. Gostaria de saber a opinião dos leitores sobre este assunto.