“Henrique Goldman, 46, cineasta paulistano radicado em Londres, tornou-se mais jeitosinho com as mulheres ao longo dos anos”. Este é o pé biográfico original da coluna intitulada “Carta aberta para Luisa” publicada no site da revista Trip em sua edição de setembro. Sem mencionar a palavra “estupro” uma única vez, o autor usa o texto para desculpar-se com a empregada da família “com quem transou, contra a vontade dela, quando tinha 14 anos”. Finaliza esperando “que para você a
memória daquela tarde não seja tão ruim e que você hoje possa rir do que aconteceu”. Puro escárnio. Do colunista e da revista.

Depois que o texto circulou em inúmeras listas de discussão de organizações da sociedade civil, especialmente entre as feministas, nos dias 9 e 10 de outubro a participação do público no espaço reservado a comentários foi intensa. Foram mais de 500 mensagens em apenas dois dias. A reação geral foi de forte indignação e de repúdio veemente ao texto.

Em resposta, na noite do dia 10, Trip publica nota afirmando que o texto é ficcional e desculpando-se por não ter deixado isso claro aos leitores desde o início. Afirma também que considera inaceitável qualquer forma de assédio ou violência sexual e decide editar o pé biográfico que classifica de “desastrado”. Ao mesmo tempo, a revista publica nota de Henrique Goldman na qual afirma que nunca estuprou ninguém na vida, que está muito abalado com as mensagens agressivas que recebeu dos leitores e arrependido por ter criado um mal-entendido.

Trip levou mais de dez dias para fazer seu “esclarecimento” e Goldman para expor seu “arrependimento”. Não há como saber se são verdadeiros. Mas não restam dúvidas de que isso só aconteceu devido à existência de um canal de diálogo entre público e veículo, permitindo a manifestação de críticas e mostrando que o leitor também “se abala” com o que lê e também reage.

Longe de um ataque à “liberdade de expressão” do autor e dos editores da revista, o que o público fez foi rechaçar um tipo de conteúdo que considera ofensivo a suas liberdades e seus direitos. Este é um exemplo claro de exercício do controle social. Por enquanto, os resultados limitam-se às notas publicadas pela revista e à edição do pé biográfico, que exclui o trecho “jeitosinho”. Mas além das críticas, as mensagens dos leitores apresentam sugestões de reparação – como espaço
para a publicação de respostas -, ameaçam com ações judiciais, questionam e pressionam anunciantes para que não mais financiem a publicação, propõem boicote à revista. Se levadas a cabo, estas iniciativas podem gerar resultados mais contundentes já que, realidade ou ficção, o fato é que o autor e a revista tratam de forma leviana, jocosa e irresponsável um assunto extremamente sério e delicado.

Os números que Trip desconhece

Trip e seu colunista ignoram índices como o da Fundação Perseu Abramo, que estima que a cada 15 segundos uma mulher é espancada por um homem no Brasil. Ou como o da Organização Mundial de Saúde, que, em 2002, mostrou, através de pesquisa realizada em vários países, que até 47% das mulheres declaram que sua primeira relação sexual foi forçada. Em São Paulo, dados de 2000 da OMS afirmam que 10,01% das paulistanas sofreram tentativas ou foram forçadas a fazer sexo com parceiros íntimos em algum momento de suas vidas.

Levantamento da Fundação Seade (Sistema Estadual de Análise de Dados) referente ao período de 1997 a 2002 revela que mais da metade das ocorrências de estupro registradas nos distritos policiais e nas delegacias especializadas de defesa da mulher no Estado de São Paulo nem
chega a resultar em inquérito policial. A apuração da maior parte não vai além do boletim de ocorrência.

A história narrada por Goldman, infelizmente, ainda acontece com freqüência no Brasil. Ela é um retrato nítido da sociedade patriarcal e machista em que vivemos, perpetuada cotidianamente pela mídia. E sim, é extremamente necessário falar sobre o assunto e debatê-lo. A questão é que o autor narra a história e pede desculpas como se ele – ou o seu eu-lírico – tivesse cometido um mero ato infantil, impensado. No fim das contas, mesmo que se trate de uma ficção, avaliza um crime hediondo, como se fosse possível dele redimir-se com um pedido de desculpas.

Mariana Pires é integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.


O texto de Goldamn publicado na Revista Trip pode ser lido em
http://revistatrip.uol.com.br/coluna/conteudo.php?i=25613