Espero, do fundo do meu coração, que este documentário não seja apenas mais uma bomba de efeito moral como deseja a Globo. Por Renata Souza
Estava chegando do passeio com o namorado, quando vi meu pai, minha mãe e minhas irmãs inertes em frente à TV. Era o documentário feito por MV Bill e Celso Athaíde, Falcão: Meninos do Tráfico, que eles olhavam atentamente sem dar atenção à minha chegada. Quando deu o intervalo minha mãe desandou a falar da importância da família. Minha tia, que mora em frente à minha casa, gritou os seus seis filhos, destes, três são da minha prima que foi assassinada, para assistirem aquele cena diária, mas que agora passava na televisão. Minha mãe repetia o tempo todo o papel da família, meu pai concordava e minha irmã falava do descaso das autoridades e eu não consegui expressar o que senti naquele momento.
Eles são crianças pobres e abandonadas
Quando me recuperei do susto, as cenas chegavam e eu sentia vontade de chorar e rir ao mesmo tempo. Chorar por saber que aqueles meninos da TV representam também os meninos que vi crescer e os que cresceram e brincaram comigo. Chorar por causa desse sistema injusto que provoca, dia-a-dia, a morte de crianças pobres, que foram abandonadas pela sociedade que se sente segura aos vê-los atrás das grades ou sendo escoltados pelo exército nas ruas.
Cenas que se passam em frente à minha casa
Senti vontade de rir porque estava muitíssimo satisfeita, porque finalmente estavam exibindo, em rede nacional, aquilo que todos os dias me deparo na porta da minha casa, mas que contando ninguém acredita. A nossa sociedade é assim, tem que ver para crer. Inúmeros livros já foram lançados com histórias não menos impressionantes e não foi dada a mínima importância. É óbvio que vivemos em uma sociedade na qual a linguagem visual tem grande apelo. E a Globo sabe disso, por isso não exitou em exibir o documentário com imagens sensacionais.
O rádio do meu vizinho calou
O rádio do meu vizinho, que sempre fica ligado no último volume no domingos à noite, estava muito baixinho, quase imperceptível. Na rua as motos barulhentas não passavam e não se ouvia ruídos de pessoas caminhando ou conversando. A sensação era a de que a comunidade havia parado para se ver espelhada na televisão.
Acabam as cenas do filme e a “fantástica” Glória Maria anuncia que algumas pessoas foram convidadas para comentar o documentário. Fiquei paralisada e ao mesmo tempo apreensiva, finalmente a Globo ia colocar pessoas para comentar. Afinal de contas esse documentário não poderia acabar seco como acabou a reportagem feita pela Regina Casé sobre o medo que as crianças têm do caveirão. Mas foi só ilusão.
Queremos saber a opinião do Lula e do papa
A “fantástica Glória” aparece e anuncia os nomes dos convidados. No mesmo momento levantei do sofá, levei o meu namorado ao portão. A rua já voltava a ficar cheia e os seus característicos sons já podiam ser ouvidos. Pensei: – Será que as pessoas também não queriam ouvir os convidados ilustres e muito bem selecionados pela a Rede Globo? Tomara que sim, porque foi uma vergonha jornalística. Como uma empresa que arrota qualidade jornalística convida noveleiros para comentar a vida real. Pareceu-me que tudo o que tinha acabado de ser exibido fazia parte de uma ficção, mas que o Manoel Carlos jamais escreveria porque ele só gosta de falar do Leblon.
Não somos Homers Simpsons
Nós, da favela, queremos o secretário dos Direitos Humanos, o secretário da Infância e da Juventude, o Lula e o papa. O que vocês pensam que somos, um bando de idiotas e debilóides, uns Homers Simpsons que só sabem ver novela e não consegue diferenciar ficção de realidade? Tenham mais respeito com a sociedade brasileira. Tenho nojo desse jornalismo bestial! E espero, do fundo do meu coração, que este documentário não seja apenas mais uma bomba de efeito moral como deseja a Globo.
(Renata Souza é estudante de Comunicação da PUC-RJ, participa do Coletivo do NPC e da Renajorp e é moradora da Maré)