[Por Marina Schneider]
A importância de se aprovar uma nova lei para a comunicação no Brasil que democratize o setor e amplie a liberdade de expressão foi destacada pelos palestrantes da última mesa desta sexta-feira, 23.11, no 18o Curso Anual do NPC. Participaram do debate o jornalista e membro do Coletivo Intervozes, João Brant, e a jornalista e membro do Centro de Estudos da Mídia Barão de Itararé. Os dois também fazem parte do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação.
João Brant iniciou sua fala pontuando que o a regulação dos meios de comunicação não é um tema óbvio. “Nós que estamos aqui sentimos na pele, no dia-a-dia, que tem alguma coisa errada quando a gente não vê nossas ideias refletidas, quando a gente vê os grandes meios de comunicação sendo usados apenas para trabalhar de forma contrária às pautas que a gente está querendo fazer avançar… A gente sente que questões muito básicas para o trabalhador não conseguem nem ter acesso aos grandes meios de comunicação por um boicote da grande mídia, nós vemos que tem alguma coisa errada”, explicou. Ele fez uma apresentação sobre a questão da liberdade de expressão e democracia trazendo textos reconhecidos internacionalmente sobre o tema, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que trata da liberdade de expressão e opinião em seu artigo 19 e indica que liberdade de expressão se trata de procurar, receber e difundir informação por qualquer meio de expressão. Depois, João citou o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, que tenta detalhar mais esses direitos e afirma que o exercício da liberdade de expressão implica em deveres e responsabilidades especiais. “Já pelos pactos internacionais a liberdade implica em responsabilidade”, reforçou, lembrando que o próprio ordenamento internacional aponta que a liberdade de expressão não é um direito absoluto e pode sim estar sujeita a restrições para assegurar os direitos das demais pessoas. Depois, citou a Convenção Americana de Direitos Humanos, que dita as ações da Organização dos Estados Americanos (OEA) e aponta que a informação não pode estar sujeita a censura prévia, mas sim a responsabilidades a posteriori. Ainda assim, a convenção admite a censura prévia quando os direitos de crianças e adolescentes estão em jogo.
Ainda falando sobre o quadro legal, mas tratando especificamente do Brasil, o jornalista relatou que a Constituição Brasileira de 1988 aprovou pela primeira vez um capítulo específico para comunicação, com cinco artigos sobre essa questão. Pela Constituição, os meios de comunicação não podem ser objeto de monopólio ou oligopólio, mas o texto não define o que é ou não é monopólio, o que é um problema. “O Brasil discute se a Nestlé pode comprar a Garoto, se Sadia pode se fundir com a Perdigão, mas não hora de se discutir comunicação não há parâmetro”, comparou. Lembrando que a radiodifusão é um serviço público, o jornalista criticou: “Qualquer serviço público tem regras claras e uma maneira de você se defender se este serviço não estiver cumprindo seu papel. É assim com a luz, com o transporte etc. e deveria ser assim com a comunicação”.
Com base nesse arcabouço, João mostrou os principais pontos sobre liberdade de expressão que balizam o Brasil na área de comunicação. Os dois primeiros são que a liberdade de expressão pertence aos cidadãos e não deve sofrer interferência nem do público e nem do privado. “Não se pode pensar a liberdade de expressão como direito de um veículo”, explicou, exemplificando que a liberdade de expressão do William Bonner, que fala para 60 milhões de pessoas, não é a mesma dos veículos de um sindicato. “O que estamos tentando reconhecer é que não basta não ter interferência do governo. É preciso também que sejam garantidas a todos e todas as iguais condições do exercício dessa liberdade”, explicou. Mas, segundo ele, como isso está apenas no papel, não adianta trabalharmos com um cenário utópico descolado das estruturas econômicas e acharmos que teremos o mesmo direito de William Bonner. “Mas precisamos olhar essa situação e pensar que enquanto houver impeditivos técnicos, políticos e sociais que fazem com que essa diferença seja tão grande, o Estado deve agir para garantir o direito de cada um dos cidadãos”, afirmou, ressaltando ainda que liberdade de expressão se garante também quando o governo dá os meios para que os cidadãos possam exercer essa liberdade. Segundo ele, o debate internacional é muito baseado na visão de que os governos querem interferir na liberdade de expressão. “Isso pode acontecer, mas o governo pode ser também o garantidor da liberdade de expressão, como no caso da Argentina”, pontuou, citando a Lei de Comunicação Audiovisual argentina, mais conhecida como Ley de Medios, que combate o monopólio dos grandes grupos midiáticos do país e hoje é base para a promoção da diversidade informativo-cultural no país.
Outro ponto que de acordo com João Brant é esquecido pelos meios de comunicação comerciais brasileiros é que liberdade de expressão implica em responsabilidades ulteriores. “Todos os meios de comunicação que falam coisas que violam os direitos de outras pessoas têm que ser responsabilizados por isso”, reforçou. O último ponto destacado por ele é que a liberdade de expressão não tem caráter absoluto e deve ocorrer junto com outros direitos fundamentais. “Liberdade de imprensa é fundamental, mas não é um direito e sim uma garantia que dá sustentação aos direitos de expressão e informação. Se a liberdade de imprensa está sendo usada para escamotear pontos de vista ela não está cumprindo seu papel”, explicou.
Ele avaliou que hoje em muitos casos os meios de comunicação impedem a difusão de ideias diversas, criando obstáculos para a liberdade de expressão, configurando uma ausência de pluralismo na mídia e o silenciamento de muitas vozes. Lembrando a frase de Millor Fernandes que dizia que “jornalismo é oposição, o resto é armazém de secos e molhados”, Brant afirmou acrescentou sobre o jornalismo atual no Brasil: “Em geral, jornalismo é oposição ao poder político e ‘babação’ do poder econômico”. O jornalista defendeu que um novo marco regulatório para a comunicação é condição fundamental para a liberdade de expressão e para o exercício do direito à comunicação, mas apontou que uma nova lei não é de interesse do poder político e nem do poder econômico. Ele lembrou que o projeto de marco regulatório escrito por Franklin Martins, ex-ministro da Comunicação de Lula foi entregue pronto ao atual ministro Paulo Bernardo e nada aconteceu. “Vamos parar de esperar o governo porque dali o marco não vem. Parece que está pouco disposto a comprar essa briga”, advertiu.
Por uma nova lei de comunicação que aprofunde a democracia
João lembrou, então, do movimento realizado por várias entidades da sociedade civil e liderado pelo Fórum Nacional de Democratização da Comunicação que construiu, com base nas propostas da I Conferência Nacional de Comunicação, ocorrida em 2009, uma proposta com 20 pontos para nortear o debate sobre o marco regulatório. Desse movimento surgiu, em agosto deste ano, a campanha Para expressar a liberdade, iniciativa de dezenas de organizações que acreditam que uma nova lei geral de comunicações é necessária e urgente para democratizar o setor. Ele convocou todos os presentes a participar da campanha. “É preciso deixar claro que quem está do lado da democracia são os grupos que defendem a democratização da comunicação e não aqueles que se beneficiaram da ditadura e usam o discurso da ditadura para, na verdade, ter privilégios”, concluiu.
Complementando a fala de João Brant, Renata Mielli pontuou que todas as entidades do movimento sindical, popular, movimento de mulheres, movimento estudantil e outros devem ver a luta pela democratização da comunicação como estratégica para a afirmação da nossa democracia. “Sem uma nova lei das comunicações a gente vai ter mais dificuldades para conquistar avanços nas lutas dos trabalhadores, nas lutas das mulheres e contra qualquer tipo de discriminação justamente porque os meios hegemônicos fazem a divulgação contrária das nossas lutas, criminalizam os movimentos sociais e não divulgam a luta dos trabalhadores”, alertou.
Ela fez uma breve contextualização política de como se comportou a mídia e como estava o estágio de democratização até 2002, quando Lula ganhou as eleições, ressaltando que a mídia cumpriu o papel de auxiliar o projeto político que estava sendo implantado no país. “Os meios estiveram em todo momento incentivando a implantação do modelo neoliberal no país que tantos problemas nos traz até hoje”, lembrou. Esse era um período de grande ofensiva contra os movimentos sociais e a gente vivia uma pauta política de resistência e denúncia. “Infelizmente a luta pela democratização da comunicação não era a pauta principal dos movimentos sociais, que nesse momento estavam resistindo à ira do projeto neoliberal”, pontou. Segundo ela, a partir de 2003 com a eleição de Lula houve uma mudança de trajetória. “A mídia foi um dos primeiros segmentos a se organizar para fazer oposição ao governo Lula”, recordou. “Apesar do comportamento golpista da mídia o governo não agiu para promover mudanças no campo das políticas de comunicação e de construção de uma nova legislação para o setor no país, o que foi um erro estratégico”, lamentou, destacando ainda que no Brasil os meios de comunicação de massa impõem a pauta econômica, ideológica e cultural. “Se a gente não enfrenta o monopólio da opinião única que circula nos meios de comunicação nós não vamos conseguir fazer o nosso projeto político florescer”, disse. Renata pontou que outros países da América Latina, no entanto, perceberam o quão estratégica é a área de comunicação e começaram a fazer mudanças em seus marcos regulatórios para democratizar o setor.
Apesar de o cenário ser muito mais positivo em países como Venezuela, por exemplo, Renata avaliou que nos últimos 10 anos a luta pela democratização da comunicação no Brasil cresceu bastante e teve como emblema a I Confecom em dezembro de 2009. Renata aponta que de lá para cá os meios de comunicação começaram a enfrentar essa pauta e pautar a regulação como se fosse censura. “Para eles, liberdade de expressão significa uma terra sem lei onde não haja regras e eles possam fazer aquilo que bem entendem sem ter responsabilidade”, enfatizou. A seu ver, é o Estado que tem que atuar de forma decisiva para garantir liberdade e pluralidade, construindo regras a partir de um diálogo amplo com a sociedade. “Queremos que toda a sociedade participe do debate sobre uma nova lei que tenha o objetivo de aprofundar nossa democracia e não de cerceá-la. Queremos uma lei onde novos atores possam ingressar e atuar nos meios de comunicação”, ressaltou. “Por que só os atuais grupos econômicos podem ter concessões de rádio e televisão? Por que não se estabelece um critério mais transparente e republicano para que novos grupos econômicos possam pleitear uma outorga? Por que não temos direito de antena para os movimentos sociais? Por que não podemos ter incentivo e garantias para ter um sistema público de comunicação forte em nosso país? Por que as TVs e rádios comunitárias são tratadas como caso de polícia”, questionou, apontando que tudo isso precisa ser revisto em um novo marco regulatório de comunicação.
Renata apontou como uma grande dificuldade de se estabelecer esse debate o fato de que os meios de comunicação estão criando um senso comum de que regular é censura e de que ‘a gente se vê por aqui’. “Temos que lutar contra o senso comum e isso é muito difícil”, pontuou. Ela criticou fortemente o argumento de que o controle remoto seria um mecanismo democratizador, argumento muito utilizado por aqueles que defendem a manutenção da desregulamentação. “De que adianta uma TV se o conteúdo é o mesmo? Você pode mudar de canal quantas vezes quiser e a programação é a mesma”, advertiu.
Contando sobre uma recente viagem à Venezuela, Renata relatou que, apesar do que a mídia hegemônica tanta passar, ela nunca tinha visto tanta liberdade de expressão. “Chávez criou novos canais de rádio e televisão públicos que fazem o debate, politizando a sociedade, elevando seu grau de consciência, o que faz com que o debate vá para outro patamar”, explicou. De acordo com a jornalista, enquanto não fizermos o mesmo não conseguiremos enfrentar discussões como a da descriminalização do aborto. “Onde vamos discutir que essa é uma questão de saúde pública? Os meios de comunicação vão nos dar espaço?”, questionou.
Renata recomendou a todos que assistissem ao vídeo 7D, feito pelo governo argentino que explica a Lei de Meios. Sobre o caso brasileiro ela alertou: “ou a gente faz um amplo movimentos social e de massas para incidir sobre a correlação de forças, alterar essa correlação de forças e pressionar o governo para colocar essa questão em debate público, ou isso não vai pra frente”. Daí a iniciativa Para expressar a liberdade, já citada por João Brant, que está aberta à adesão de entidades e pessoas. “Outros países da América Latina estão avançando. Não é fácil, mas o Brasil tem que dar sua contribuição e seu exemplo se o país quiser manter numa trajetória política que não retroceda para os tempos da década de 1990, do projeto neoliberal, que está muito vivo e a gente precisa estar de olhos bem abertos e fortes na luta para que o país possa avançar”, concluiu.