Foto: Gustavo Stephan/Projeto Colabora

Por Jaqueline Suarez/NPC para o Diário da Pandemia na Periferia

Como garantir a segurança e a vida dos detentos durante a pandemia quando o simples ato de lavar as mãos se torna uma façanha nos presídios, já que a água é racionada, quase um luxo? A superlotação também torna quase impossível as medidas de distanciamento: temos uma população carcerária no Rio de Janeiro de 51.511 presos para uma capacidade de 28.688 vagas no sistema prisional.

Se historicamente o avanço de doenças infecciosas dentro das prisões brasileiras sempre foi algo difícil de controlar, devido ao descaso das autoridades, a uma assistência precária de saúde, aos cárceres superlotados e insalubres, a situação agora se tornou ainda mais dramática com o novo coronavírus.

Dentro das unidades prisionais, “a água é aberta duas vezes ao dia e é por pouco tempo”, como conta Christiane Pinajé da Associação dos Familiares e Amigos dos Presos e Egressos do estado do Rio de janeiro (AFAPERJ). Christiane passou a atuar no movimento pelo desencarceramento em 2016, após a prisão de seu filho. Ela conta que é comum familiares levarem baldes e garrafas PET para que os internos possam armazenar água: “quando abre, eles guardam para fazer a higiene, tomar banho, escovar dente e lavar roupa”.

Foto: Acervo MNPTC

A política de racionamento, comum nos presídios, continua em vigor durante a pandemia do novo coronavírus. Dentro das celas, lavar as mãos com água e sabão não é uma tarefa tão simples, o que afeta diretamente a saúde dos internos. O reforço das ações de higiene é a recomendação principal da Organização Mundial de Saúde (OMS) para conter o avanço da Covid-19.

“No pátio de visita tem muita mosca, tem que ficar abanando e cobrindo as comidas. As celas são terríveis também; meu filho conta que são totalmente insalubres. Teve uma unidade em que ele ficou no Complexo de Gericinó que inundou duas vezes durante as enchentes deste ano. A água entrou nas celas; quase um metro de água”, relembra Christiane. Após quatro anos, seu filho deixou o Complexo de Gericinó em maio deste ano, no momento em que o Estado do Rio chegava ao ápice do número de casos e mortes por Covid-19.

Famílias estão sem notícias dos presos

A chegada da pandemia e a adoção das políticas de afastamento social aumentaram o isolamento vivenciado no interior dos presídios. Isso porque para tentar retardar a entrada da doença, as visitas foram suspensas em março e, desde então, os familiares não têm mais notícias dos presos.

Desde então, “as pessoas não têm notícia nenhuma de seus parentes presos”, relata Christiane. Cartas, telefonemas ou conversas virtuais não estão autorizados e nem mesmo as unidades prisionais fornecem informações às famílias. Christiane avalia que “o correto seria a visita por videoconferência”, medida que, aos poucos, vem sendo implantada por alguns estados. No último final de semana (25), começaram as visitas virtuais no sistema prisional de São Paulo.

A falta de contato deixa as famílias apreensivas e também dificulta o envio de objetos necessários para sobrevivência do lado de dentro. Segundo Christiane, é durante as visitas que os internos pedem aos familiares as coisas de que precisam. Material de limpeza, sabonete, pasta de dente e outros produtos básicos para higiene pessoal são fornecidos pela família do preso. Os itens enviados fazem parte da custódia, que chegou a ser proibida no começo da pandemia, em março, mas dias depois foi retomada. Atualmente, os familiares levam o material até a porta do presídio e, após revisão, os itens dão entrada na unidade.

No entanto, uma medida recente da Secretaria de Administração Penitenciária (SEAP) deve dificultar esse processo nas próximas semanas: os advogados foram proibidos de fazer a entrega da custódia. Segundo Christiane, a medida é “um castigo coletivo” e, se for concretizada, irá “prejudicar muitas famílias”. Isso porque, para idosos e pessoas do grupo de risco, que não podem entrar no Complexo de Gericinó, o envio da custódia pelos advogados é um serviço essencial. A medida, que entra em vigor a partir do dia 27 de agosto, foi anunciada após a apreensão de chips telefônicos no material entregue por um advogado.

A saúde no sistema carcerário

“Antes da pandemia já se evitava ir à Upa [Unidade de Saúde], porque para isso era preciso acionar o carro da SOE [Serviço de Operações Especiais] e eles não gostam desse tipo de serviço. A pessoa que está encarcerada vai adiando ao máximo ir até o médico porque tem que entrar nesse carro e é sempre um esculacho na ida e outro na volta”, explica Christiane.

Ela conta que a dificuldade em ter acesso a tratamento médico dentro das unidades prisionais é uma realidade antiga. Para dores mais leves, febre ou infecções moderadas, o socorro costuma vir de fora: “na visita, o nosso familiar falava onde estava com dor e a gente levava a medicação. Tem que conseguir a receita fora, implorando à Clínica da Família ou ao Posto de Saúde porque o remédio só entra com a receita”, conta Christiane. A medicação e a receita médica eram entregues na própria enfermaria da unidade prisional.

Segundo Christiane, toda unidade prisional possui uma enfermaria, “uma sala com uma mesa e uma cadeira, nada além disso”. Casos que exijam atendimento médico são levados para o pronto-socorro ou para a Upa do Complexo Penitenciário de Gericinó, que concentra a assistência médica de todo o sistema prisional do Estado do Rio. Dados de um relatório do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro (MEPCT-RJ), apontam que o sistema prisional fluminense possui apenas dez respiradores, dos quais sete não estavam instalados até meados de junho.

Para aliviar a sobrecarga no sistema de saúde dos presídios do Rio, um Hospital de Campanha chegou a ser anunciado no Complexo Penitenciário de Gericinó, mas o plano foi descartado meses depois. Até o último domingo (26), a Secretaria de Administração Penitenciária registrava 312 casos confirmados e 14 mortes por Covid-19 nas unidades prisionais do Rio. A maior parte dos óbitos (12) ocorreu no Pronto-socorro Geral Hamilton Agostinho, que fica dentro do Complexo Penitenciário de Gericinó.

Os números reais, no entanto, podem ser muito mais altos por conta da baixa testagem. O índice de subnotificação nas prisões é ainda maior do que fora delas, como sugere o relatório do MEPCT-RJ: “diante da inexistência de testagem de casos suspeitos, não é possível para a SEAP identificar o tipo de síndrome gripal presente nos presos com sintomas. Essa realidade deve ocasionar a ocultação, ou não detecção de casos de COVID-19 no sistema prisional”. Dados do estudo apontam que, até o dia 2 de julho, menos de dois mil testes haviam sido realizados nos presídios do Estado, mais da metade foi destinada à testagem dos próprios funcionários.

Pessoas em privação de liberdade que estejam com suspeita ou confirmação da doença são levadas para o isolamento. “A maioria fica no local onde é o ‘castigo’, só que agrupadas. Ali tem pessoas que estão com tuberculose, suspeita de Covid… A pessoa que está com tuberculose não deveria ficar com quem está com suspeita de Covid, né?”, questiona Christiane.

As violações representam um risco ao direito à vida e têm motivado muitas denúncias. A Frente Estadual pelo Desencarceramento lançou uma plataforma para que familiares possam realizar denúncias sobre irregularidades no sistema prisional e também no sistema socioeducativo, onde estão alocados os menores de idade. As denúncias podem ser feitas anonimamente, por meio da plataforma Desencarcera RJ: http://abre.ai/desencarcerarj.

Assim, os problemas estruturais do sistema prisional são agravados por uma política de segurança pública que vê o cárcere como a única solução para o problema social da violência. Movimentos liderados por egressos das prisões, familiares e organizações ligadas aos Direitos Humanos constroem sua luta em oposição ao aprisionamento em massa. Enquanto persistirem os muros, esses grupos seguem pressionando as autoridades por condições mínimas de sobrevivência no sistema carcerário.

A Secretaria de Administração Penitenciária foi procurada para comentar as denúncias, mas não retornou o contato.

[Jaqueline Suarez/NPC faz parte da Rede de Comunicadores do NPC]