Peter Burke, historiador, professor emérito da Universidade de
Cambridge, é autor de mais de 30 livros, a maioria deles editados no Brasil e disponíveis em catálogo. Entre os mais recentes, figuram justamente aqueles que se referem ao tema da Cultura, mote da conferência que ele faz na semana que vem em Porto Alegre – caso, por exemplo, de Hibridismo Cultural (Editora Unisinos, 2003) e O que É História Cultural? (Jorge Zahar Editor, 2005).

 


O inglês Peter Burke completa 70 anos este ano reconhecido como um nome referencial nos estudos históricos, sobretudo em Idade Moderna e na chamada História Cultural. Doutor pela Universidade de Oxford, ele foi professor em Sussex e Princeton. Atualmente, leciona em Cambridge. Por e-mail, Burke antecipou para o Cultura o teor da conferência que vai proferir em Porto Alegre: “Os brasileiros”, sublinha, “são pluralistas”.
Fascina o pesquisador o fato de, aqui, um católico freqüentar sessões espíritas e visitar terreiros de umbanda. Cultura – Há duas semanas, no ciclo Fronteiras do Pensamento, o historiador Robert Darnton revisou os conceitos de cultura em Voltaire (a cultura como razão) e em Rousseau (a cultura como escravidão). Ele defendeu em seguida a necessidade de retomar um e outro. Qual poderia ser, na sua avaliação, a contribuição dos iluministas no mundo de hoje?
Peter Burke – Não tive o prazer de ouvir meu amigo Bob Darnton falar especificamente sobre esse assunto, então deixe-me começar expondo minha própria definição de cultura: atitudes, valores e mentalidades e sua expressão em objetos, práticas e performances.

 

Aprendi com os antropólogos a falar de cultura tanto no plural quanto no singular: diferentes culturas em diferentes períodos e entre diferentes grupos sociais, bem como em diferentes partes do globo. Algumas culturas são relativamente pluralistas, com diferenciações internas mescladas a conhecimento de outras culturas.


Essa situação, cada vez mais comum, graças às migrações e à globalização, dá aos indivíduos maior conhecimento de alternativas e maior liberdade de escolha de crenças, estilo de vida etc. Quanto ao Iluminismo, ele tem sido severamente criticado porque os ideais ou, se você prefere, a cultura desse movimento (razão, liberdade, tolerância, civilização etc) foram, essencialmente, criações de homens europeus de classe média ou alta, que nunca (ou quase nunca) estenderam seus ideais às mulheres, às classes desfavorecidas, aos habitantes da Ásia e da África etc. O que essas críticas mostram é que os ideais do Iluminismo podem e devem ser estendidos. Eu sustentaria a idéia de que o Iluminismo é um projeto não-finalizado que deve ser completado no mundo contemporâneo. Cultura – Também o senhor pensa em cultura como uma força transformadora,
com potencial utópico ou revolucionário
?
Burke – A cultura do Iluminismo é uma força transformadora. Se é revolucionária ou não, isso depende da cultura na qual ela é introduzida. Isso nos traz a questão da diversidade das culturas. Acredito que cada cultura é única em certos aspectos e, por isso, tem algo de valor a oferecer ao resto da humanidade, assim como cada língua representa uma visão única do
mundo – e, por isso, é uma perda para a humanidade em geral cada vez que uma língua se torna extinta. O que estou dizendo pode parecer inconsistente.

Apóio a universalização do projeto iluminista, mas também a ênfase no valor da diversidade cultural, associado à crítica ao Iluminismo. A maneira pela qual pretendo reconciliar essas idéias é através da adaptação das idéias gerais às tradições e circunstâncias locais. Por exemplo: acredito que alguma forma de democracia beneficiaria o Iraque, mas não precisaria e, na verdade, não deveria ser a forma de democracia norte-americana. Isso nos traz a idéia de hibridismo cultural. Cultura – O senhor é casado com uma historiadora brasileira e há bastante
tempo vem freqüentando o país, já tendo inclusive comentado autores nacionais importantes, como Gilberto Freyre. Qual o traço que o senhor julga
mais marcante na cultura brasileira?
Burke – Como um inglês que tem visitado o Brasil e morado aí durante um ano e, por isso, criado vários laços com a cultura (especialmente com Maria Lucia e sua família), estou naturalmente ciente de todas as diferenças entre a “cultura brasileira” (um termo que engloba uma boa dose de diversidade, como as pessoas no Rio Grande do Sul sabem muito melhor do que eu) e a cultura de meu país. Nunca tentei elencar essas diferenças (quanto a sexo, família, violência, religião, política e até esporte) em ordem de importância e não estou certo de como eu justificaria essa ordenação se tentasse fazê-la. Então, deixe-me apenas dizer que uma característica importante, relativamente forte na cultura brasileira, é a tolerância da diversidade cultural, que está ligada à hibridização. Na verdade, não estou
certo de que “tolerância” seja a palavra certa nesse contexto. Penso que os britânicos sejam relativamente tolerantes, enquanto os brasileiros são mais pluralistas. Pegue o exemplo da religião. Na Grã-Bretanha, diferentes crenças (e, no caso do cristianismo, diferentes igrejas) coexistem relativamente em paz, mas as pessoas normalmente escolhem apenas uma (ou
nenhuma). Mas, no Brasil, minha impressão é de que os católicos podem ir a sessões espíritas ou visitar terreiros como se todas essas práticas religiosas estivessem lá para serem escolhidas e utilizadas quando a pessoa quiser. Acredito que no Brasil até os protestantes não obtêm sucesso em manter fiéis exclusivos, ao contrário do que acontece na Europa e nos Estados Unidos. Em outras palavras, estamos falando não apenas da justaposição de diferentes culturas no espaço, mas também de indivíduos praticando o pluralismo. Cultura – O Brasil seria um exemplo bem fundamentado daquilo que o senhor
chama de “hibridismo cultural”, a capacidade de aproximar, absorver e
recombinar elementos de diferentes culturas?

Burke – É inevitável que esse tipo de coexistência ou convivência, implicando em diálogo, negociação e tradução cultural, levará, com o passar do tempo, à mistura ou hibridização. Desde 1500, o Brasil se mostra como um bom exemplo – ou uma série de exemplos – de hibridismo cultural. Não um exemplo único, ainda que mais espetacular do que a maioria. Pense, por exemplo, na maneira como a religião japonesa misturou xintoísmo, budismo,
daoísmo, confucionismo e, finalmente, o cristianismo. A interação entre as religiões pré-cristãs produziu uma espécie de mistura uniforme (como uma sopa, se você ficar mexendo sem parar!). Então, talvez devêssemos distinguir tipos de hibridismos e afirmar que o que caracteriza o Brasil é uma semi-hibridização, permitindo que grupos de imigrantes mantenham muito de sua pr] ]>