O filme “1,99”, de Marcelo Masagão, faz a crítica do consumismo. Mostra que a vida dominada pela mercadoria pode ser levada à destruição. A ironia é que foi aceito no mundo das mercadorias sem maiores preconceitos. Por Sergio Domingues, outubro de 2004
 

Um supermercado que exibe todas as mercadorias em embalagens brancas. Na brancura das embalagens estão escritas frases publicitárias famosas, como “abuse e use”, “para quem sabe o que quer” etc. Pessoas apoiadas em seus carrinhos de compras circulam. Homens, mulheres, crianças, velhos e moços escolhem os produtos à disposição nas prateleiras. Situações típicas da sociedade de consumo se repetem. Não há diálogos. Só a música estranha de Wim Mertens e André Abujamra. Este é basicamente o roteiro de “1,99”. 

O filme mostra situações que provocam o pensamento. É o caso da seção em que todos os produtos apresentam frases começadas pela palavra “você”. “Você, mais bonito”, “você, mais charmosa”, você isso, você aquilo. Tudo se referindo a qualidades positivas, claro. O cliente posta-se diante das inúmeras mercadorias e tem que escolher. Estranha escolha essa, de um sujeito dividido entre as várias possibilidades de ser um “você” e acabar tendo que escolher uma e descartando as outras. É o próprio retrato do indivíduo na sociedade capitalista, cujas escolhas se limitam a marcas e slogans. Nenhuma delas o representa, mas ele continua tentando.

Outro aspecto interessante é a presença de um cenário externo ao supermercado, feito de velhos pneus amontoados. Pessoas circulam um tanto desorganizadamente por ele. Entre eles, há negros, que praticamente não aparecem entre os clientes do supermercado. Aparentemente, seriam os excluídos do mundo branco e limpo do consumo, simbolizado pelo supermercado. Na verdade, alguns deles portam celulares. Portanto, não se trata de excluídos do consumo em geral. Mas de um tipo de consumo mais seletivo. E é verdade. Nem mesmo os mendigos estão excluídos do mundo da mercadoria. Também precisam fazer seu sacrifício diante do altar da mercadoria, ainda que, no caso deles, sacrifício e sacrificado sejam quase a mesma coisa.

Quando alguém do supermercado surge à porta, a atenção dos excluídos volta-se para a pessoa como se apelassem para serem admitidos. Isso acontece com dois deles, em um determinado momento. Dois homens são escolhidos para fazer parte do mundo do consumo. Mas, na qualidade de guardas de segurança. A pobreza entra no hipermercado ou no shopping como parte da força de trabalho. Recebem roupas, chapéus, toucas, que uniformizam sua aparência de acordo com padrões que não ofendam critérios de bom gosto que ninguém nunca discutiu. Padrões que vêm de cima. Derivados da indústria da alta costura. São trajes feitos para esconder o “cabelo ruim” e a “roupa brega”.

De volta ao interior do supermercado, há um cliente olhando ansioso para uma parede de produtos com vários dizeres apelativos. Enfim, escolhe um pacote estampado com a palavra “único”. Sai de cena satisfeito pela escolha. Um funcionário aparece com outro pacote “único” para substituir o que foi retirado. Nada é único no mundo das mercadorias. Mesmo assim, o mundo do consumo faz com que gostemos de pensar que sim.

Frangos, carros e o apocalipse
A câmera passeia até mostrar uma embalagem com os dizeres “Um frango em cada panela, um carro em cada garagem”. A receita de um mundo em desequilíbrio. Um frango em cada panela simboliza a dignidade cada vez mais rara da alimentação decente para todos os seres humanos. Mas, um carro em cada garagem seria um padrão que o meio ambiente não suporta. A vida passada em engarrafamentos gigantescos. Canos de descarga envenenando o ar. Se a condição para o frango na panela é o carro na garagem, o resultado é o apocalipse.

No caixa eletrônico, um homem tenta retirar dinheiro. Descobre que para fazê-lo, tem que passar o cartão várias vezes até que o rosto sério da moça da tela comece a sorrir e passe disso para um orgasmo. Aí, o dinheiro sai. Nada muito diferente da experiência cotidiana de precisar do terrível papel pintado e sentir o alívio de obtê-lo.

No centro do estabelecimento há um pedestal em que estão escritos os números “360º”. O cliente sobe, o pedestal gira, mostrando o estoque de produtos à sua disposição em toda a loja. Enquanto gira, aparecem à sua volta fotos de seus parentes, conhecidos, vizinhos. A cena parece mostrar o fetichismo da mercadoria em ação. São as mercadorias que inspiram a lembrança de pessoas. Não são as pessoas a provocarem a lembrança de mercadorias.

Diante de um espelho, um homem joga pingue-pongue consigo mesmo. Ao fundo, um painel de automóvel, com volante e tudo preso à parede. Mais tarde, uma cliente virá manipular o volante, acionando a exibição de imagens na parede, com belas paisagens. Talvez, uma referência aos vídeo-jogos e à tevê, cada vez mais experiências solitárias, cujo prazer vem de estímulos e experiências artificiais.

Na disputa pelo último frasco, cujo rótulo diz “porque somos mamíferos”, dois homens rolam no chão, trocando tapas e murros. Os outros assistem impassíveis. Brigar pelo último exemplar de uma mercadoria tornou-se tão natural quanto a disputa de territórios no mundo animal.

Outra cena mostra uma cliente relembrando seu sonho infantil de ser astronauta transformar-se em sua condição adulta de gerente de marketing. As expectativas se achatam em direção a tarefas que rondam a circulação das mercadorias e não as órbitas estelares.

Vacas com leite escuro: “apenas faça”
Outra cliente encontra uma caixa com as palavras “no limits”, palavras inglesas para a frase “sem limites”. Retira a caixa e descobre uma passagem. Como a Alice do País das Maravilhas, ela entra pelo buraco e sai num lugar escuro. Quando a luz chega, mostra uma vaca de cujas tetas sai um líquido escuro. Como não “há limites”, o líquido pode ser sangue, café, chocolate. No corpo da vaca, as palavras “just do it” (“apenas faça”). É um slogan da Nike que convoca para a ação sem hesitações. Conselho que as multinacionais seguem, com suas manipulações genéticas, seus transgênicos e agrotóxicos, uso de hormônios em frangos e gado. Em nome do lucro “apenas faça”, mesmo que as vacas dêem leite escuro.

Bolas circ

ulam pelo chão, entre os pés dos clientes, com a frase “qual será o segredo?” Um dos funcionários do supermercado encontra uma caixa sem letras numa das prateleiras. Abre a embalagem. É um rato sobre um fundo com os dizeres “fetiche?”. Depois de algumas cenas, outra caixa branca é encontrada. Esta traz uma cobra. As letras escritas no fundo da caixa formam a palavra “necessidade?”. A próxima cena mostra a cobra da necessidade engolindo o rato do fetiche.

Várias cenas se seguem a esta, algumas de significado mais explícito, outras, nem tanto. Mas a cena que está descrita acima parece ser a que mais simboliza o impasse em que vive a humanidade.

Fetiche é o fenômeno religioso que atribui a um objeto propriedades mágicas ou sagradas. É a figa, o crucifixo, o patuá. A mercadoria ganhou propriedades sagradas no capitalismo. Compramos mercadorias pensando que estamos apenas satisfazendo necessidades. Mas, a necessidade se dilata como uma jibóia engolindo um boi. Já não é somente a alimentação e a roupa. Também é a diversão, são as sensações diferentes e sucessivas, a urgência da felicidade sem interrupções ou com intervalos cada vez menores. Nada de especialmente errado. O ser humano jamais cercará todas as suas necessidades. Estaremos mais próximos da liberdade, quanto mais perto estivermos de satisfazer um número maior de necessidades. Mas a liberdade jamais será total porque jamais satisfaremos todas as necessidades que formos capazes de criar ou encontrar.

O problema é que no capitalismo, a grande maioria das pessoas que precisa fazer uso de necessidades básicas, como alimento e abrigo, o faz de forma precária porque não dispõe de meios de troca suficientes. Mais exatamente, de dinheiro. Quem não dispõe de dinheiro, mal consegue comer e se proteger. Quem tem dinheiro em grande quantidade, pode se dar ao luxo de controlar a necessidade de comer para ficar magro. Pode criar a necessidade de expor sua pele ao sol tórrido para escurecer a pele.

A catástrofe social e ambiental
Mas essa disponibilidade tem seu preço. Ela está baseada na injustiça e na exploração. O preço das contradições que cria é social e ambiental. Contra a injustiça e a exploração, há o crime ou a ação revolucionária. O primeiro, leva à barbárie. A segunda tenta construir o caminho oposto, o do socialismo. Resultado da injustiça e da exploração pode ser a catástrofe ecológica. Um outro tipo de barbárie, que não exclui o primeiro. É a cobra engolindo o rato. A necessidade engolindo a mercadoria como se esta fosse fonte de energia, mas está viva por dentro de sua predadora, mordendo lhe as tripas, até que o organismo arrebente.

A cena final mostra um cliente subindo no pedestal “dos 360º” e explodindo. Letras e números voam por todos os lados até que combinam-se para mostrar o título do filme: 1,99. Uma referência ao sonho consumista de reduzir o preço de todas as mercadorias a um só valor. Uma ambição criada no Brasil pela ilusão do Plano Real, que virou pesadelo. Milhões de desempregados e trabalhadores mal pagos viraram marginais no mercado consumidor e definitivamente exilados do mundo consumista.

Por todas essas oportunidades de discussão, o filme de Masagão merece ser assistido. Mas, tem um formato e uma linguagem que dificultam sua assimilação pela grande audiência acostumada com novelas. Afinal, a produção exige a leitura de frases e palavras o tempo todo. Além disso, muitas das situações exigem algum conhecimento prévio de textos e discussões sobre as formas com que o capitalismo impõe o reinado da mercadoria sobre a vida das pessoas. 

Talvez seja por isso que diretor tenha obtido permissão junto a grandes marcas do mercado para utilizar seus slogans publicitários. Também é irônico o fato de que o desfile de logotipos dos patrocinadores da obra tome dois minutos do início da exibição. Afinal, Masagão afirma que se inspirou no livro “Sem Logo”, de Naomi Klein, para iniciar o projeto. Parece que mesmo um bom filme contra o consumismo pode se aceito sem preconceito pelo mundo das mercadorias.

Me desculpem os mais exigentes, mas algo no estilo Michael Moore seria mais interessante.
 

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