Publicado no Jornal da Seção Sindical dos Docentes da UFRJ (ADUFRJ) – 10 de março de 2008


No livro O Dia Internacional da Mulher – Os verdadeiros fatos e datas das misteriosas origens do 8 de março, até hoje confusas, maquiadas e esquecidas (1984), a autora canadense Renée Cote questiona as certezas dos movimentos feministas a respeito do surgimento da data de 8 de Março como referência para a celebração do dia internacional de luta das mulheres. Como afirma o escritor e um dos coordenadores do Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC), Vito Giannotti, Renée Cote derrubou um mito caro às feministas. “Assim como, para muitos, é mais fácil aceitar a historinha de Adão e Eva, criados do barro, uns seis mil anos atrás, do que questionar as origens do homem, bem mais complexas, centenas de milhares de anos atrás”, comenta Gianotti em artigo de 2004, publicado em www.piratininga.org.br.

Segundo o escritor, apesar da polêmica gerada entre os ativistas dos movimentos feministas, o que fez o livro da autora canadense não ter ganhado destaque nos movimentos partidários e sindicais foi o fato de ela deixar transparecer, o tempo todo, sua visão favorável à autonomia dos movimentos sociais frente aos partidos. “O livro se insere no grande leito de luta autonomista, típica dos movimentos de esquerda dos anos 1970. Isto cria uma animosidade com muitos setores da esquerda mais influente, que poderiam divulgar sua obra”.

Em seu texto, Giannotti analisa porque, em plena Guerra Fria, os blocos em disputa, socialista, hegemonizado pela antiga URSS, e os capitalistas americano e europeu aceitaram a versão de uma greve de mulheres, em 1857, nos EUA, e esqueceram uma outra greve de mulheres, em 1917, na Rússia, que, segundo Renée, seria a origem das lutas das mulheres socialistas e, por conseguinte, das lutas feministas contra o machismo típico dos sistemas liberais.

Além das pesquisas da historiadora Renée Cote, há outros artigos que tratam da polêmica sobre a paternidade, ou melhor, ‘maternidade’ do dia internacional das mulheres. Oito de Março: Conquistas e Controvérsias (1999), de Eva A. Blay; O Mito das Origens: sobre o Dia Internacional da Mulher (1982), de Liliane Kandel; 8 de Março, Dia Internacional da Mulher: em busca da memória perdida (2000), da Sempreviva Organização Feminista (SOF), são exemplos apontados por Gianotti.

“Na década de 1960, o mundo vivia uma grande convulsão político-ideológica. Somente no começo dos anos 1970, o jogo se define e o bloco ocidental estadunidense, isto é, capitalista, leva a melhor sobre o bloco soviético, socialista. Esta década foi um vendaval nos costumes e ideologias do mundo. As mulheres americanas e européias haviam descoberto a pílula e as dos países do Terceiro Mundo, a metralhadora, nas guerrilhas lado a lado com os homens”, comenta o autor.

Giannotti relembra que, nesse caldeirão cultural mundial, em 1968 e 1969, nas cidades de Chicago e Berkley, nos Estados Unidos, a idéia do Dia Internacional da Mulher é retomada através de boletins e jornais feministas.

O que a história ‘oficial’ não conta é que, no começo do século passado, o Dia da Mulher se caracterizou como um dia de luta socialista. As duas guerras mundiais, a burocratização da União Soviética e o avanço do capitalismo e da social democracia européia contribuíram para o esquecimento do caráter socialista do 8 de Março. “É nesse clima político-ideológico que será retomada a idéia de se comemorar uma data internacional para a luta de libertação das mulheres”, comenta Gianotti.

A origem do mito

Tradicionalmente, trabalhadoras do mundo inteiro homenageiam no Dia da Mulher 129 operárias mortas em uma greve numa fábrica de tecidos, em 1857, em Nova Iorque.
As trabalhadoras foram trancadas em uma sala de trabalho que haviam ocupado e morreram queimadas em um incêndio provocado pelos donos da fábrica. De acordo com Vito Gianotti, a primeira menção a essa greve aparece no jornal do Partido Comunista Francês L ´Humanité, às vésperas do 8 de Março de 1955. A fixação da data, no entanto, aparece em 1966, em um boletim da Federação Internacional Democrática das Mulheres, na República Democrática Alemã.

O artigo no boletim das trabalhadoras alemãs fala rapidamente do incêndio de 8 de março de 1857 e depois diz que em 1910, durante a 2.ª Conferência da Mulher Socialista, Clara Zetkin, dirigente do Partido Social-democrata Alemão teria proposto o 8 de Março como data do Dia Internacional da Mulher, em homenagem às tecelãs mortas na greve de 1857.

A confus

ão acabou sendo feita porque o L’Humanité não falou das 129 mulheres queimadas. As grevistas mortas começam a ser mencionadas apenas na publicação da Federação das Mulheres Alemãs, alguns anos depois. Esta história, segundo Giannotti, fictícia, teria origem em duas outras greves ocorridas na mesma cidade de Nova Iorque. A primeira, “uma longa greve real, de costureiras, que durou de 22 de novembro de 1909 a 15 de fevereiro de 1910”. A segunda greve foi em 29 de março de 1911, quando foi registrada a morte de 146 pessoas, em sua maioria mulheres, durante um incêndio causado pela falta de segurança nas péssimas instalações de uma fábrica têxtil na maioria.

“Esse incêndio foi descrito pelos jornais socialistas, numerosos nos EUA naqueles anos, como um crime cometido pelos patrões, pelo capitalismo”, explica Gianotti, afirmando que as dezenas de operárias mortas nas chamas deste incêndio na greve de 1911 nos dariam a pista para o nascimento do mito da greve de 1857, na qual teriam morrido 129 operárias num incêndio provocado propositadamente por seus patrões. “E como se chegou a criar toda a história de 1857? Por que aquele ano? Por que nos EUA? A explicação, provavelmente, é a combinação de casualidades, sem plano diabólico pré-estabelecido. Assim como nascem todos os mitos”, comenta.

Segundo Gianotti, a canadense Renée Côté pesquisou, durante dez anos, em todos os arquivos da Europa, EUA e Canadá e não encontrou nenhum traço da greve de 1857. Nem nos jornais da grande imprensa da época, nem em qualquer outra fonte de memórias das lutas operárias. Pouco a pouco, o mito da greve das 129 operárias queimadas vivas se firmou e apagou da memória a histórica luta de mulheres e de homens em greves e congressos socialistas reais que determinaram o Dia das Mulheres, a sua data de comemoração e o seu caráter político.

Segundo Gianotti, a idéia da libertação da mulher nasce com o movimento socialista, no final do século XIX e começo do século XX. “As raízes desta batalha podem ser encontradas nos escritos de Marx e Engels. A visão da família, da mulher proletária e da burguesa que permeiam A Origem da Família, da Propriedade e do Estado, de Engels, é a base da visão dos socialistas sobre a necessidade da libertação da mulher proletária.

A verdadeira história do 8 de março

Como diz o próprio Gianotti, “derrubar o mito de origem da data 8 de Março não implica desvalorizar o significado histórico que este adquiriu. Ao contrário, significa voltar às origens do ideal socialista da maioria das mulheres que lutavam por um mundo novo sem exploração e opressão do homem pelo homem e especificamente da mulher pelo homem”.

Em plena Guerra Mundial, em 1917, na Rússia, as mulheres socialistas realizaram seu Dia da Mulher no dia 23 de fevereiro, pelo calendário russo. No calendário ocidental, a data correspondia ao dia 8 de Março. Era o mesmo dia que, na Alemanha, tinha sido escolhido em 1914. Foi nesse dia que explodiu a greve espontânea das tecelãs e costureiras de Petrogrado. 

Nesse dia, um grande número de mulheres operárias, na maioria tecelãs e costureiras, contrariando a decisão do Partido, que achava que aquele não era o momento para qualquer greve, saíram às ruas em manifestação por pão e paz. Declararam-se em greve. Essa manifestação foi o estopim do começo da primeira fase da Revolução Russa, conhecida depois como a Revolução de Fevereiro. Em outubro o Partido Bolchevique lidera a grande Revolução Russa, nos ‘dez dias que abalaram o mundo’”, conta Giannotti.

“Em 1921, a Conferência das Mulheres Comunistas da URSS adota o dia 8 de Março como data unificada do Dia Internacional das Operárias. Nos últimos anos da década de 1920 e, sobretudo, nos anos 1930, o Dia Internacional da Mulher, seja comunista ou socialista, se perderá na tormenta que se abateu sobre o mundo. A ascensão do nazismo na Alemanha, o triunfo do stalinismo na URSS, o declínio da social-democracia na Europa e o vendaval da 2.ª Guerra Mundial enterram as manifestações do Dia das Mulheres.

Fora dos países comunistas, no Ocidente, a humanidade só voltará a falar do Dia da Mulher, no final dos anos 1960. Nesse lapso de tempo, o marco do 8 de Março, data da greve das operárias de Petrogrado, de 1917, foi esquecido. A data da vitória das revolucionárias rebeldes russas, que impôs a derrota do absolutismo do Czar e deslanchou a Revolução Russa, não interessava aos comunistas do mundo todo. Estes, quase todos, viviam anestesiados pelos encantos ou pelo terror stalinista.

Retornar à lembrança daquele 8 de Março das operárias revolucionárias de Petrogrado também não interessava à Social-democracia, rejuvenescida após a destruição da Segunda Guerra Mundial e em conflito aberto com o comunismo dos países do bloco soviético”, comenta Vito.