Por Mohammed El Oifi – Le Monde Diplomatique
No dia 2 de março, em discurso perante os membros da comissão das relações exteriores do Senado estadunidense, Hillary Clinton pronunciou as palavras que o emir do Qatar e os dirigentes da Al Jazeera esperavam desde 2001. Os Estados Unidos, explicou a secretária de Estado, “estão perdendo a guerra da informação” no mundo por causa dos grandes canais de TV privados norte-americanos “que difundem milhões de spots publicitários e debates entre especialistas”, ao passo que “a audiência da Al Jazeera nos Estados Unidos vem crescendo porque ela oferece verdadeiras informações”. E Hillary acrescentou, dirigindo-se precisamente aos senadores: “Gostem disso ou não, [a Al Jazeera] é realmente poderosa”.Ela está no processo de “mudar as mentes e os comportamentos”.1
Ainda que motivada por interesses específicos – Hillary Clinton estava defendendo o orçamento de seu ministério –, tal reconhecimento do papel e do impacto internacional da Al Jazeera adquire uma ressonância particular dentro do contexto das transformações atuais do mundo árabe. No plano regional, o canal impôs seu ritmo e suas regras de funcionamento no contexto midiático, marginalizando dessa forma alguns de seus concorrentes de língua árabe e perturbando o jogo dos outros. Nesse sentido, o desafio lançado ao vivo a seus empregadores por Hafez Al-Mirazi, o apresentador-estrela do canal saudita Al-Arabiya, o principal concorrente da Al Jazeera,2 reveste-se de um significado de peso. Ao comentar a queda do regime de Hosni Mubarak, o jornalista egípcio lamentou que o veículo para o qual ele trabalhava não se atrevia a “dizer uma palavra sequer a respeito do rei Abdala e do regime saudita”. Ele concluiu seu discurso com um ultimato: “Se nós não podemos expressar nossa opinião, é melhor parar com tudo. No próximo programa, faremos uma experiência: falaremos a respeito do impacto[da revolução no Egito]sobre a Arábia Saudita. Se der certo, a Al-Arabiya é mesmo um canal independente; se não, eu agradeço e me despeço de todos vocês”.3 Aquela foi sua última aparição no canal controlado pelos interesses sauditas. Sua revolta revela o impasse no qual desembocou a estratégia midiática de Riad e a incapacidade dos responsáveis se adaptarem às novas realidades políticas. Mas esse episódio também anuncia o retorno do Egito, emancipado da tutela paralisante do presidente Hosni Mubarak, ao jogo midiático árabe, o que constituirá provavelmente o principal evento na região ao longo dos próximos anos.
Desde sua fundação, em novembro de 1996, o canal de informação 24 horas Al Jazeera revolucionou o sistema midiático regional, transformando sua estrutura e suas regras de funcionamento e questionando o equilíbrio de forças políticas que o sustenta.4 Não faltam aqueles que lhe atribuem um papel mais importante que o das redes sociais no processo que desencadeou as revoltas que abalam o mundo árabe. Assim, segundo Julian Assange, o cofundador do WikiLeaks, as redes Twitter e Facebook “exerceram de fato um papel, mas este não é comparável àquele da Al Jazeera”.5
FIM DO MONOPÓLIO SAUDITA
Os veículos de comunicação árabes singularizam-se pela existência – tornada possível por uma língua comum – de uma esfera compartilhada que transcende os Estados e os públicos nacionais, e cuja gênese remonta ao final do século XIX. As rivalidades interárabes passaram pelo controle desse espaço público, um campo no qual os países do Golfo, entre outros a Arábia Saudita e o Qatar, tomaram a iniciativa. Após a saída de cena do Egito, em decorrência da morte em 1970 do presidente Gamal Abdel Nasser, e do Iraque, em consequência da invasão do Kuait em 1990, a Arábia Saudita assumiu o controle da maior parte dos veículos de comunicação pan-árabes. Em meados dos anos 1990, o lançamento da Al Jazeera pelo emir do Qatar, o xeque Hamad bin Khalifa al-Thani, caracterizou o fim do monopólio saudita.
Em função da escolha do local para estabelecê-la, das modalidades de recrutamento de seus jornalistas e de suas opções ideológicas, a Al Jazeera introduziu uma tripla ruptura em relação à fórmula saudita. Até então, dominava a ideia segundo a qual apenas os veículos árabes instalados no exterior podiam gozar de uma liberdade relativa. A emigração de uma parte da imprensa libanesa rumo à Europa após o advento da guerra civil, em 1975, havia reforçado essa tese. O império midiático saudita estava radicado em Londres e na Itália, e tirava proveito da presença maciça de jornalistas árabes, sobretudo libaneses, que se tornaram os aliados – alguns dirão os mercenários – dos emires sauditas. A Al Jazeera pôs em xeque esse pressuposto, demonstrando que um veículo de comunicação pan-árabe instalado num país da região podia beneficiar-se de uma grande liberdade. Progressivamente, os veículos sauditas começaram a retornar para a região, entre outros para os Emirados Árabes Unidos – mas não para a Arábia Saudita.
Para motivar a simpatia e a identificação do público, os criadores da Al Jazeera quiseram que o conjunto dos funcionários do canal fosse representativo das diversas nações árabes; com isso, estava encerrada a era de dominação dos jornalistas libaneses e das estruturas sauditas.
De modo previsível, as dissensões no âmbito das equipes jornalísticas são frequentes, conforme demonstra a demissão coletiva de cinco apresentadoras do canal ocorrida no dia 25 de maio de 2010. Alguns veículos de comunicação árabes repercutidos pela imprensa internacional enfatizaram a existência de práticas de assédio moral, além da vontad
e do canal de impor um código de vestimenta rigoroso.6 Segundo explica uma das jornalistas demitidas, Joumana Namnour, as verdadeiras razões dessa revolta nada têm a ver com o modo de se vestir, sendo de ordem profissional,7 pois as apresentadoras achavam lastimável o pouco poder que lhes era dado. Assim como, por exemplo, nenhum dos numerosos programas políticos do canal é atribuído a uma mulher.
Um exame minucioso da identidade ideológica da Al Jazeera e de sua linha editorial revela a prevalência de um equilíbrio sutil entre três tendências: pan-árabe, islamizante e liberal.
O sucesso da Al Jazeera, o interesse e até mesmo a paixão que ela suscita nos públicos de língua árabe podem ser explicados não apenas pela maneira inovadora com a qual ela aborda a atualidade, mas também pela liberalidade em seus procedimentos. Ao dar a palavra à oposição, em cada país árabe, para comentar as verdades oficiais, a Al Jazeera oferece aos telespectadores verdadeiros debates contraditórios. A diversidade dos participantes, tanto do ponto de vista de sua nacionalidade, de sua sensibilidade ideológica e política quanto de seu local de residência, permitiu a circulação das ideias e dos pontos de vista, promovendo a abolição das fronteiras nacionais e driblando todas as censuras. Assim, o canal participou de maneira decisiva da formação de um espaço público árabe transnacional.8 Estruturado por canais de TV por satélite e por jornais pan-árabes, aos quais se acrescentam a internet, os blogs e as redes sociais, esse espaço tornou-se um centro de gestação onde se formam opiniões e preferências políticas a respeito de todas as questões que agitam a região.
Esse pluralismo, decorrente da multiplicação dos meios de informação transfronteiriços criados por Estados concorrentes, quer pela Arábia Saudita (Al-Arabiya), pelos Estados Unidos (Al-Hurra) ou pelo Irã (Al-Alam), resultou numa configuração político-midiática inédita na qual se sobrepõem uma esfera midiática pluralista relativamente livre e regimes políticos nacionais autoritários. Exacerbada pela audácia e influência da Al Jazeera, essa contradição exerceu uma pressão constante sobre poderes desestabilizados por essa circulação da informação. A maturação dos processos revolucionários no mundo árabe deve muito a essa tensão entre a ordem política e a ordem midiática.
Em razão do caráter artificial e até mesmo da inexistência de estruturas partidárias e sindicais suscetíveis a organizar o debate público, a Al Jazeera deixou progressivamente de ser um canal de TV ordinário. Ao longo dos últimos dez anos, foi na sua tela que foram debatidas todas as grandes questões que interessam aos povos da região. Ela passou a ser objeto de disputa em todos os conflitos, como, por exemplo, no Afeganistão e na Palestina.
Daqui para frente, quer ela emane do interior,9 quer do exterior do mundo árabe,10 a crítica das orientações do canal é parte integrante do jogo político no Oriente Médio. Na maioria dos casos, ela objetiva pôr na defensiva o governo do Qatar, pressupondo que a linha editorial da TV nada mais é do que a tradução midiática da diplomacia do Estado do Qatar. No entanto, tudo indica – nem que seja por sua cobertura das revoluções desses últimos meses – que a Al Jazeera tornou-se um fenômeno árabe, um espelho da evolução regional que extrapola muito amplamente a vontade de Doha.
TRATAMENTO MILITANTE DAS REVOLUÇÕES
Embora a Al Jazeera seja popular, ela não deixa de ser um canal controverso por razões que, aliás, não raro revelam ser contraditórias. Alguns deploram sua abertura para os israelenses (ela foi o primeiro canal por satélite a entrevistar dirigentes do Estado hebreu), outros, suas “tendências islâmicas”. Seu “antiamericanismo” é contrabalançado pela presença no Qatar do comando da 5ª Frota estadunidense, o que faz do emirado uma das ferramentas de domínio que os Estados Unidos exercem sobre o Oriente Médio.
Sua cobertura militante das revoluções árabes, sobretudo na Líbia e no Iêmen, e seu apoio à intervenção militar da Otan foram denunciados como sendo uma ingerência nos assuntos internos dos países árabes. A ausência da oposição saudita ou qatariana em sua programação, sua timidez ao abordar os eventos ocorridos no Bahrein,11 além de sua crítica incipiente da intervenção das forças sauditas e aliadas nesse reino são interpretadas como uma vontade de preservar o status quo no Golfo. Mostra da sensibilidade da Al Jazeera às evoluções regionais foi anúncio, no final de abril, da demissão do responsável pelo escritório do canal em Beiruth, Ghassan Ben Jeddou, por divergências com relação à cobertura da Líbia e da Síria, que ele julgava muito parcial.
A tese dos detratores que apresentavam o canal como uma mera “oficina islâmica” foi abalada por sua abordagem favorável das revoltas nos países na África do Norte e no Oriente Médio, nas quais os islâmicos são quase invisíveis. Além disso, o lançamento da Al Jazeera em inglês, em 2006, contribuiu para desmentir a imagem construída pelas traduções parciais e os trechos fora de contexto difundidos pelo Instituto de Pesquisa sobre a Mídia do Oriente Médio (MEMRI – Middle East Media Research Institute), com o objetivo de apresentar a Al Jazeera como um veículo de comunicação antiocidental e até mesmo antissemita.12
Ilustração: Scott Peterson / Getty Images
1 Cf. “Hillary Clinton, ‘Viewership of Al Jazeera is going up in the United States because it’s real news’”, YouTube.com, 2 de março de 2011.
2 Mohammed El Oifi, “Le face-à-face Al-Arabiya/Al-Jazeera: un duel diplomatico-médiatique”, Revue Moyen-Orient, n.6, Paris, junho de 2010.
3 Programa Studio Al Qahira, Al Arabiya, 12 de fevereiro de 2011.
4 Yves Gonzalez-Quijano e Tourya Guaaybess (dir.), Les Arabes parlent aux Arabes: La révolution de l’information dans le monde arabe, Actes Sud, Arles,2009.
5 Le Monde, 11 de março de 2011.
6 Ver artigo do jornal saudita Al Hayat publicado em 30 de maio de 2010, http://international.daralhayat.com/internationalarticle/146817.
7 Ver http://wn.com/Talk_of_the_Town__Joumana_Nammour (consultado em 21 de abril de 2011).
8 Mohammed El Oifi, “Influence without power: Al Jazeera and the Arab public sphere”. In: Mohamed Zayani, The Al Jazeera Phenomenon Critical Perspectives on New Arab Media, Pluto Press, Londres,2005.
9 Mamoun Fandy, (Un)Civil War of Words: Media and Politics in the Arab World, Praeger Security International, 2007.
10 Zvi Mazel, “Al Jazeera et le Qatar: le sombre empire des Frères musulmans?”, Controverse, www.controverses.fr Paris, n.13, março de 2010.
11 Ler “Al Jazeera a perdu sa fièvre révolutionnaire au Bahreïn”, 13 de abril de 2011.
12 Ler “Désinformation à l’israélienne”, Le Monde diplomatique, setembro de 2005.