Por Adriana Facina

A tristeza é senhora,
Desde que o samba é samba é assim

A lágrima clara sobre a pele escura,
a noite e a chuva que cai lá fora
Solidão apavora,
tudo demorando em ser tão ruim
Mas alguma coisa acontece,
no quando agora em mim
Cantando eu mando a tristeza embora

O samba ainda vai nascer,
O samba ainda não chegou

O samba não vai morrer,
veja o dia ainda não raiou

O samba é o pai do prazer,
o samba é o filho da dor

O grande poder transformador 

(Caetano Veloso, Desde que o samba é samba)

Era domingo. O dia estava agradável, sem muito calor, coisa atípica nos dezembros cariocas, e o samba corria solto na Central do Brasil. O Trem do Samba já se tornou uma tradição na cidade e ocorre todo 2 de dezembro para comemorar o dia nacional do ritmo nascido na cidade maravilhosa. A Central do Brasil é cenário cotidiano de gente indo e vindo apressada do trabalho, rostos cansados de trabalhadores e trabalhadoras brasileiras que sofrem na carne a dureza de uma superexploração que é irmã gêmea da sociedade de hiperconsumo. Trens lotados, passagens caras, distâncias a serem vencidas diariamente numa maratona infindável para garantir a sobrevivência.

Mas no dia 2 de dezembro tudo é diferente. Cerveja gelada, 2 latões por 5 reais (negociando dá pra ser menos). Atrações que se sucedem no palco montado na lateral da estação. Alguns famosos, outros nem tanto, como o cantor que falou: “gente, eu não sou famoso, então vamo dá uma ajuda aí e cantar comigo”. Velhas guardas misturadas com jovens iniciantes do samba. Na platéia, que interage o tempo todo cantando, dançando, aplaudindo e fazendo pedidos de músicas, homens e mulheres de todas as cores, velhos, crianças, casais de orientações sexuais diversas, trabalhadores, estudantes de classe média e toda uma diversidade que eu levaria a crônica inteira pra contar. Num mundo como o nosso, se é possível falar em democracia como algo além de uma palavra esvaziada de sentido, ela deve ser próxima a essa experiência.

Depois da concentração, os trens começam a partir em direção a Oswaldo Cruz, um dos bairros mais tradicionais do Rio, berço de sambistas e da Portela. Nos vagões, sempre muito cheios, os músicos se misturam com os passageiros. A animação e o aperto são tão grandes que é impossível ficar parado. Vamos sacolejando, passando de estação em estação até a comemoração final com a chegada ao nosso destino. E aí a cena é para corações fortes: aquela massa saindo do trem cantando, sambando, comemorando a própria alegria. Na passarela lotada, a empolgação transitava de um lado para o outro da linha férrea, na busca de shows, rodas de samba, conversas animadas, bebidas geladas e os maravilhosos caldinhos feitos pelas tias e vendidos no lugar.

No bairro em festa, indo do bar do Fininho até ao palco da Portelinha, esbarramos com uma roda de samba num boteco, com cobertura de lona. Em torno dos músicos, um círculo só de homens, que dançavam e cantavam letras falando de alegrias, mas também de tristezas, decepções amorosas, traições e novos reencontros. Numa sociedade machista, o samba é um dos poucos espaços onde se pode ser homem e expor publicamente o sofrimento de amor ao mesmo tempo.

Na quadra da Portelinha, quadros com dizeres sobre a união de todos ali em torno da paixão maior: a escola de samba. Sob as asas da águia, símbolo da Portela, senhores e senhoras dançavam com elegância e sensualidade. Tomávamos uma cerveja no balcão observando um casal dançar até que o senhor da dupla disse ao meu companheiro: “olha aqui ó”. E passou a exibir uma belíssima coreografia com a dama que o acompanhava, cheio de ginga nos quadris e muita sedução. Finda a dança, ele se aproximou de mim e disse: “74 anos, heim!”. O desafio estava lançado! Brindamos juntos.

No mesmo lugar, vimos crianças dançando no palco, numa exibição espontânea, mas que exigia aplausos e reivindicava em coro o frevo de Recife quando o responsável pelo som ambiente interrompeu a música que tocava e animava os passos dos dançarinos mirins. Um casal de amigos cearenses que estava conosco se encantou quando um grupo de Velha Guarda do Império Serrano, capitaneado por um senhor negro de cabelos grisalhos, entrou sambando e fazendo reverências na quadra da concorrente, numa demonstração de cordialidade e respeito.

Depois do fim dos shows no palco do lado de fora da quadra, voltamos ao Fininho, atravessando novamente a passarela. Na roda animada, conheci Ellen, estudante moradora de Madureira que foi reprovada no vestibular para História na UFF. Quando soube que eu era justamente professora de História daquela universidade, ela disse: “nossa, que legal! Eu pensava que professor de universidade era uma coisa assim distante, que não gostava de povo. Mas você tá aqui! Então quer dizer que os professores da UFF são populares assim?” Não soube responder direito, mas aprendi um pouco mais sobre a preocupante imagem que a universidade pública tem entre as camadas populares da nossa cidade.

Encerrada mais uma roda, seguimos nosso rumo. E toca a conhecer gente: Carmen, uma linda transsexual que me falou sobre a discriminação que sofre e dizendo que se achava feia. Um absurdo completo! Bela, doce, charmosa e com esse nome maravilhoso, Carmen prometeu um café e lanchinho em breve em sua casa. Um rapper que fez o papel do Neguinho em Cidade de Deus e que brilhou nas rodas entoando músicas de protesto, lembrando que a alegria só existe para os de baixo quando é arrancada à realidade dura do dia-a-dia. Uma galera que dançava funk e que nos ensinou alguns passos, meninas e meninos. Uma delas se queixava do namorado, professor de dança, que ela dizia ser “o maior galinha”. Dissemos na frente do dito cujo: “pôxa, você com uma mulher maneira dessa fica fazendo isso?”. Ela aproveitou a deixa e completou: “isso mesmo. E fiel, trabalhadora. Ele não dá valor e um dia perde”. Conversamos mais um pouco sobre relacionamentos e depois fomos embora.

Na hora da volta, as distinções de classe, que haviam perdido um pouco de sua visibilidade durante a noite, se enunciavam novamente. Raros ônibus nos obrigavam a negociar preços e destinos com as kombis enquanto quem podia pegava um dos táxis disponíveis. No trajeto, cujo destino era de novo a Central do Brasil, cansados e sob efeito de cervejas, mais conversas sobre vida, filhos, esperanças e desesperanças. Vim pensando nessa energia capaz de se sobrepor ao sofrimento, à miséria, à alienação. De fazer poesia e produzir beleza em meio à barbárie, fazendo da contradição elemento criativo. Fico imaginando Antonio Gramsci, o pensador marxista italiano e dirigente do PCI que morreu como prisioneiro do fascismo, vendo tudo isso: uma “literatura” nacional-popular que é música, é dança, é festa, é sociabilidade. Esse grande poder transformador tornado revolução vai ser sim o maior espetáculo da terra.

Adriana Facina é antropóloga, professora do Departamento de História da UFF, membro do Observatório da Indústria Cultural e autora dos livros Santos e canalhas: uma análise antropológica da obra de Nelson Rodrigues (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2004) e Literatura e sociedade (Rio de Janeiro

, Jorge Zahar, 2004.