Por Sylvia Moretzsohn
Publicado no Observatório da Imprensa

Quando recebeu, no início de novembro, um prêmio de telejornalismo pelas entrevistas com os generais Leônidas Pires Gonçalves e Newton Cruz sobre os bastidores da ditadura no Brasil, Geneton Moraes Neto escreveu uma “pequena carta aos que gastam sola de sapato fazendo jornalismo” em que afirmava: “Fazer jornalismo é produzir memória”. E concluía com a seguinte definição:

“Fazer jornalismo é desconfiar, sempre, sempre e sempre. A lição de um editor inglês vale para todos: toda vez que estiver ouvindo um personagem – seja ele um delegado de polícia, um praticante de ioga ou um astro da música – pergunte sempre a si mesmo, intimamente: por que será que estes bastardos estão mentindo para mim?”

À parte a pequena derrapagem na tradução – seguramente, “bastardos” não seria uma palavra apropriada nesse contexto –, a definição é precisa. E, se assim é – ou deveria ser –, a cobertura da ocupação militar no Complexo do Alemão, sobretudo a cobertura televisiva, é tudo menos jornalismo. Seja porque desconhece a memória, seja porque adere desavergonhadamente à versão oficial.

Como apontou Alberto Dines em artigo neste Observatório da Imprensa (ver “Mídia teve medo de falar em intervenção“), o que houve no mais recente episódio no Alemão foi uma intervenção branca do governo federal, com a participação das Forças Armadas. Antes mesmo da invasão do morro, o Exército estava nas ruas, em resposta ao clima de terror espalhado pelos incêndios a carros em variados pontos da cidade. Não custava lembrar da Operação Rio, que em 1994 também resultou de uma intervenção branca – não fosse o Rio governado por Brizola, recém-licenciado para concorrer à presidência da República – e provocou as previsíveis cenas espetaculares de tanques circulando pelo asfalto, em direção às principais favelas da cidade, eternos “lugares do mal”, apontando seus canhões para as comunidades, soldados revistando moradores e avançando com seus uniformes camuflados e seus fuzis morro acima, ou patrulhando as ruas da Zona Sul.

Alemão, três anos antes

A lembrança seria importante, no mínimo, para negar o caráter inédito da ocupação de agora e, no máximo, para questionar o sucesso de intervenções militares em conflitos sociais de enorme gravidade como os que ocorrem no cotidiano das favelas. Na época, prometia-se a “asfixia” do tráfico. Não é preciso comentar o resultado.

Mais recentemente, entre maio e julho de 2007, uma aparatosa operação reuniu 1.350 homens das polícias militar e civil e soldados da Força Nacional de Segurança para nova asfixia, desta vez restrita ao Complexo do Alemão. O pretexto foi o assassinato de dois soldados do Batalhão de Rocha Miranda, mas é claro que se tratava de “limpar” pontos explosivos da cidade para os Jogos Pan-Americanos daquele ano. Na ocasião, a operação foi apresentada como “um ataque inovador”, um “marco no combate ao crime no Brasil” (revista Época, 28/6/2007), “um marco na luta contra a criminalidade”, apesar de sangrenta e de “todos os senões e suspeitas que deixou” (O Globo, editorial, 30/7/2007). O personagem-símbolo foi um policial que tem o hábito de fumar charuto após a missão cumprida: o inspetor Leonardo da Silva Torres, conhecido como “Trovão”, com cursos na Swat americana e no Centro de Inteligência da Marinha (antigo Cenimar, de trágica lembrança dos tempos da ditadura), cujo sonho – segundo declarou aos jornais – era atuar na Faixa de Gaza ou no Iraque.

Costuma-se falar em 19 mortos durante aquela ocupação. Não é verdade: este seria o número produzido no dia mais sangrento, 27 de junho. Pela sua magnitude, acabou associado ao total de mortes, que, entretanto, foram bem mais expressivas: segundo o relatório da Comissão de Direitos Humanos da OAB, teriam sido 44 mortos e 84 feridos, muitos deles sem armas nem antecedentes criminais.

Então, como hoje, as forças policiais-militares cantavam vitória sobre o tráfico. Se fosse verdade, não teria sido necessário retornar agora.

Inexplicável reviravolta

Em fins de 2009, o governo estadual inaugurava uma nova estratégia de ação policial: as Unidades de Polícia Pacificadora, começando no Dona Marta, uma pequena favela em Botafogo que em várias ocasiões frequentou os jornais com notícias sobre guerra entre traficantes. Ali, como em quase todas as demais comunidades eleitas para receber esse aparato, a polícia entrou sem disparar um tiro.

Este detalhe surpreendente foi ressaltado – melhor diria, exaltado – no espaço noticioso de jornais que, três anos antes, afirmavam não haver alternativa para o combate ao crime a não ser o enfrentamento: “Há bandidos […] que têm de ser tratados pela mão pesada do Estado. Não há assistencialismo e ação social que os recuperem” (O Globo, 26/10/2007).

O que teria provocado a mudança de discurso é algo que apenas os editores poderiam explicar. Sobretudo porque o governo é o mesmo e o secretário de Segurança, também. Se há até dois anos antes não havia alternativas, como é que de repente se descobriu uma via tão eficaz, a ponto de o megaempresário Eike Batista – este que, aos poucos, vai abocanhando os pedaços mais lucrativos da cidade – declarar que, se soubesse que era tão fácil “acabar” com a violência, já teria investido nisso há mais tempo?

Uma socióloga sempre consultada nessa matéria argumentou que “os traficantes varejistas entenderam que há um projeto de política pública de segurança e não adianta mais resistir”. Simples assim.

A causa da “vitória definitiva”

De repente, começam os atentados: um carro incendiado aqui, outro ali, junto com arrastões (ou assaltos, assim relatados pela imprensa) em determinadas ruas de áreas nobres da cidade. Então, em fins de novembro, detona-se a operação no Alemão, mais uma vez apontado como o local de concentração dos responsáveis pela desordem. Uma operação espetacular, com blindados da polícia e da Marinha, destinada a acabar de vez – mais uma vez – com o tráfico na região.

A série de incêndios a carros e vans seria uma reação do tráfico ao sucesso das UPPs,
diz o governo. Entretanto, os jornais não indagam: a quem interessa esses atentados? Traficantes tão bem armados, esses que em dezembro de 2006 metralharam cabines policiais, delegacias e atacaram ônibus interestaduais, matando pelo menos 18 pessoas, fariam agora pequenas ações na base de coquetéis molotov? Sabendo que atrairiam a atenção e o ódio da polícia? Por quê?

Às vésperas da invasão americana ao Iraque, numa reunião na ONU, o secretário de Estado Colin Powell tentou convencer os presentes da existência de armas de destruição em massa produzidas naquele país, apenas mostrando, ampliadas num telão, imagens dos galpões fechados em que, com absoluta certeza – simplesmente porque ele afirmava –, as tais armas eram fabricadas. As contestações feitas à época, os movimentos de repúdio à guerra, os esforços diplomáticos, nada foi capaz de deter a ofensiva. Hoje se sabe, como alguns sempre souberam, que o Iraque não tinha as tais armas. Mas alguns dos principais jornais americanos, notadamente o New York Times, amparou a versão oficial, empenhado que estava, como tantos outros, no esforço patriótico de resposta contundente aos atentados de 11 de setembro de 2001.

Da mesma forma, nesta operação no Alemão – como em outras vezes –, a nossa imprensa assumiu a causa da “retomada de território” e da “vitória definitiva”.

“Vencemos. Devolvemos a paz para a comunidade”, declarou o comandante do Bope. Ao mesmo tempo, outra autoridade policial afirma que a operação continuará durante o tempo que for necessário. Que vitória, então?

A “casa de luxo” do chefe do tráfico

O recurso à memória é importante como antídoto ao triunfalismo que costuma prevalecer nesse momento. “É um dia histórico para o Rio de Janeiro”, diz o apresentador da TV. “Os policiais estão vibrando”, afirma o comandante do Bope antes do início da invasão. Um correspondente estrangeiro quis saber, com seu portunhol claudicante, se aquilo era um guerra ou um operação policial. O comandante não teve dúvidas: “Em alguns locais, o combate a traficantes com armamento de guerra se assemelha a uma guerra de baixa intensidade. Mas não estou preocupado com rótulos, isso é coisa para quem vai estudar depois. Estou preocupado com a ação”.

Nada surpreende: homens de ação são adestrados para agir, pensar é coisa de intelectuais… ou de quem define as estratégias de ação. E, para isso, definir se vivemos ou não uma guerra é fundamental.

Mas questionar, quem há de? Pelo contrário, os jornalistas se congratulam com os policiais, desejam-lhes sorte, dão-lhes os parabéns. Excitam-se com a exibição de traficantes e suspeitos presos, demonstram indignação ao mostrar a “casa de luxo” onde vivia um dos chefes do tráfico no local, com banheira redonda de hidromassagem e uma cama-box (?!) na suíte, mais um pequeno terraço com piscina, piso imitando o desenho ondulado das pedras portuguesas de Copacabana (disponível em qualquer loja de material de construção) e ampla vista da… favela.

A diferença da “guerra” na área nobre

Um dos símbolos de “retomada do território”, cena destacada na cobertura ao vivo dos telejornais, foi o hasteamento da bandeira brasileira ao lado da bandeira do estado do Rio de Janeiro no alto do teleférico. Na Globonews, a apresentadora comemorou: a região “voltou a ser território do povo brasileiro”.

Esqueceu de lembrar que o hasteamento de bandeiras também foi feito na Operação Rio, imitando o gesto dos pracinhas na tomada de Monte Castelo, nos estertores da Segunda Guerra Mundial. Esqueceu, principalmente, de lembrar que o teleférico, prestes a ser inaugurado, é obra do PAC, Programa de Aceleração do Crescimento, iniciado em fins de 2008 no Alemão. Seria o PAC obra de traficantes? Como, então, falar em retomada de território, se nesse mesmo território se realizava um projeto do governo federal?

“O Alemão era o coração do mal”, diz o secretário de segurança, José Mariano Beltrame, quem sabe a sugerir uma ilação com o “coração das trevas” do clássico da literatura de Joseph Conrad. Talvez não, não importa. Importa é o verbo no passado e a perspectiva de futuro: afinal, se traficantes podem ter fugido, ainda por cima armados, a Rocinha que se cuide. “Se chegamos no Alemão, vamos chegar na Rocinha e no Vidigal.”

Chegar à Rocinha pode ser um problema. Há exatamente três anos, quando a polícia desencadeou uma operação sangrenta na favela da Coreia, em Senador Camará (Zona Oeste do Rio), deixando 12 mortos, o mesmo secretário comentou que “um tiro em Copacabana é uma coisa, na Coreia é outra”. Algum jornalista lembrará disto? Ou estarão todos imbuídos do espírito patriótico que substitui perguntas incômodas ou “inadequadas” pela pura e simples propaganda?