Publicado em 1º.06.11 – Por Claudia Santiago

Ficha técnica:
Filme: Ovo da Serpente – Título original: Das Schlangenei, EUA/Alemanha Ocidental, 1977
Direção: Ingmar Bergman.
Elenco principal: David Carradine, Liv Ullmann, Heinz Bennent, Gert Fröbe, Edith Heerdegen.

David Carradine é Abel Rosenberg em O Ovo da Serpente. Um trapezista judeu que vê o seu mundo desmoronar a partir do suicídio de seu irmão. Liv Ullman é a cunhada Manuella, uma cantora de cabaré. Seu drama se desenrola em uma semana. Eles assistem apavorados o deterioramento moral da sociedade alemã e a caminhada dos judeus para o matadouro.  Abel tem a oportunidade de sair da Alemanha. Não o faz. Perde-se entre pedestres. Havia saída, mas elas não eram percebidas. Ou a cegueira já havia contaminado a todos?

O ovo da Serpente que gera o nazismo nos anos 20, na Alemanha da República de Weimar

Nos anos que antecederam a I Guerra Mundial, a Alemanha chegou a uma unanimidade perigosa, e quase total, sobre alguns pontos que determinaram o seu futuro imediato, de 1914 a 1918, e, posteriormente, o período que se convencionou chamar de República de Weimar, de 1919 a 1933. O resultado foi o nascimento de uma nova nação, um império, chamado de III Reich, que a levou a uma nova guerra, na qual ela quase domina o mundo.

O filme do sueco Igmar Bergman (1977) se detém sobre os sinais e as manifestações ocorridas na sociedade alemã nos anos seguintes da que ficou conhecida como I Guerra Mundial.

“Bergman constrói com impecável riqueza de detalhes o mundo sangrento, paranoico e instável que era a Alemanha de 1923, ano em que se passa o seu filme, no período de 3 a 11 de novembro, semana do Putsch de Munique”, situa Luiz Santiago, em artigo para a revista da Semana Bergman.

Na Alemanha de 1914, o consenso sobre a necessidade de uma expansão imperialista para garantir as fontes de matérias primas e de novos mercados necessitados pelo capitalismo teve a adesão até do Partido Socialdemocrata (SPD). Poucas foram as vozes discordantes: anarquistas e a Liga Espartaquista, uma facção dissidente da social-democracia alemã fundada em 1915 por Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht que, em 1918, se transformará oficialmente no Partido Comunista Alemão (KPD). Intelectuais que mais viriam a se tornar profundos opositores do regime, naquele momento dos dois anos iniciais da I Guerra viviam inebriados pelo sentimento de patriotismo. “Uma vertigem nacionalista”, como define Rionel Richard (P.21) que contava inclusive com a participação de judeus, que viriam a ser as principais vítimas do futuro regime nazista juntamente com os comunistas.

A adesão da população a esta guerra que se pensava de curta duração foi, além de geral, entusiasta. Com o passar dos anos de guerra e as derrotas que o Império de Guilherme II sofria, os ânimos começaram a esfriar e a decepção tomou o lugar da euforia inicial.
Já na segunda metade dos anos da guerra a insatisfação se fazia sentir a partir dos milhões de mortos, do aumento extenuante do esforço de guerra e da miséria, isto é, moeda totalmente desvalorizada, escassez de produtos, fome e frio.

Em 1916 explodiam greves, manifestações e insurreições.

Ao final de quatro anos, milhões de mortos e mutilados e um exército em frangalhos eram o resultado mais visível. Quando acabou a guerra em 1918, o Império alemão estava em ruínas. Em clima de forte agitação social duas forças se contrapuseram sem conciliação: a socialdemocracia (SPD), maior partido alemão com mais de 34% de votos e os espartaquistas, já organizados no Partido Comunista. A Revolução Russa de 1917 era um fortíssimo exemplo. No começo de 1919 não se sabia de que lado a Alemanha iria.

Uma ordem nasceu. Uma república não situada na imperial Berlim, mas na clássica cidadezinha de Weimar, onde morreu Goethe, longe do barulho das fábricas.  A República tomava o lugar do antigo sonho imperial cultivado desde o século XII, pelo imperador Barbarossa, Frederico I de Germania. Mas não era uma República forte.

A República de Weimar nascia sob os escombros da guerra e da brutal repressão ao movimento operário que culminou com o assassinato de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht e o enterro da revolução alemã, tão aguardada por Lênin e pelos bolcheviques.

O Tratado de Versailles
Obrigada a assinar os termos do tratado de paz, o Tratado de Versailles, a Alemanha saiu da guerra humilhada e desmoralizada. Fortes manifestações ocorreram nas cidades alemãs contra a assinatura do acordo. Mas não havia jeito. A derrota foi consagrada neste tratado: perda das terras férteis da Alsácia e Lorena e suas colônias africanas, perda da soberania sobre a bacia mineral do vale da Rhur, proibição de manter um exército regular e pagamento da enorme dívida de guerra para a França, Itália e outros países, ex-inimigos. Cessão de territórios à Polônia, Tchecoslováquia, Bélgica.

O ovo da Serpente estava em crescimento e logo mostraria sua força.

Das entranhas da frustração com a derrota da guerra nasce um sentimento de revanche, de nacionalismo, de chauvinismo que logo se transformará em movimento apoiado na força e na violência de bandos de ex-combatentes, de desempregados e sub-empregados. O imobilismo da socialdemocrata com os avanços da direita permitem a ascensão do nazismo (Partido Nacional Socialista – “Nazismo”), ou seja, de um movimento fascista, ultra-nacionalista e xenófobo. Como assinala Richard (P. 57-58) “todas as greves, motins e levantes populares seriam reprimidos com um rigor impiedoso”. Enquanto isso, o terrorismo praticado pela direita era visto com benevolência, tanto que o assassino do ministro das Relações Exteriores fica apenas quatro anos preso. O mesmo se deu com o próprio Hitler que, após o golpe de Munique, fica apenas nove meses preso. A República de Weimar foi um governo refém da direita sanguinária e nazista.

Além disso, como define Michael Mann, a Alemanha reunia as condições características para a instalação de um regime autoritário: “guerra entre exércitos de massas de cidadãos, grave conflito de classes exacerbado pela grande depressão, uma crise política resultante de uma tentativa de transição rápida para o Estado-nação e um sentido cultural de contradição e decadência civilizacional”.

O filme
O filme o Ovo da Serpente mostra a canalização nos judeus do ódio das massas frustradas pelo desemprego, pós crise de 29, e pela inflação. O anti-semitismo da República de Weimar aparece logo no início. O personagem Abel Rosemberg, judeu, é preso como sendo suspeito de uma série de “assassinatos brutais e misteriosos”.

Em outra cena um grupo de jovens alemães obriga dois judeus a lavarem uma calçada com escovas. O policial passa, vê a cena e nada faz. Abel se assusta.

“Bergman mostra sem sentimentalismo como o anti-semitismo se espalhou pela cidade, e o discurso de justificativa para esse ódio, tão grande quanto o destinado aos “bolchevistas”. Através dos jornais e das batidas policiais em “estabelecimentos judeus” (o caso do cabaré onde Manuella trabalha é um exemplo), é possível identificar como o discurso anti-semita tinha força, e já nos anos 1920, causava destruição, mesmo em uma Alemanha cuja forma de governo era uma República”, ressalta em sua resenha sobre o filme, Luiz Santiago.

A anestesia do povo alemão, nestes anos que antecederam a subida de Hitler ao poder, é mostrada a partir de concessões morais de todo tipo, como a aceitaçã
o de experiências pseudo-científicas, com pessoas, num prelúdio do que serão os campos de concentração de Auschwitz, Dachau, Treblinka e dezenas de outros.

Enfim, a República de Weimar não passou de um intermezzo entre o velho império de Guilherme II e o novo Império (III Reich) do ditador fascista Adolf Hitler. O Ovo da Serpente estava lá, sendo chocado e de preparando para dar seu fruto: as SS, as SA, a Wehrmach, a Luftvaffe e seu complemento de Lagers do extermínio.

Em Ovo da Serpente, Bergman faz uma exposição memorável da história. Revela pela suas lentes o medo e o futuro tenebroso que chegaria em breve. E, por fim, leva o expectador a pensar: quem são os fascistas? Como crescem? Em que condições? Quem os apoia? Como é um processo de fascistização da sociedade? E hoje, o que estamos vivendo?

Consulta:
Pesquisa na Internet: http://filocinetica.blogspot.com/2011/02/por-luiz-santiago-qualquer-um-que-fizer.html