(Sérgio Domingues)
O ótimo livro de Caco Barcellos provoca muitas conclusões. Uma delas é a de que a idéia de que o povo brasileiro é pacífico, passivo, cordial, é falsa. Sabe ser violento tanto quanto qualquer outro povo. O problema é que sua parte mais pobre usa a violência contra si mesmo.
Muita gente afirma que o povo brasileiro é bundão. Não reage, não pega em armas. Que é por isso que o país não vai pra frente e outras baboseiras. Pois bem, o Instituto Futuro Brasil (IFB), fez uma pesquisa que ouviu 20 mil paulistanos durante 12 meses, desde outubro de 2002. Ela mostra que a violência na cidade de São Paulo é maior que na Colômbia, país dividido por uma guerra civil. Só para dar um exemplo, a proporção de agressões físicas entre paulistanos chega a 4%, enquanto a taxa verificada no país vizinho é de 3,6%. Mas quem é que bate, mata, rouba e quem é são as vítimas? Quase sempre, são os pobres. Mas vamos por partes.
Abusado, livro de Caco Barcellos, conta a história do traficante Marcinho VP, da favela de Santa Marta, no Rio de Janeiro. Mas, acaba servindo como retrato da violência na capital fluminense em geral e nas grandes cidades do país. Um aspecto é a entrada cada vez mais prematura de jovens na criminalidade.[1] Outro, é a banalização da violência, com atos mais sangrentos.
A leitura atenta do livro mostra que a habitual relação entre pobreza e criminalidade não é tão direta assim. É verdade que a criminalidade é maior nos bairros e regiões mais pobres das grandes cidades. Mas se a simples pobreza provocasse alta criminalidade, ela seria bem mais freqüente em regiões como norte e nordeste. Não é assim. O que leva ao aumento exagerado da criminalidade é a desigualdade e a injustiça (a esse respeito, clique http://socialista.tripod.com/textos/soc/crime.pdf e leia um ótimo texto de Rui Kureda sobre o assunto).
No livro de Barcelos, há um trecho em que Marcinho VP tenta convencer um amigo a entrar para o tráfico. O amigo recusa a oferta porque é tido como ótimo passista de escola de samba. Marcinho responde que o carnaval dá dinheiro para o dono da escola, para as fábricas de cerveja, para a tevê. Mas para quem realmente está fazendo espetáculo, as comunidades das escolas, não sobra nada. “Se a festa é nossa, porque só eles levam a grana?”, pergunta Marcinho.
Consumismo, de um lado, ausência do Estado, de outro
Essa realidade somada ao consumismo que tomou conta das grandes cidades nos últimos 30 anos leva a que jovens troquem uma vida de trabalho duro e mal pago pela certeza de uma vida curta, mas com muita emoção e capacidade de consumir. Consumir drogas, roupas um pouco melhores e tênis de marca falsificada. Impressionar as mulheres, levar mais dinheiro para o barraco. Um jovem recebe cerca de 100 reais mensais para ser empacotador de supermercado 6 dias e meio por semana. Esse mesmo jovem larga o emprego facilmente pela oferta de auxiliar o tráfico por 500 ou 600 reais por mês sem precisar sair do bairro.
No caso de alguns, além do dinheiro fácil para o consumo há um desejo de poder. Poder para ser respeitado e temido pela comunidade, ser apontado como um chefe benfeitor, mas justiceiro. Essa possibilidade somente existe porque a presença do Estado no morro ou na periferia se resume a uma polícia cada vez mais violenta. Não há postos de saúde, creches e escolas, alternativas de lazer. Nem o correio chega às casas. Nesse vácuo, cresce o papel de liderança dos traficantes na comunidade. Portanto, há a pressão do mercado, por um lado, e ausência do Estado por outro.
Ao mesmo tempo, não há porque glorificar essa situação. As relações são da maior brutalidade possível. O machismo impera. É o caso da proibição de que as mulheres namorem pessoas de fora da comunidade ou do ódio ao homossexualismo. A justiça paralela do morro organiza tribunais, com freqüentes execuções sumárias ou espancamentos brutais. O personagem de Abusado tentou dar caráter político a sua liderança. Marcinho VP leu Che Guevara, tentou contatos com os zapatistas e as FARCs (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). Mas, ficou impossível em meio à miséria de seu morro, à incapacidade de controlar a violência de seus homens, à caçada implacável da polícia e ao sensacionalismo da grande imprensa.
O crime organizado é a resposta espelhada da organização da repressão
O fato é que organização feita através da politização não combina com crime organizado. Este é resultado direto da sociedade capitalista. A organização do crime é a resposta espelhada da organização da repressão oficial. Vender drogas e roubar são atividades que dependem de que o capitalismo continue a funcionar, não são sua negação.
Por outro lado, a organização política dos trabalhadores não quer ser o espelho do Estado capitalista. Quer derrubá-lo para colocar em seu lugar um Estado controlado por quem produz a riqueza e que precisa dividir essa riqueza.
Então, o caráter violento ou não do povo brasileiro não está em discussão. A violência é causada por injustiça e desigualdade. A resposta pela via do crime somente fornece elementos para manter e ampliar essa situação. O que está em discussão é como canalizar essa violência para a mobilização social. Não se trata apenas de luta armada. No dia em que os bolcheviques tomaram o poder na Rússia, em 1917, foi registrada apenas uma morte em São Petersburgo.
Trata-se de fazer o debate sobre as raízes da violência nas periferias. Um estudo iniciado em 1998 e concluído no final de 2003 revela o perfil das vítimas de homicídios em São Paulo. A pesquisa foi realizada por professores da PUC (Pontifícia Universidade Católica) em parceria com o Centro de Referência e Apoio à Vítima (Crav), da Secretaria Estadual de Justiça. Foram analisados 545 homicídios.
Em relação aos bairros em que moravam as vítimas de homicídio, 78% não têm centro esportivo, 97% não têm teatro e 96% não têm cinema. 77% das famílias entrevistadas contavam com mais de quatro bares no quilômetro ao redor de suas residências. 61% dos bairros não têm delegacia, 53% não têm uma base comunitária e 46% não c
ontam sequer com ronda policial.
Portanto, quem está matando e quem está morrendo? Os pobres. E até a polícia entra na roda. Quem são os policiais que morrem em ação? Os de baixa patente. Assalariados que ganham pouco e ficam a cada dia mais assustados. Por isso, muitos deles cedem à pressão e se vendem para o crime organizado.
Aí, não tem jeito. É lutar por reformas. Ali, no dia-a-dia. Lutar por escolas, moradia, centros de lazer e cultura, empregos, polícia civilizada e com remuneração decente. Sem isso, a barbárie vai continuar a imperar. O sangue dos pobres vai continuar a correr, enquanto os ricos se deslocam pelos céus de helicóptero.
Finalmente, é preciso dizer que para discutir tudo isso precisa ter cabeça fria. E a grande mídia não deixa. Quem de nós não entra em desespero vendo os programas sanguinários de fim-de-tarde? Quem não acaba achando que o povo não tem jeito mesmo? Que tem que ser na base da repressão etc etc?
Então, tem que colocar na pauta das reformas urgentes o fim do monopólio dos meios de comunicação e o controle social sobre jornais, rádios e tevês. Só pra começar.
Janeiro de 2004
[1] No entanto, é preciso alertar para o fato de que não se trata de uma investigação acadêmica. A imagem de jovens de 15, 16 anos portando fuzis e metralhadoras é terrível, sem dúvida. Mas, estatísticas da Secretaria Estadual da Segurança de São Paulo divulgadas em abril de 2002, mostravam que os menores são responsáveis por apenas 2,7% do total de crimes registrados pela Polícia Civil. A impressão de que esse número poderia ser bem maior vem da distorção provocada pela grande mídia. Rende muito mais ibope a denúncia ou prisão de um menor assassino. Voltar ao texto