[Por Isabel Mansur] Um som. Silêncio. O som do silêncio. O silêncio do som. Uma ameaça velada, prestes a surgir, que assusta e apavora. Como um inconsciente comum, a violência cotidiana é o fio condutor de uma trama que revela os elementos de continuidade histórica do autoritarismo na particular formação social brasileira: o som ao redor.

 

A banalidade decidida, a quase corriqueira encenação dos atores leva o filme ao seu lugar de origem: o espectador fora da tela. Em poucos segundos estamos capturados pelo som ao redor, em um playground barulhento completamente gradeado onde passamos a infância. O retrato de uma classe média dos grandes centros urbanos brasileiros, cuja imagem e moldura – a despeito das fotos serem fruto de Iphones de última geração – se demonstram caquéticas.

 

Como toda obra reflexiva, o som ao redor nos remete aos clássicos da formação social e econômica brasileira. Caio Prado Júnior, Sergio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Florestan Fernandes e, é claro, outros importantes intérpretes aqui não citados. Mas o fulcro do nosso interesse na obra de Kleber Mendonça Filho se reconhece em especial na obra de Florestan. Sob esse olhar é que nos deteremos brevemente.

 

O cenário escolhido para o tema proposto é o Recife. É verdade que poderia se passar em qualquer centro urbano do Brasil, mas a escolha não é à toa. A centralidade dos grandes engenhos no processo histórico cultural brasileiro e a relação agrária remete às plantações de cana em Pernambuco como cenário dessas relações históricas particulares, salientadas por Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala. As relações vivenciadas no filme têm como elemento central o espaço urbano, no entanto em seus setores claramente improdutivos, como o imobiliário. Tal fato nos remonta à discussão das permanências e mudanças nas formas de domínio de território em suas mais diversas dimensões, o latifúndio, o setor imobiliário e, arriscaríamos, ao domínio de território por grupos armados. E Kleber o faz com brilhantismo.

 

A relação entre a atualidade e os “sentidos da colonização” não são focados através da relação econômica centro periferia ou das relações comerciais do Brasil, como perseguiu Caio Prado Júnior e também Florestan. O fundamental está, aqui, no como essas relações se engendram em nossa dimensão social e cultural, ainda que essas estejam sempre imbricadas com suas relações econômicas. O filme de Kléber elucida, sutilmente, o que a compreensão do que Florestan Fernandes chamaria de modernização conservadora.

 

Segundo Florestan, a partir de um processo híbrido em que a burguesia não se entenderia como uma classe, mas que se fundaria como uma unidade de interesses comuns de “várias burguesias (ou ilhas burguesas) que mais se justapõem do que se fundem”, o moderno sistema burguês no Brasil irromperia com características de uma modernização conservadora ou revolução encapuzada, se quisermos usar seus termos. Egressa da situação colonial, por meio do processo que conduziu ao rompimento do estatuto colonial, a economia urbana nasceria tendo como base um sistema econômico agrário, escravista e dependente. Florestan destaca que, nos períodos antecedentes a uma dominação propriamente burguesa, as elites nativas e em especial a oligarquia rural ou agrária teriam tido possibilidades de modernizar-se, porém buscando manter sua influência na dominação. Junto aos imigrantes essa oligarquia desenvolveria uma concepção burguesa de mundo, assumindo, para si, o pioneirismo da modernização conservadora. Florestan caracteriza a dominação burguesa no Brasil como fundamentada em um modelo Autocrático Burguês que, se apropriando de elementos arcaicos, acorrenta a “expansão do capitalismo a um privatismo tosco, rigidamente particularista”. A forma autocrática amalgama um desenvolvimento em que os elementos mais atrasados se repõem permanentemente “como se o ‘burguês moderno’ renascesse das cinzas do ‘senhor antigo’”. Uma das principais características dessa congière de interesses burgueses seria a sua quase neutralidade para a difusão de procedimentos democráticos, sendo transpassada, portanto, por um perfil autoritário e particularista.

 

Parece-nos haver profunda relação entre os debates suscitados por Kleber Mendonça em o Som ao Redor e uma sociedade profundamente conservadora em sua modernização, como indica Florestan. Não se contentando com pouco, ele revela os traços dessa relação nas dimensões cotidianas da vida social e no conjunto das ações que permeiam o dia-a-dia: as relações patrões-empregados, as relações de segurança e o medo que assombra e sustenta a segregação e o preconceito.

No discurso aparente, a punição e o encarceramento são sugeridos como parte indissociável de uma vida urbana violenta, como um anseio quase caricatural e “natural” da população. Mas Mendonça busca, em movimento, as múltiplas compreensões que dão vida a esse processo explicitando seu fio condutor, sua “veia aberta”, de forma a compreendê-lo sem banalizá-lo – sem que assuma naturalidades supostamente endógenas que sacralizam as próprias relações humanas concretas que a compõem. A partir da contratação de uma equipe de seguranças informais e ilegais, a classe média de um bairro de Recife se sente “segura” e terceiriza seu território para um grupo de segurança informal e ilegal.

 

E mais uma vez, o som do silêncio. E o mais uma vez o silêncio do som. A rápida mudança no ambiente urbano é retratada por Sofia, ficante do neto comportado do dono da rua, que morou há menos de dez anos no bairro e estranha os arranhas céus que surgem, inclusive no lugar de sua ex-casa. A madame que destrata o flanelinha, as relações sutis ora de dominação e ora de paternalismo entre a empregada doméstica e seu patrão. O tráfico feito por “aviões” que comodamente garantem a droga da dona de casa. A vida de uma jovem mulher anulada pelo papel de mãe e esposa geram a relação paranóica com o cachorro vizinho. O menosprezo do dono da rua ao segurança que tem desvio no olho. Grades das casas, grades dos condomínios. Grades. A classe média que briga por suas TVs de tela plana e compete pelo maior número de polegadas, está desnuda.

 

Mas o enredo se fecha quando a relação entre os seguranças e o neto do principal dono dos imóveis da região remete à discussão da propriedade em suas múltiplas dimensões. Leis Régias, Ordenações Filipinas e Códigos Criminais do Império condenavam duramente comportamentos “desviantes”, salvo se fossem “fidalgo” – “filho de alguém importante”. O neto, sabendo ser fidalgo, explicita a diferença entre ele e qualquer outro, se apressando em dizer quem é mesmo o dono da rua. Mesmo que não seja mais parte de nenhum código, é o “você sabe com quem está falando” que impera. O tratamento fica ainda mais claro quando o grupo de seguranças aplica um “corretivo” em um menino que é encontrado na árvore e que, simboliza, ao longo do filme, o espectro de uma suposta ameaça. O menino é negro, magro, sem camisa e descalço. O menino é um dos meninos que aparecem no sonho em que acaba numa prisão com outros idênticos a ele. O sonho é de uma menina de, provavelmente, sua mesma idade. O menino é negro, magro, sem camisa e descalço.

 

No seio do seu silencio, o som ao redor é um esporro. No antigo casarão da casa dos donos da rua, “o sítio”, um espectro ronda. Uma casa grande banhada de sangue. A ausência do som revela que o silêncio é o medo constante, espasmos de uma cultura autoritária imbricada nas nossas relações sociais e culturais. A paranóia da violência, a busca por uma segurança para poucos que defendem suas pequenas propriedades aparenta naturalidade, mas adormece com sonhos que atormentam. Para eles só uma solução: engaiolar o outro ou pagar um capanga que mantenha o silêncio, sempre a partir de relações de troca hierarquizadas.

 

Mas o capanga é o capitão do mato e nunca é demais lembrar que ele reprime sua própria classe, mas não é de outra. É quando o silêncio precede o esporro e revela impressionantes estruturas de lama.

 

Nota: Todas as citações são do livro “A Revolução Burguesa no Brasil”.O som ao redor e o lugar de sua ausência

 

[Por Isabel Mansur] Um som. Silêncio. O som do silêncio. O silêncio do som. Uma ameaça velada, prestes a surgir, que assusta e apavora. Como um inconsciente comum, a violência cotidiana é o fio condutor de uma trama que revela os elementos de continuidade histórica do autoritarismo na particular formação social brasileira: o som ao redor.

 

A banalidade decidida, a quase corriqueira encenação dos atores leva o filme ao seu lugar de origem: o espectador fora da tela. Em poucos segundos estamos capturados pelo som ao redor, em um playground barulhento completamente gradeado onde passamos a infância. O retrato de uma classe média dos grandes centros urbanos brasileiros, cuja imagem e moldura – a despeito das fotos serem fruto de Iphones de última geração – se demonstram caquéticas.

 

Como toda obra reflexiva, o som ao redor nos remete aos clássicos da formação social e econômica brasileira. Caio Prado Júnior, Sergio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Florestan Fernandes e, é claro, outros importantes intérpretes aqui não citados. Mas o fulcro do nosso interesse na obra de Kleber Mendonça Filho se reconhece em especial na obra de Florestan. Sob esse olhar é que nos deteremos brevemente.

 

O cenário escolhido para o tema proposto é o Recife. É verdade que poderia se passar em qualquer centro urbano do Brasil, mas a escolha não é à toa. A centralidade dos grandes engenhos no processo histórico cultural brasileiro e a relação agrária remete às plantações de cana em Pernambuco como cenário dessas relações históricas particulares, salientadas por Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala. As relações vivenciadas no filme têm como elemento central o espaço urbano, no entanto em seus setores claramente improdutivos, como o imobiliário. Tal fato nos remonta à discussão das permanências e mudanças nas formas de domínio de território em suas mais diversas dimensões, o latifúndio, o setor imobiliário e, arriscaríamos, ao domínio de território por grupos armados. E Kleber o faz com brilhantismo.

 

A relação entre a atualidade e os “sentidos da colonização” não são focados através da relação econômica centro periferia ou das relações comerciais do Brasil, como perseguiu Caio Prado Júnior e também Florestan. O fundamental está, aqui, no como essas relações se engendram em nossa dimensão social e cultural, ainda que essas estejam sempre imbricadas com suas relações econômicas. O filme de Kléber elucida, sutilmente, o que a compreensão do que Florestan Fernandes chamaria de modernização conservadora.

 

Segundo Florestan, a partir de um processo híbrido em que a burguesia não se entenderia como uma classe, mas que se fundaria como uma unidade de interesses comuns de “várias burguesias (ou ilhas burguesas) que mais se justapõem do que se fundem”, o moderno sistema burguês no Brasil irromperia com características de uma modernização conservadora ou revolução encapuzada, se quisermos usar seus termos. Egressa da situação colonial, por meio do processo que conduziu ao rompimento do estatuto colonial, a economia urbana nasceria tendo como base um sistema econômico agrário, escravista e dependente. Florestan destaca que, nos períodos antecedentes a uma dominação propriamente burguesa, as elites nativas e em especial a oligarquia rural ou agrária teriam tido possibilidades de modernizar-se, porém buscando manter sua influência na dominação. Junto aos imigrantes essa oligarquia desenvolveria uma concepção burguesa de mundo, assumindo, para si, o pioneirismo da modernização conservadora. Florestan caracteriza a dominação burguesa no Brasil como fundamentada em um modelo Autocrático Burguês que, se apropriando de elementos arcaicos, acorrenta a “expansão do capitalismo a um privatismo tosco, rigidamente particularista”. A forma autocrática amalgama um desenvolvimento em que os elementos mais atrasados se repõem permanentemente “como se o ‘burguês moderno’ renascesse das cinzas do ‘senhor antigo’”. Uma das principais características dessa congière de interesses burgueses seria a sua quase neutralidade para a difusão de procedimentos democráticos, sendo transpassada, portanto, por um perfil autoritário e particularista.

 

Parece-nos haver profunda relação entre os debates suscitados por Kleber Mendonça em o Som ao Redor e uma sociedade profundamente conservadora em sua modernização, como indica Florestan. Não se contentando com pouco, ele revela os traços dessa relação nas dimensões cotidianas da vida social e no conjunto das ações que permeiam o dia-a-dia: as relações patrões-empregados, as relações de segurança e o medo que assombra e sustenta a segregação e o preconceito.

No discurso aparente, a punição e o encarceramento são sugeridos como parte indissociável de uma vida urbana violenta, como um anseio quase caricatural e “natural” da população. Mas Mendonça busca, em movimento, as múltiplas compreensões que dão vida a esse processo explicitando seu fio condutor, sua “veia aberta”, de forma a compreendê-lo sem banalizá-lo – sem que assuma naturalidades supostamente endógenas que sacralizam as próprias relações humanas concretas que a compõem. A partir da contratação de uma equipe de seguranças informais e ilegais, a classe média de um bairro de Recife se sente “segura” e terceiriza seu território para um grupo de segurança informal e ilegal.

 

E mais uma vez, o som do silêncio. E o mais uma vez o silêncio do som. A rápida mudança no ambiente urbano é retratada por Sofia, ficante do neto comportado do dono da rua, que morou há menos de dez anos no bairro e estranha os arranhas céus que surgem, inclusive no lugar de sua ex-casa. A madame que destrata o flanelinha, as relações sutis ora de dominação e ora de paternalismo entre a empregada doméstica e seu patrão. O tráfico feito por “aviões” que comodamente garantem a droga da dona de casa. A vida de uma jovem mulher anulada pelo papel de mãe e esposa geram a relação paranóica com o cachorro vizinho. O menosprezo do dono da rua ao segurança que tem desvio no olho. Grades das casas, grades dos condomínios. Grades. A classe média que briga por suas TVs de tela plana e compete pelo maior número de polegadas, está desnuda.

 

Mas o enredo se fecha quando a relação entre os seguranças e o neto do principal dono dos imóveis da região remete à discussão da propriedade em suas múltiplas dimensões. Leis Régias, Ordenações Filipinas e Códigos Criminais do Império condenavam duramente comportamentos “desviantes”, salvo se fossem “fidalgo” – “filho de alguém importante”. O neto, sabendo ser fidalgo, explicita a diferença entre ele e qualquer outro, se apressando em dizer quem é mesmo o dono da rua. Mesmo que não seja mais parte de nenhum código, é o “você sabe com quem está falando” que impera. O tratamento fica ainda mais claro quando o grupo de seguranças aplica um “corretivo” em um menino que é encontrado na árvore e que, simboliza, ao longo do filme, o espectro de uma suposta ameaça. O menino é negro, magro, sem camisa e descalço. O menino é um dos meninos que aparecem no sonho em que acaba numa prisão com outros idênticos a ele. O sonho é de uma menina de, provavelmente, sua mesma idade. O menino é negro, magro, sem camisa e descalço.

 

No seio do seu silencio, o som ao redor é um esporro. No antigo casarão da casa dos donos da rua, “o sítio”, um espectro ronda. Uma casa grande banhada de sangue. A ausência do som revela que o silêncio é o medo constante, espasmos de uma cultura autoritária imbricada nas nossas relações sociais e culturais. A paranóia da violência, a busca por uma segurança para poucos que defendem suas pequenas propriedades aparenta naturalidade, mas adormece com sonhos que atormentam. Para eles só uma solução: engaiolar o outro ou pagar um capanga que mantenha o silêncio, sempre a partir de relações de troca hierarquizadas.

 

Mas o capanga é o capitão do mato e nunca é demais lembrar que ele reprime sua própria classe, mas não é de outra. É quando o silêncio precede o esporro e revela impressionantes estruturas de lama.

 

Nota: Todas as citações são do livro “A Revolução Burguesa no Brasil”.