O belo e engraçado filme de Eliane Caffé fala de uma cidade ameaçada por uma desgraça recente do capitalismo. A barragem de uma hidrelétrica. Mas seus habitantes também são vítimas de outro tipo de barragem. A da palavra escrita. Sem ela, os tagarelas habitantes de Javé não têm voz.

Surpreendidos com a notícia de que sua cidadezinha vai ser inundada para a instalação de uma hidrelétrica, os habitantes de Javé estão em pânico. Algo a que, infelizmente, o Movimento por Atingidos em Barragens (MAB) já está acostumado e contra o qual luta com coragem.

Reunidos na igreja, os javeenses esperam notícias de Zaqueu (Nelson Xavier), que foi negociar com os engenheiros da obra. Ele chega com más notícias. A inundação é certa. A única coisa que poderia impedi-la seria demonstrar que Javé é patrimônio histórico. Que tem tradições importantes para a história do país ou da região.

“Mas o que não faltam são histórias de valentia e honra”, dizem os habitantes animados. Zaqueu concorda mas diz que é preciso colocá-las no papel. Fazer um “dossiê”. E nada dessas histórias cheias das “caraminholas” que o povo vive inventando, diz ele. Tem que ser “coerente”. Tem que ser “científico”.

O problema é que ninguém ali sabe escrever mais que seu próprio nome. A não ser Antônio Biá (José Dumont), um antigo carteiro que havia sido banido da comunidade por inventar histórias usando falsas cartas. Agora o aceitariam de volta, desde que usasse seu talento para escrever a história do vale de Javé.

Começam as trapalhadas. Cada morador conta a história como lhe parece melhor e mais vantajoso.

A outra barragem. A muralha da língua escrita

Mas o que importa para nossa discussão não é só a ameaça da barragem da hidrelétrica. É a outra barragem. A barragem da língua escrita. Aquela de cuja demolição dependem os moradores de Javé. Se conseguirem colocar sua história no papel podem salvar sua terra natal.

Como diz Vito Giannotti no livro que está perto de lançar: “Para nós, no Brasil, falar em muralhas é falar em barragens, em represas” (1). Como “Narradores” já fala da represa, falemos da muralha a que se refere Giannotti. É aquela que separa uma minoria cada vez menor de pessoas letradas, alfabetizadas, de uma maioria crescente de iletrados, de analfabetos. Os números oficiais dizem que cerca 10% da população são analfabetos (IBGE – novembro de 2001). Mas se contarmos os analfabetos chamados funcionais, a coisa piora. Analfabeto funcional é aquele que sabe o bastante do alfabeto para escrever seu próprio nome, ler uma placa, deixar um bilhete de três linhas. Aí, o analfabetismo aumenta para 30% da população. Algo em torno de 57 milhões de pessoas.

Pois bem, no alto da porta da casa de Biá há uma frase engraçada e trágica: “é proibida a entrada de analfabetos”. Não é preciso explicar porque é engraçada. Mas, imaginemos que a punição para semelhante proibição seja a prisão, por exemplo. Parece exagero, mas para as 57 milhões de pessoas incapazes de ler mais do que duas frases, as leis são incompreensíveis. Muitas delas podem estar infringido leis sem ter a menor idéia disso. Desculpem, 57 milhões, não. Porque as leis são incompreensíveis até para quem já leu vários romances de Zibia Gasparetto ou Paulo Coelho. Aí, passa fácil, fácil a casa dos 100 milhões de habitantes.

Escreveu, não leu, o pau comeu

É que se alevanta uma nova muralha. A muralha da língua escrita corretamente. Não basta saber escrever. Tem que saber escrever direito. Como manda o figurino. E dominar os vários figurinos. O jurídico, o sociológico, o econômico, o acadêmico. É por isso que a missão de Biá está perdida logo de cara. Como disse Zaqueu, a história tem que ser “científica”. O ditado popular está certo. Escreveu, não leu, o pau comeu. Escreveu e a autoridade não gostou, não vale nada. Lá vem as águas para inundar Javé.

Como diz o professor Marcos Bagno (2), não existe erro em comunicação. Erro em comunicação é não comunicar. Você fala xícara com “x” ou com “ch”? É claro que há coerência nas regras gramaticais. Mas sua maior coerência é o  papel de elemento de discriminação que cumpre. A gramática foi inventada para impor a língua que os dominadores entenderam ser a mais correta. É mais uma forma de manter a maioria na pobreza e sendo explorada. Hoje em dia, com tanto desemprego, os patrões já se dão ao luxo de exigir correção gramatical em outras línguas. Para ser caixa de supermercado, é preciso saber inglês!!

Claro que é preciso aprender e
ensinar o português culto. Até para que os de baixo entendam os mecanismos de dominação em todas as suas dimensões e lutem para acabar com eles. O problema é que até uma coisa tão linda como a escrita virou arma de dominação. A escrita nos deu os livros. Um dos objetos mais maravilhosos da humanidade. Mágico provocador de sonhos, prazeres, descobertas, e até das angústias e revoltas tão necessárias.

Mas usada como foi em “Narradores”, ela fica triste. Os narradores têm uma criatividade maior do que a que Biá é capaz de congelar no seu caderno escrito a lápis.

De volta às “divisas cantadas”

Logo no começo do filme, Firmino (Gero Camilo) lembra as “divisas cantadas”. O que são divisas cantadas? “O cabra cantava: daquela árvore no sopé do morro até a ponte perto do poço, digo que é tudo meu”, explica Zaqueu. São as divisas, os limites da propriedade ou de territórios, definidas apenas pela intenção de possuí-la. Obviamente, algo assim teria que ser negociado. Não poderia ser imposto por um poder econômico ou político. São lembranças de épocas muito remotas. Em que havia abundância de terras e falta de instrumentos de poder. Estes últimos vieram com o progresso das forças produtivas. Com a divisão entre quem trabalha e quem planeja. Quem lavra e ordenha e quem usa o avanço tecnológico representado pela escrita para registrar o trigo, o vinho e o leite no estoque.

No entanto, o progresso na produção de comida, abrigo, lazer, sabedoria não é necessariamente mal ou bom. Apenas provocaram contradições que precisam ser resolvidas no sentido de deixarem de servir como formas de exploração e criação de injustiças. Precisam passar a ser formas de criar e aperfeiçoar uma vida civilizada e prazerosa para todos. Não apenas para uma minoria.

Por exemplo, a comunicação audiovisual transformou o domínio da escrita num privilégio de poucos. Isso serve aos poderosos. Mas numa sociedade justa e livre, esse avanço vai tornar possível que narradores como os de Javé possam contar suas histórias com a voz, com o lápis, o computador, a imagem cinematográfica, holográfica. Tudo a que tem direito a imaginação humana. Sem muralhas e barragens. Só com “divisas cantadas”. (3)

Março de 2004

 

(1) Vito Giannotti é coordenador do Núcleo Piratininga de Comunicação. A Muralha da Linguagem está em fase de impressão e seu lançamento está previsto para o próximo mês.

(2) Marcos Bagno é professor do Departamento de Lingüística da Universidade de Brasília (UnB). Tem vários livros sobre educação e linguagem, inclusive romances. Saiba mais em www.marcosbagno.com.br

(3) O fato de que o filme foi um fracasso de público mereceria uma discussão à parte. Mas a matéria de Ana Paula Sousa publicada na Carta Capital de 09 de fevereiro dá conta da questão. Está disponível na página virtual da revista