A cidade como o lugar do encontro, da reunião de pessoas, e da circulação de saberes e sentidos. A cidade como o palco da disputa do campo simbólico do capital e reivindicação do direito à vida e da experiência heterogênea de organização, afetos e luta para a formação de uma sociedade menos desigual. Essa foi a tônica da mesa “Os trabalhadores e o direito à cidade” no Curso Anual do NPC, realizada em 19 de novembro. O painel reuniu o professor da UFF, Márcio Castilho; a jornalista Sabrina Duran; Renata Souza, jornalista e doutoranda em comunicação; e Sebastião Neto, do IIEP-SP.
Disputa de Território e Imaginários
A partir do pensamento crítico do filósofo marxista e sociólogo francês Henri Lefebvre, Sabrina Duran, expôs a cobertura de urbanismo, habitação popular e direitos humanos, que desenvolve desde 2006. O projeto de investigação jornalística “Arquitetura da Gentrificação” mapeia os processos de higienização social realizado por parcerias público-privadas no centro da capital paulista com auxílio de documentos públicos. A repórter revelou como a cidade se tornou um espaço negado às populações pobres e engessado pelo capital para servir apenas de lugar de circulação do trabalho.
“O direito à cidade é um conceito que atravessa os discursos de gestores públicos, artistas e populações, mas na questão pública ele vem sendo remodelado para legitimar práticas que justamente negam o direito à cidade. O capital vem se utilizando dessa pauta legítima para gentrificar e segregar ainda mais os espaços. Como a gente explica uma demanda tão legitima ser transformada em capitalismo perverso?”, questiona Sabrina Suran.
Para explicar esse processo, ela estudou a teoria desenvolvida por Léfèbvre. Ele enxerga o urbano como uma forma social, o espaço da reunião e encontro de pessoas e do heterogêneo, tomando a cidade como um complexo espaço de encadeamentos de ideias. Não meramente como um lugar de uso e troca de valores, mas um habitat pleno.
“Léfèbvre não capta nada novo. Ele apenas capta a insatisfação generalizada e teoriza. No seu livro “O Direito à Cidade”, a questão da classe trabalhadora atravessa o tempo todo seu pensamento, é o eixo, porque traz uma dimensão anticapitalista de outra cidade na qual o trabalhador não é meramente circulante, mas o principal significado dessa cidade”.
Porém, os governos, mesmo os de esquerda, não tem conseguido ser um difusor do direito à cidade para a classe trabalhadora. Ao contrário, o direito à cidade vem sendo deslocado como um “valor” para legitimar ações público-privadas que negam a cidade aos pobres e aos trabalhadores.
Sabrina expôs como a gentrificação e a ideia do direito pleno à cidade vêm sendo capitaneada pelo Banco Itaú, Chevrolet e Gafisa. Grandes projetos de gentrificação são respaldados – inclusive, em gestões de esquerda – com o discurso da promoção do direito à cidade. É o caso das bicicletas disponibilizadas pelo Itáu, um dos conglomerados bancários que mais flexibiliza leis trabalhistas e monopoliza o direito a circulação.
“O que temos pela frente é uma disputa de território a partir do neoliberalismo. Precisamos repensar nossos imaginários que vem sendo construídos. Temos que pensar em ações e propostas anticapitalistas que não possam ser capturados no imaginário. Porque é lá que capital está atuando. Não é mais somente no concreto. As peças e discursos dos projetos de gentrificação convencem a população que aquela prática promove o direito à cidade quando na realidade subverte esse direito e nos aparta dele”, conclui Sabrina Duran.
No blog “Arquitetura da Gentrificação” (acesse no link http://gentrificacao.reporterbrasil.org.br/) é possível acompanhar o trabalho da jornalista e obter dados sobre o processo relativo à cidade de São Paulo.
Cidade: direito ao afeto
Jornalista e professor do Curso de Jornalismo da Universidade Federal Fluminense, Marcio Castilho expôs uma reflexão sobre a experiência da cidade do Rio de Janeiro como lugar de disputa não apenas de territórios, mas também de afetos e anseios. Para ele, a privatização do espaço público das cidades ocorre há anos e não deve ser compreendida apenas com um olhar estanque. “É necessário olhar gestões anteriores, como do ex-prefeito Cesar Maria até a gestão Paes, incluindo a operação do capital para fazer do Rio de Janeiro uma cidade do lugar dos megaeventos”, afirma.
Pesquisador do campo da violência, espaço público e cidadania em sua interface com estudos de comunicação, Castilho, identifica que no lugar de promover uma integração do tecido social, os megaeventos pautam a emergência do discurso de cidade-empresa. Fonte de violações e violência para as populações pobres que já são no dia a dia extremamente violentadas. “É a parcela marginalizada que não é marginal, mas foi colocada à margem que o Estado opera e dispõe como peças ao seu bel prazer para criar a cidade do megaevento. Entre 2009 e 2015, 77 mil pessoas foram removidas. Um número 4 vezes maior que a era Pereira Passos”, relata. Os dados podem ser encontrados no relatório de violações do Comitê Popular da Copa do Mundo (Disponível em: http://bit.ly/1luWzg7).
Para Castilho, estamos em uma disputa do campo simbólico sobre o direito à cidade: “Os argumentos não são novos, mas estão emoldurados pela criação e num imaginário que legitima um argumento urbanístico que promove a compactação da gentrificação nos corações e mentes. Produzem a hegemonia necessária para serem validados e aplaudidos pela própria classe trabalhadora. Temos no Rio diversos exemplos: o VLT e BRTs e os teleféricos da Providência e Complexo do Alemão, que com o discurso de promoção de maior mobilidade, removeram pessoas. São processos que desvitalizam as populações pobres através do Poder Público”.
“Não seria um problema termos obras para melhorar a mobilidade se essa ideia de dar vida, a revitalização, não fosse uma recompactuação de interesses do capital para apartar a cidade ainda mais. A questão é simples: a revitalização está ligada ao consumo e não ao direito à cidade. O que vemos no Porto no Rio é a ideia de urbes empresarial: um mix de entreternimento, lazer e consumo para ser acessado apenas como dispositivo de consumo e não de direito à cidade”, adverte.
E concluiu: “O Porto é um espaço morto no sentido que foi remodelado para ser um lugar dos iguais, ainda que sob o argumento do lugar do encontro. É o food-truck que tem lugar ali, não mais a barraquinha do seu Zé. Ou seja, a remoção não é só de pessoas, mas do lugar existencial da presença delas e do direito delas à cidade. A cidade se moderniza, mas para isso exclui afirmando que vai incluir ”.
Bélica, desigual e violenta: a cidade militarizada
Jornalista formada pela PUC-Rio e doutoranda em Comunicação pela Escola de Comunicação da UFRJ, Renata Souza também é moradora do Conjunto de Favelas da Maré. Foi pelo olhar da favela, de quem sofre e vive violações cotidianas da força arbitrária do Estado, que a fundadora do jornal O Cidadão expôs a militarização da vida e do direito à cidade da população mareense. “Temos negado o direito de existir”. No momento da ocupação da Maré, tínhamos para cada 55 moradores, segundo o jornal O Dia (25/3/2014), um policial: “Isso é uma estado de sítio”.
“Vito Giannotti nos ensinou no livro “Muralhas da Linguagem” que os discursos são produzidos para não serem compreendidos. O direito à cidade está negado, inclusive, no discurso, porque dizer significa poder. Afinal, qual é o sujeito que pode falar?”, questiona Renata. Foi a partir dessa provocação que a jornalista e pesquisadora apresentou o painel “Maré sitiada: discursos midiáticos sobre a ocupação militar do Conjunto de Favelas da Maré”.
Em 2014, as Forças Armadas passaram a comandar a tentativa do estado de “retomar o território” das 18 favelas do conjunto da Maré. “A ocupação da Maré para nós foi um novo Golpe Militar”, afirmou. “Neste dia, também começava a intensificação da negação do direito à vida. Um processo que durou 14 meses e foi denunciado pela página Mare Vive”, completou. As publicações da página no Facebook serviram de análise para a pesquisadora sobre a compactuação midiática e as ações do Estado para sitiar toda a população da Maré.
A partir dos estudos de poder do filosofo francês Michael Foucault, Renata fez uma reflexão sobre o discurso do sofrimento como difusor legitimador da militarização do direito à vida e à cidade. Dentro de espaços de moradia da população pobre que acomoda no campo simbólico do imaginário as violências de um Estado bélico.
“A mídia pelo discurso do sofrimento compactua uma neutralidade social. Quando a vítima que sofre é um morador de favela, quando é a favela que é atingida por um tiro, uma bala perdida, esse efeito não é visto como ilegal. O discurso do sofrimento é seletivo”.
Para ela, a favela é colocada como um espaço da cidade em que se pode morrer. “O discurso do sofrimento não só hierarquiza a dor, mas também antecipa o sofrimento. Está dado socialmente que a população pobre pode morrer e sofrer. E ainda, é importante racializar o debate. Estamos falando de uma população majoritariamente negra”.
Comunicadora popular, Renata Souza, mostrou como são os narradores populares que, essencialmente, produzem uma contra informação capaz não apenas de denunciar as arbitrariedades do Estado, mas também de disputar o simbólico. “Enquanto a mídia hegemônica, o jornal Extra, por exemplo, mostrava a conformação da pacificação com a foto de uma criança em um cavalo junto com policiais, exibindo para a cidade que a pacificação fora um “sucesso”. A página Maré vive, denunciava que há poucos metros dali, em um uma praça, uma criança negra era alvejada e morta pelo Estado”.
Para ela, disputar a cidade, é também disputar a narrativa dessa cidade. E os trabalhadores precisam narrar suas histórias, porque “na favela o estado de sítio é cotidiano” e dentro de uma suposta “democracia” que é desigual. O artigo “Maré sitiada: o discurso midiático sobre a ocupação militar do Complexo da Maré”, está disponível em http://bit.ly/2gb4Wiy .
No link https://www.facebook.com/Marevive/?fref=ts, é possível acessar a página Maré Vive.
Memória e trabalho
Sebastião Neto, pesquisador do IIEP, morador da cidade de São Paulo, refletiu sobre a cidade como disputa de memória da luta dos trabalhadores. “A esquerda não sabe fazer experimentos quando chega a institucionalidade. Ela se deixa levar a reboque da pauta do capital quando assume governos”, refletiu.
Para ele, os processos ao longo dos anos de remoção e compactação da cidade, jogam a classe trabalhadora para fora dos “códigos e sentidos”. “As pessoas não se mudam para a cidade. Elas são jogadas lá de qualquer jeito. O trabalhador precisa aprender até a acordar com despertador. Nessa composição, é esse povo que vai ser tornando classe e que produz uma diferença na sua participação na riqueza da cidade que lhe é negada”, conclui.