[Por Guilherme Pimentel*] As investigações da Polícia Federal que apontam os mandantes dos assassinatos de Marielle Franco e Anderson trazem à tona três verdades que não podemos mais ignorar.
A primeira revela que o crime se organiza dentro do Estado. Todos os envolvidos no assassinato de Marielle e Anderson são agentes públicos. O executor, um homem treinado pelo Estado para matar, usou armamento e munições comprados pelo Estado.
Os mandantes — um conselheiro do Tribunal de Contas, um deputado e um delegado de polícia — ocupam posições de mando em instituições de poder estatal. Não há um morador de favela envolvido, não há quadrilheiros usando recursos próprios.
Todos os atos foram realizados no seio de aparatos de um Estado fundado na colonização escravocrata, que historicamente tem como principal política pública a produção da violência nas periferias contra a maioria da população para a extração da riqueza e preservação dos interesses das elites coloniais.
Ao longo da história do Brasil, muita coisa mudou na lei, porém a lei não se cumpriu por si só, e convivemos até hoje com a continuidade histórica deste passado tão presente entre nós.
Na verdade, vale lembrar que já tivemos outras oportunidades de nos deparar com esta verdade. Na década de 90, quando a própria Polícia Civil desenvolveu um trabalho que impactou o número de sequestros, reduzindo-os a praticamente zero, o delegado Hélio Luz, perguntado sobre o que foi feito para alcançar tal resultado, explicou: “a polícia não sequestra mais”. Hélio sabia que não há crime no Rio de Janeiro sem acerto com a polícia e, portanto, para fazer uma política criminal eficiente, é preciso realizar o controle das polícias.
Outro assassinato brutal também já havia nos revelado essa realidade. Em 2011, a juíza Patrícia Aciolly foi morta por policiais militares do 7º Batalhão, incomodados com suas decisões em casos de agentes públicos que cometiam violência contra a população. Ela e sua família pagaram o preço de não aceitar a violência de Estado em uma sociedade dominada por uma elite colonial.
A segunda verdade que o caso Marielle revela é a falta de credibilidade dos arquivamentos de inquéritos sobre mortes com envolvimento de agentes públicos no Rio de Janeiro. Esses arquivamentos precisam ser reavaliados, sendo muito provável que mais problemas sejam trazidos à tona.
Isso porque o envolvimento do delegado Rivaldo Barbosa, dirigente maior da Polícia Civil na época, no assassinato de Marielle escancara aquilo que já é denunciado por grande parte dos defensores de direitos humanos no Rio: quem deveria investigar, na verdade participa e acoberta os assassinatos que atendem a interesses políticos e econômicos.
Não são poucos os momentos em que os movimentos de mães e familiares de jovens mortos por agentes públicos denunciam os arquivamentos arbitrários de casos de homicídios envolvendo policiais.
A própria Marielle acompanhava várias dessas mães. Inúmeros protestos nas favelas, nas portas das delegacias e na porta do Ministério Público evidenciam que os arquivamentos compõem um contexto que envolve falta de investigação, perícias duvidosas ou inexistentes, criminalização das famílias e sobreviventes, invisibilização de testemunhas importantes, ameaças e intimidações.
Por isso, é fundamental que a reavaliação desses arquivamentos seja feita por forças federais, até porque não basta analisar o trabalho policial nos inquéritos arquivados. É preciso reavaliar também o papel que o Ministério Público do Rio de Janeiro vem cumprindo nesses casos.
Afinal, além de serem responsáveis pela validação ou não dos arquivamentos, também são responsáveis pelo controle externo da atividade policial. No entanto, foram incapazes de dar continuidade nas investigações do caso Marielle, sendo necessário o ingresso da Polícia Federal para se chegar a um resultado.
Nunca é demais lembrar que outra investigação revelou que, há pouco tempo, no governo Cabral, o chefe institucional do MPRJ ganhava uma “mesada”, supostamente para promover arquivamentos que ameaçavam o então governador. Inclusive, o Procurador-Geral de Justiça da época foi preso por isso, mas não foram revistos os arquivamentos de inquéritos que ele promoveu na época. Este erro não pode se repetir, sob risco de referendarmos outros possíveis arquivamentos arbitrários de homicídios.
A terceira verdade que não pode mais ser calada indica que a motivação do assassinato de Marielle e de tantas outras mortes deve estar ligada a projetos políticos de maior porte. Ainda que a repercussão midiática do inquérito enfatize a suposta motivação em uma questão fundiária aparentemente local, não podemos ignorar as tensões políticas que se acumularam no Rio de Janeiro nos anos que antecederam o assassinato de Marielle e que alçaram cada vez mais espaço no cenário nacional.
E foi neste contexto que Rivaldo Barbosa ocupou a chefia na Polícia Civil por indicação direta de generais que comandavam a intervenção federal promovida por Michel Temer, que por sua vez tomou o poder federal após o golpe contra a Dilma.
Ora, se a intervenção federal foi feita com o pretexto de ajustar a política de segurança pública no Rio de Janeiro, não cola a desculpa dos militares de que a nomeação de Rivaldo foi uma mera nomeação burocrática. Afinal, para nomeações burocráticas não são “necessárias” intervenções federais.
A figura política no Rio de Janeiro que liderava a oposição à intervenção federal era Marielle Franco. Não foi à toa que ela assumiu a relatoria da Comissão Especial para a fiscalização parlamentar municipal da Intervenção Federal. De outro lado, Rivaldo Barbosa foi nomeado pela intervenção na véspera da execução justamente para o cargo de comando da instituição responsável por dirigir as investigações de homicídios no estado do Rio de Janeiro.
O contexto apontado pelo inquérito demonstra que isso provavelmente não foi uma coincidência. As investigações indicam que Rivaldo já vinha participando de diálogos preparatórios do crime, inclusive indicando critérios para a escolha do local e do dia do assassinato. Depois, cinicamente, se reuniu com a família e prometeu elucidar o caso.
Marielle deixou saudades, em especial para a família, amigos e companheiros de luta por direitos humanos. Sua atuação foi marcada pelo entendimento de que a violência e as violações de direitos na cidade não são frutos de meras condutas individuais, mas sim consequência da política.
Por isso, sempre entendeu que através da atuação na política é possível se contrapor à violência e construir a garantia de direitos para a população. Seu assassinato deixa muita revolta e tristeza, porém foi incapaz de silenciar sua voz.
Agora, com os elementos revelados pela Polícia Federal, temos uma grande oportunidade de aprofundar as investigações, revisar os arquivamentos de homicídios durante a gestão de Rivaldo Barbosa e seus aliados, além de entender as ligações dos setores autoritários da política, das polícias e do Ministério Público. Precisamos acabar com a indústria da morte, este mecanismo maldito que subordina o povo aos interesses de elites coloniais mafiosas.
O caso Marielle hoje reencarna diversas gerações de lutadoras e lutadores do nosso país, que pagaram com suas vidas por levarem adiante este sonho que não sonhamos sós. Cabe a nós, que ainda caminhamos sobre esta terra, não ignorarmos as verdades gritantes que ecoam na voz eterna dessa mulher que nunca será silenciada.
*Guilherme Pimentel é advogado popular, defensor de direitos humanos e ex-ouvidor da Defensoria Pública do RJ. Amigo de Marielle Franco, lutou ao lado dela em casos emblemáticos, como o caso Amarildo da Rocinha.