Por Gustavo Barreto, 1º de abril de 2004
Em um belo documentário com depoimentos de diversos perseguidos políticos, o escritor Frei Betto declarou que, quando ficou na ‘solitária’ durante o regime militar (64-84) por “crime de subversão”, mantinha a prática de lecionar e criava, para tanto, alunos e ambientes imaginários.
A partir de 1964, as idéias eram omitidas por um sistema que sufocava o maior número de informações inconvenientes possíveis, beneficiando quase sempre o poder estabelecido. Felizmente, esta obscura realidade faz parte do passado. Será?
Vejamos. Muitas vezes, nos pegamos falando sozinhos, argumentando e contra-argumentando, debatendo com nosso próprio ego. No chuveiro, no carro e em outros lugares de silêncio e solidão – hoje em dia há muitos desses – estamos constantemente inquietos, com uma necessidade crescente de nos expressar.
O que domina nossa sociedade na atualidade são os excessos. “Too much is not enough”, diz um ‘banner’ colorido no coração de Nova Iorque. “Que conclusões posso tirar da leitura de 500 jornais?”, se inquieta Saramago.
Comida e água também não faltam – o que falta é dinheiro para comprar. Dinheiro também temos em excesso, o que falta é distribuir. Possuímos canais de distribuição – o que falta é democratizá-los. Democracia, temos bons exemplos – falta comunicar. Veículos de comunicação, temos aos montes – falta conscientizar.
Uma coisa, apenas uma, destoa: tempo. Temos tudo, menos tempo.
Peguemos o exemplo de um dos mais valorosos e tradicionais atos da humanidade: a leitura. Excetuando-se raríssimas e isoladas sociedades, ler é um valor superior e nobre para todos os seres humanos. A leitura enobrece, aumenta a auto-estima, traz sabedoria e retira os cidadãos das trevas. “De todos os instrumentos do homem, o mais surpreendente é, sem dúvida nenhuma, o livro”, diz Jorge Luis Borges.
Hoje em dia, todos os brasileiros possuem ansiedades e metas em relação ao ato de ler. Quinze por cento da população deseja ler, e por não saber ler adquire uma frustração muito grande, gerando conseqüentemente uma série de problemas emocionais e materiais.
Outros cinqüenta por cento gostariam de não só saber ler, mas também compreender mais textos do que é capaz. Os chamados analfabetos funcionais anseiam obter mais vocabulário, maior capacidade de raciocínio lógico etc., características negadas até hoje para classes mais humildes do país. O resto gostaria de não ter tanta coisa para fazer e disponibilizar mais tempo para a leitura. “Nem ler um jornal com calma eu consigo mais”, me confessou um amigo.
Abrem-se parênteses para o fato de que não ler jornal com calma significa ler apenas manchetes e chamadas das principais notícias, o que deixa a opinião pública à mercê dos bem preparados editores, criando desta forma “fatos” que simplesmente não existem. E os poucos que conseguem ler as últimas quatro linhas da notícia se tornam um grupo tão pequeno que são chamados de estranhos – no sentido mais convencional da palavra – ao formular idéias mais profundas e trazer realidades diferentes das que estamos acostumados.
Pois bem. Para todos, há algo em comum: precisam de mais tempo para se dedicar à leitura. Para aprender, reaprender ou desenvolver o ato de leitura, existe uma demanda por um espaço maior, que sirva como uma espécie de fuga do cotidiano.
Há como fugir? Para a maior parte das pessoas, temo que a resposta seja um seco ‘não’. É desta forma que os analfabetos políticos podem entender como o ‘capital’ nos domina e nos faz “escravos de nossa própria falta de atitude”, como escreveu o compositor Gabriel O Pensador.
O trabalho, que é a forma de um cidadão capitalista obter dignidade e capital, escraviza os homens e os submete ao mundo mecânico e superficial, cuja única ideologia – conjunto de valores que norteiam um indivíduo ou um grupo de indivíduos – é o dinheiro. Todos valem alguma “coisa”, e qualquer “coisa” é mensurável por meio de um sistema monetário arbitrário, cujo eixo atual é o dólar norte-americano.
O amor – como não? – é também um valor mensurável monetariamente, mesmo que existam honrosas exceções que merecem efusivos aplausos. Nem mesmo a honestidade merece apreciação isenta da atual ideologia – ou não era intenção daquele estrangeiro recompensar financeiramente o faxineiro do aeroporto de Brasília que achou US$ 10 mil e, podendo levar para casa sem deixar pistas, preferiu devolver tudo até o último centavo?
Há de forma muito clara – em maior ou menor grau, mas ainda nítido – um dilema fundamental e um desafio monumental para os dias de hoje. Como a renda dos trabalhadores está em curva decrescente ano após ano, cada vez mais precisamos aumentar a carga de trabalho. Em um determinado grau, isto significa algumas horas de trabalho extra e cortes superficiais, como viagens ao exterior. Em outro grau, isto implica em colocar toda a família – crianças e adultos – na luta pela sobrevivência.
Neste processo, a leitura – e a cultura de uma forma geral – é uma das primeiras a ter a cabeça cortada. No dia-a-dia, continuamos vivendo com nossa ansiedade e avidez pelos livros, postergando no entanto esta prioridade para um segundo plano a fim de manter o mesmo nível de vida anterior.
Em pouco tempo, o desespero por estar realizando apenas atividades meramente mecânicas rompe o silêncio. Como defesa natural, um belo dia, desiste-se completamente da leitura, ou de aprender a ler. Passamos a aceitar que nunca haverá tempo para o exercício intelectual. O “romantismo juvenil” dá lugar ao “ceticismo realista”.
Repete-se, para registro, o segundo parágrafo deste texto: “A partir de
1964, as idéias eram omitidas por um sistema que sufocava o maior número de informações inconvenientes possíveis, beneficiando quase sempre o poder estabelecido.”
Afinal, em que ano estamos? E o que mudou? Mudou, entre outros, a forma como se domina. Isso nos deixa, sem dúvida, inquietos. Esta inquietação intelectual é o que mantém nosso espírito aceso e nossa alma viva. Manter, portanto, a avidez pela leitura e pela cultura (popular ou não) de uma forma geral, mesmo que a solução pareça distante. Eis um bom começo.
Gustavo Barreto é editor da revista Consciência.Net e estudante de Comunicação Social da UFRJ