[Publicado em 28.12.10 – Por Guilherme Marques “Soninho”, doutorando do IPPUR/UFRJ]
Megaeventos esportivos como a Copa do Mundo de Futebol e os Jogos Olímpicos estão associados, hoje em dia, à execução de grandes projetos de intervenção urbana. A organização desses grandes eventos passa a fazer parte de um tipo de modelo de planejamento urbano, o “empresariamento urbano”** , para o qual a venda e/ou a reconstrução da imagem da cidade, moldada de acordo com as necessidades de acumulação de capital, é um dos aspectos centrais.
Intervenções pontuais capazes de estimular uma renovação urbana em diferentes áreas e a construção de uma imagem de cidade sem conflitos são algumas das estratégias necessárias para a implementação do empresariamento urbano. Essas áreas da cidade, valorizadas por obras de infra-estrutura e pela proximidade de equipamentos esportivos, para atrair investimentos e novos negócios, tornam-se palco de despejos e remoções dos moradores pobres, de rua e de habitações irregulares, da repressão aos trabalhadores de rua, ambulantes etc. A cidade também precisa ser livre de conflitos e, para tanto, a repressão policial objetiva intimidar e impedir a ocorrência de manifestações dos críticos e atingidos por essas mudanças.
Copa, Olimpíadas e o Rio de Janeiro
No Rio de Janeiro, os efeitos desse modelo já podem ser percebidos. Todos os projetos de intervenção urbana, tanto na área de transportes, como habitação, segurança e saneamento são voltados para os megaeventos esportivos. Afinal, os megaeventos proporcionam alguns dias de grande divulgação da imagem da cidade, e a propaganda é a alma do negócio. Mas, se a propaganda é a alma, o que está sendo negociado é bem concreto: são os terrenos públicos e privados que poderiam ser usados para habitação popular. Estão sendo negociadas as isenções de impostos para os investimentos do capital, enquanto faltam recursos para saúde e educação. Estão sendo negociados novas leis e parâmetros urbanísticos que atendam às grandes cadeias internacionais de hotéis, e que garantam também que os pobres serão removidos para bem longe. Estão sendo negociados mais uma reforma do Maracanã, outra do Sambódromo, além da construção, com dinheiro público, de vilas olímpicas para atletas, árbitros, mídia etc, de forma que as construtoras recebam todos os benefícios, aluguem esses quartos para o poder público antes e durante os eventos, e depois os vendam para os ricos e especuladores. Planejamento? Apenas para a elaboração de um cardápio de possíveis intervenções urbanas que serão postas em prática conforme o capital compre ou não cada projeto, através das parcerias público privadas (PPPs). Democracia? Apenas para o capital, que diretamente decide o que e onde será realizado, construído ou utilizado na e da cidade.
Em suma, está sendo negociada a cidade, e com ela todos seus recursos e os direitos dos seus moradores e trabalhadores. E, se flexibilização e desregulamentação são palavras mágicas para o capital e o neoliberalismo, elas têm que ser aplicadas também às cidades. Para tal, argumentam que vivemos um momento excepcional, que prazos para obras precisam ser cumpridos para que o Rio e o Brasil não passem profundos constrangimentos internacionais. O resultado é a instauração de uma cidade de exceção. Cidade onde as leis de licitações, os limites de endividamento, as leis que regulam os parâmetros urbanos, as leis fiscais, e mesmo as garantias dos direitos individuais e coletivos são flexibilizadas conforme o gosto do freguês (investidores) em nome desse momento excepcional.
E, se o objetivo são os negócios, não esqueçamos: amigos, amigos… negócios à parte. Pois, se o objetivo é uma cidade amigável aos negócios e o capital, a cidade não será amigável aos seus moradores e trabalhadores. Vejamos: estão previstas remoções de 130 favelas até as Olimpíadas. Para a construção de 3 grandes vias rodoviárias (Transcarioca, Transoeste e Transolímpica) serão necessários milhares de despejos e remoções. Os 73 terrenos do Metrô, todos em áreas com infraestrutura, ao invés de usados para habitação popular, serão vendidos para fazer caixa para o metrô prometido ao COI. A Zona portuária carioca, onde cerca de 70% do solo é público, também entrou nos planos Olímpicos, para reforçar o projeto de aburguesamento da região. A política de segurança, o que inclui as UPPs, tem como prioridade criar zonas de paz (e de muros) nos entornos dos equipamentos esportivos, nas vias de acesso dos turistas a esses equipamentos e nas áreas valorizadas ou em vias de valorização. E, por falar em segurança, lembremos: os jogos Pan-americanos no Rio, em 2007, começaram com o massacre do morro Alemão. E isso não foi mera coincidência: foi a política do circo que, no nosso caso, tem como acompanhamento o pau em vez do pão.
Já que estamos falando nisso: alguém acha que é coincidência o fato de termos no Rio uma coalizão de poder envolvendo as 3 esferas de governo: federal, estadual e municipal ? Ou acha que é por acaso que 90 (ou 91) dos 92 prefeitos do Estado do Rio tenham apoiado a reeleição do Governador ? Não, isso não é mera coincidência. Essa é uma das expressões da unidade da classe dominante aqui. Unidade essa que há uns 50 anos não existia (se é que existiu algum dia). E essa unidade tem como um de seus pilares o projeto de fazer da cidade do Rio uma cidade global (da periferia do capitalismo), e para tal é fundamental a realização dos megaeventos esportivos.
Segundo a teoria, as cidades globais concentram sedes de empresas transnacionais, precisam ter hotéis, serviços e equipamentos de 1ª classe para esses homens de negócios que dirigem as empresas. Precisa ter também uma excelente infraestrutura para essas empresas, tanto na área de comunicações como aeroportos, segurança etc. E precisam ter também condições atrativas para as empresas, como isenção de impostos, oferta de terrenos com infraestrutura e baixo preço, mão de obra barata etc. Novamente segundo essa teoria, alguns dos efeitos desse modelo tão almejado são o aumento da desigualdade social e econômica e da segregação espacial. Mas alguém acha que isso é um problema para a classe dominante ?
Se todas essas coisas não são problemas, mas sim soluções para a classe dominante, é preciso convencer disso também os trabalhadores, os pobres e até mesmo os movimentos sociais, sindicais etc. E nada melhor do que o clima criado pelos grandes eventos esportivos para isso. Ou ninguém lembra das festas de rua para comemorar a vitória do Rio e do Brasil pelo direito de ser sede das Olimpíadas? A realização desses megaeventos serve também para difusão de um “patriotismo da cidade”. E o patriotismo da cidade serve para angariar apoio popular ao projeto da classe dominante, mas serve também para evitar e criminalizar as críticas, os conflitos urbanos, trabalhistas, fortalecendo ainda mais a cidade de exceção. Afinal, argumentam mídia e governos: remoções, despejos, obras faraônicas e desnecessárias, muros em favelas etc estão a serviço de um bem maior e, se alguém se insurge contra essas coisas, está contra o progresso, a cidade e o espírito olímpico !!!
Coer
ção e consentimento, criminalização dos pobres e patriotismo da cidade. Eis a velha fórmula de hegemonia. Mesmo assim, há aqueles que resistem. E a resistência a megaeventos tem feito história. História de lutas que começam antes, se intensificam durante os eventos e continuam após esses terminarem. E essa história também vem sendo estudada.
PAN Rio 2007: Manifestações e Manifestantes
Inspirados pelos processos de lutas ocorrido em Barcelona e também em São Domingos na República Dominicana, começamos há alguns anos a estudar as manifestações e a resistência aos megaeventos e às políticas urbanas a esses associadas. Com a realização do PAN 2007 no Rio, pudemos acompanhar de perto essas manifestações. Registramos manifestações relacionadas ao PAN desde 2005. E registramos também manifestações organizadas pela articulação de movimentos sociais que se criou na época do PAN até os dias de hoje, como foi o caso da comemoração do 1º de maio nesse ano no Morro do Bumba em Niterói.
Esse estudo, a partir do registro e análise de 45 (quarenta e cinco) manifestações, sugere que uma articulação entre movimentos sociais pode ser uma característica típica da resistência aos grandes eventos e ao correspondente modelo de planejamento e intervenção urbana. Essa articulação de movimentos sociais no Rio de Janeiro se deu, em um primeiro momento, através do Comitê Social do PAN. Depois, quando passou a organizar um conjunto maior de movimentos e entidades, através da organização da Plenária de Movimentos Sociais (PMS-RJ).
Essa articulação foi constituída a partir de movimentos que representavam grupos sociais diretamente ou indiretamente atingidos pelo evento. As obras relativas aos Jogos; as prioridades orçamentárias das três esferas do Estado; e a política de segurança implementada durante o PAN foram, entre outros, fatores que atingiram diferentes segmentos da população. Mas, além desses grupos e movimentos, existiram também aqueles que aproveitaram a ocorrência do PAN para realizarem manifestações: que usaram o PAN como arena para dar mais visibilidade às suas lutas e reivindicações. Foi a articulação desses 2 (dois) grupos de movimentos e entidades que resultou na construção dessa ampla rede de entidades e movimentos sociais.
Entre as possíveis explicações para a continuidade dessa experiência por anos, destacamos que eventos desse porte atingem diferentes grupos e setores sociais da cidade sede, favorecendo a ocorrência de manifestações conjuntas, para as quais diferentes movimentos se conhecem, trocam experiências e, assim podem criar laços de solidariedade. O fato de ser um evento multi-escalar, por sua vez, favorece a participação de entidades e movimentos nacionais e locais. Todos esses fatores, porém, não explicariam a continuidade dessa experiência e seu desdobramento na organização da PMS-RJ se não houvesse, em meio à conjuntura de fragmentação dos movimentos sociais, a vontade política e a atuação consciente para construir espaços comuns e permanentes de articulação de lutas.
Agora, 3 anos depois do PAN e alguns anos ainda antes da Copa do Mundo e das Olimpíadas, além da necessária vontade política, podemos aprender também com a experiência recente de nossas lutas. No caso do PAN 2007 no Rio, o legado para a população, em matéria de obras e equipamentos, foi praticamente nenhum enquanto os custos foram bastante altos. Já do ponto de vista das lutas sociais, os legados foram significativos. E serão mais significativos ainda se, agora, servirem não apenas às lutas no Rio, mas também a todos os lutadores das cidades sedes da Copa do Mundo de 2014.
Os comitês populares da Copa estão sendo criados. Porto Alegre, Fortaleza e Belo Horizonte são algumas das cidades onde já estão em funcionamento. No Rio, o comitê popular será da Copa e Olimpíadas. Cabe a nós incentivar e participar desses comitês, preparando a resistência para impedir que o circo aqui montado não venha acompanhado de mais pau nos trabalhadores e setores mais vulneráveis de nossa cidade.***
*Esse texto, com pequenas mudanças, fez parte da apostila do XVI Curso anual do Núcleo Piratininga de Comunicação – NPC, em novembro de 2010.
**Para mais informações sobre a noção de empresariamento urbano, ver: HARVEY, David. Do gerenciamento ao empresariamento: a transformação da administração urbana no capitalismo tardio. Espaço e Debates, São Paulo, Ano XVI, n.39, p. 48-64, 1996.
***Para conhecer melhor a experiência das lutas relativas ao PAN Rio 2007, ou para mais referências bibliográficas, vocês podem acessar o texto de Guilherme Marques e Danielle Barros Benedicto: “PAN Rio 2007: Manifestações e Manifestantes”, nos anais do XIII Encontro da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional –ANPUR. Disponível em: http://www.anpur.org.br/anais/ena13/ARTIGOS/GT1-1062-938-20081220230327.pdf ou no site do NPC, na sessão Cidades.