[Por Marcio Pochmann para Outras Palavras] O grave levante golpista de 8 de janeiro não deveria ser considerado um ponto fora da trajetória democrática, muito menos ocultar a sua relação direta com o movimento estrutural que levou a sociedade urbana e industrial ao colapso no Brasil. O pano de fundo disso se encontra assentado na perestroika adotada pelos governos a partir de 1990, quando as bases de funcionamento do capitalismo no país foram sendo alteradas, o que comprometeu profundamente a estrutura social e política do país. 

Por perestroika entende-se a política neoliberal que mudou a organização do sistema econômico, originalmente perseguida por Mikhail Gorbatchov (1985-1991), cujo intuito de integração à globalização capitalista gerou a dissolução da União Soviética e o fim do homem soviético. Neste sentido, o avanço da globalização nos Estados Unidos, materializado pela desindustrialização, impôs o decrescimento do horizonte de expectativa exposto pelo rebaixamento das condições de vida e trabalho, bem como a dissolução do sonho de sucesso americano. 

No caso brasileiro, o predomínio do receituário neoliberal demarcou o trajeto pelo qual o capitalismo passou a perseguir, tendo a participação da indústria no Produto Interno Bruto (PIB) declinado de 27,3%, em 1986, para apenas 11% em 2021. Coincidentemente, o grau de abertura comercial saltou de 15% do Produto Interno Bruto (PIB) em 1990 para 39% em 2021, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI). 

Em síntese, a perestroika brasileira aprofundou o subdesenvolvimento nacional e a dependência externa, uma vez que o peso da indústria no valor da produção nacional foi reduzido em 59%, enquanto a subordinação à demanda externa foi multiplicada por 2,6 vezes (comércio externo relativo ao PIB). 

O retrocesso na infraestrutura econômica afetou fortemente a estrutura da sociedade que entre as décadas de 1930 e 1970 desconhecia o que era recessão, desemprego aberto e mobilidade social descendente. O colapso da sociedade urbana e industrial iniciado em 1990 desestruturou a esperança do brasileiro, abrindo espaço para que no campo da política, a extrema direita se apresentasse e encontrasse via de ascender, questionando a ordem democrática existente. 

Constata-se, portanto, que a decadência econômica e social se processou umbilicalmente associada à esfera da política brasileira. Os governos do ciclo político da Nova República, cada um a seu modo, trataram de gerir o curso do colapso da sociedade industrial. 

Pela via democrática, interesses diversos foram acomodados, postergando ao máximo, como se fosse possível comprar tempo, no aguardo de um milagre espontâneo. Através da elevação da carga tributária em quase 10 pontos do PIB, especialmente na parcela de menor rendimento, o fundo público foi ampliado em mais de 40% do PIB desde 1990, possibilitando gerir tanto a riqueza no andar de cima pelo rentismo, como a miséria no andar de baixo por programas de transferência orçamentária. 

Tanto assim que o processo de administração do colapso da sociedade industrial ampliou o protagonismo de ações para além do poder executivo. O poder legislativo também “meteu a mão” no bolo orçamentário pela via das emendas impositivas e até secretas, ao passo que o judiciário não deixou de interferir na execução de pagamentos com a imposição dos recursos públicos diversos. 

Diante da população crescentemente sobrante aos requisitos do capitalismo de dinamismo anêmico, as forças democráticas de representação de interesses (associações, sindicatos e partidos), salvo exceção, burocratizaram-se e se distanciaram da base social. Paralelamente, a extrema direita alicerçou seus fundamentos no novo sistema jagunço urbano, condizente com o avanço do fanatismo religioso e do banditismo social a tal ponto de que seja possível a várias partes do território nacional operarem à margem do sistema de ordenamento democrático. 

Persiste uma verdadeira marcha da insensatez, que para ser interrompida exige mudança profunda de rumo no país. Do contrário, o Brasil pode seguir se destacando como o país de maior índice de ansiosos do mundo (9,3% ou 18 milhões de pessoas) e o terceiro maior em depressivos (5,8% ou 11 milhões), segundo levantamento da Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2017. 

Da mesma forma, pelos sinais de tristeza social que se alastra diante do decrescimento do horizonte de expectativa, é grave o avanço das mortes por desespero. Estas, por si só, invertem os ganhos na esperança de vida para determinados segmentos da população brasileira (Crise econômica, austeridade fiscal e mortes por desespero no Brasil, tese de R. Guimarães de 2020).