Por Maria do Carmo Gauterio*, enviado por e-mail ao NPC
Há exatos 50 anos o Brasil protagonizava o apogeu de um processo político golpista, iniciado na década de 1950 e orquestrado internacionalmente pelos EUA, com a participação das elites subservientes ao capital estrangeiro, espalhadas por todo o território da nação. Chegava-se ao ponto. Um governante democraticamente eleito, com poderes reafirmados e legitimados em Plebiscito Nacional (95% dos votos), era deposto pela força das armas, acumpliciadas com tais elites e com seus senhores da América do Norte. A América para os (norte) americanos era aqui. Por quê?
Porque diferentes setores da sociedade brasileira, apoiadores do “grande irmão” em sua guerra fria (e santa) contra a União Soviética pelo domínio planetário, não podiam admitir o poder político do país nas mãos de grupos nacionalistas. Grupos que estariam, com suas propostas reformistas, subvertendo a ordem aqui estabelecida há 500 anos – a ordem do mais forte e do mais rico. O presidente da República, segundo eles, era um “subversivo”: frouxo com os baderneiros, apoiava a encampação de empresas estrangeiras, propunha a reforma agrária desrespeitando o direito de propriedade, dava ouvidos à gentalha. Ouvia, inclusive, marinheiros e sargentos, ignorando o valor quase sacro da hierarquia. E tinha, além de tudo, simpatia pelos comunistas – “aqueles”, que impediam o povo de ir à igreja, comiam criancinhas e, principalmente, queriam o poder para os “de baixo”. Estava acuando o grande empresariado, os bancos, o latifúndio… produtores da riqueza nacional. As forças vivas deste chão, lideradas pelas valorosas forças armadas, deviam cumprir seu dever cívico e arrancá-lo do cargo. Foi o que fizeram.
Esta foi a versão espalhada nos quarteis e nas escolas, nas repartições públicas e nas igrejas, nos cafés e nos bordeis. Veio primeiro pelas ondas do rádio e pelas páginas dos grandes jornais. Depois, até pelos livros didáticos. Muitos acreditaram nela, transformando essa tentativa espúria de justificar o arbítrio numa vitória dos golpistas – a manipulação das mentes adormeceu as consciências. Então, “nossa pátria-mãe tão distraída”, fugindo de uma hipotética república sindicalista, que ninguém sabe explicar como seria, mergulhou em um repugnante atoleiro verde que, por longuíssimos 21 anos, nos sujou até a alma. Mesmo entre os que logo perceberam ser aquele golpe civil-militar a expressão vencedora de um projeto societário mundial injusto, prepotente e excludente, muitos foram os que calaram. O medo justificava o silêncio, o oportunismo igualmente. E os tormentos vividos pelos que ousavam discordar em público pareciam indicar o caminho da prudência e da acomodação.
Entretanto, muitos foram também os que resistiram. Porque se negavam a entregar os espaços conquistados a duras penas. Porque estavam tomando parte em uma intensa organização popular, sem precedentes em nossa história. Porque queriam uma sociedade em que todos tivessem vez e voz. Porque já tinham lutado pela posse daquele Presidente. Foram vencidos, pela força bruta que se impôs e fez com o povo brasileiro “o que a força sempre faz”, sob o olhar indiferente ou omisso das parcelas caladas. De imediato, a sede da União Nacional dos Estudantes foi incendiada no Rio de janeiro, centenas de sindicatos sofreram intervenção, muitos prefeitos, governadores e parlamentares foram cassados; as Ligas Camponesas foram dispersadas, lideranças populares foram desempregadas e presas, milhares de funcionários públicos militares e civis foram expurgados de seus cargos. Mas, mais adiante, ficaria pior.
Do regime ditatorial implantado no Brasil naquele 1º de abril, quem se beneficiou? Quem lucrou com a Transamazônica ou com a Ferrovia do Aço? Quem “viu” o milagre econômico? Quem sofreu com o arrocho salarial, o desemprego e o aumento da inflação? Quem comeu do bolo que o ministro Delfim Neto só fazia crescer e nunca repartia? Para impedir que perguntas como estas fossem feitas ou respondidas, a ditadura brasileira estabeleceu o Terror de Estado: censura, prisão, tortura e morte. Nossa sociedade encontrou-se, assim, com todos os seus problemas agravados e sem liberdade de escolha, sem poder de decisão, sem direito ao contraponto.
Na década de 1980, os ditadores recuaram, acossados pela nova onda de mobilização popular e pela crise capitalista do petróleo. O regime de força acabava e as elites brasileiras, com sua abertura “lenta, segura e gradual”, buscaram o esquecimento. Esquecimento da brutalidade de uns, da covardia de outros e da dor e fome de justiça dos vencidos pelo golpe. Através dos grandes meios de comunicação, estas elites têm tentado, de novo, pela manipulação das mentes, o adormecer das consciências: “não foi tão ruim assim, teve um lado bom”. Hoje, como ontem, há os que acreditam. Hoje, como ontem, há os que resistem – e contam esta história.
*Maria do Carmo é professora de História em Rio Grande – RS. É autora do blog mariabonitadosul.