Em 16 de abril de 2003, Carlos Alberto da Silva Ferreira, Carlos Magno de Oliveira Nascimento, Everson Gonçalves Silote e Thiago da Costa Correia da Silva foram assassinados por policiais militares na favela do Boresl, na zona norte do Rio de Janeiro. Na próxima semana, em 16 de abril de 2023, completam-se 20 anos do crime. Para resgatar a memória e a força da luta dos familiares dos jovens assassinados, recuperamos aqui a carta escrita pelos movimentos Posso Me Identificar? e Rede de Movimentos Contra a Violência em 2006 e direcionada aos representantes do poder público. Confira!
’POSSO ME IDENTIFICAR’ dirige-se aos Poderes Públicos
Movimento de Paz, Garantia de Direitos e Preservação da Vida -, oriundo da reunião de diversas comunidades de favelas e periferias do Estado do Rio de Janeiro, com o apoio de diversos movimentos sociais, populares e de direitos humanos, vem por este documento apresentar suas propostas aos poderes públicos, em suas diversas instâncias, visando a superação gradual e contínua da violência estrutural que atinge a sociedade.
De forma geral, entendemos que a melhor forma de enfrentar e evitar a violência é através do controle social informal desta. Ou seja, através da efetivação dos direitos fundamentais, principalmente de grupos historicamente vulnerabilizados e minorizados da sociedade brasileira.
Nisto, no que dizemos, não há nenhuma novidade nem incongruência. Apenas a reafirmação do que os cânones científicos em Criminologia (Política Criminal), Sociologia, entre outras disciplinas, já apontam nas últimas décadas, sistematizando uma percepção e compreensão da realidade que perpassa, de forma dialética, o conhecimento retido pelas próprias comunidades vitimizadas pela violência.
Vimos, em nome de amplos setores da sociedade, requerer que os artigos da Constituição de 1988 que estabelecem a igualdade e a garantia de direitos fundamentais, em primeiro lugar o direito à vida, sejam cumpridos pelas estruturas estatais.
Neste sentido, o Movimento Posso Me Identificar requer, como garantia da implementação de políticas de estado já determinadas na Carta Magna:
1) A todos os poderes nos níveis federal, estadual e municipal:
I ) Garantia do princípio da absoluta prioridade orçamentária para a efetivação dos direitos fundamentais em todas as instâncias dos poderes públicos: municipal, estadual e federal, implícito no artigo 5º da Constituição Federal;
II) Garantia de que as pensões sejam iguais para todos; não devem haver valores diferentes para casos iguais (caso necessário, incluir adendo à lei);
III – Constituição de um projeto sistêmico de Reforma da Polícia, da carreira policial e dos órgãos de Segurança Pública e de controle social dos instrumentos de repressão do Estado (em caráter emergencial);
IV – Retirada do valor de prova judicial da “confissão” do réu na fase de inquérito policial, como forma de evitar a tortura;
V – Proibição do segundo emprego de policiais em serviços de segurança privada;
VI – Proibição aos agentes policiais de serem proprietários, acionistas, prestarem consultoria ou de terem qualquer ligação com empresas de segurança;
VII – Redefinição do Estatuto do Desarmamento para impedir o armamento das guardas municipais;
VIII – Proibição da incorporação de policiais afastados em quaisquer outros serviços de segurança públicos ou privados;
IX – O afastamento imediato de funcionários dos órgãos de segurança que tenham trabalhado em órgãos de repressão durante a ditadura militar;
X – A separação dos presos no âmbito do sistema de detenção, conforme os indivíduos estejam aguardando julgamento ou já tenham sido condenados, conforme estejam cumprindo pena em regime aberto, semi-aberto ou fechado, bem como conforme a gravidade do delito;
XI – Ênfase na redução de danos nas políticas públicas sobre drogas tornadas ilícitas;
2) Ao Poder Executivo Federal:
XII – A definição de metas de redução da violência policial para os Estados e de reparação (tutela antecipada) das vítimas da violência policial e de seus familiares, vinculadas ao recebimento de verbas federais de programas e do plano de segurança pública;
3) Ao Poder Judiciário Estadual:
XIII – Garantia da proteção jurídico-social e da reparação moral e de direitos, de forma prioritária, às vítimas da violência policial e aos familiares destas;
XIV – Ttutela antecipada dos direitos destes cidadãos supracitados, tendo em vista a situação de extremo risco social em que se encontram;
XV – Efetivação do controle externo da atividade policial pelo Ministério Público;
4) Ao Poder Legislativo Estadual:
XVI – Constituição e efetivação prioritária de um Programa de Atendimento e Proteção para Jovens Vítimas da Violência e/ou Ameaçados por esta, e para os demais cidadãos nas mesmas condições;
XVII – Constituição do Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH) deliberativo, de forma intersetorial, e, dotado de instrumentos de promoção, proteção, defesa e garantia de direitos e de controle social da violência institucionalizada, com a participação da população em audiências públicas e conferências;
XVIII – Reconstituição do Plano Estadual de Direitos Humanos, em conferências com ampla participação das organizações populares, com o estabelecimento de metas precisas, instrumentos de controle social do Estado e do Capital, de monitoramento e responsabilização;
XIX – Constituição de um Sistema Estadual de Proteção aos Direitos Humanos que garanta a prioridade no acesso à Justiça aos casos de violação dos direitos humanos cometidos contra grupos e/ou indivíduos de grupos historicamente vulnerabilizados e/ou minorizados da sociedade;
XX – Passagem imediata do Sistema de Cumprimento de Medidas Sócio-Educativas para a Secretaria Estadual de Direitos Humanos;
XXI – Passagem imediata do Instituto Médico Legal, e das perícias técnicas, para a Secretaria Estadual de Direitos Humanos, com dotação orçamentária específica suficiente;
XXII – Modificação dos símbolos da atividade policial, estampados em veículos, uniformes e órgãos de segurança pública: supressão de armas, dos ramos de cana e café que remetem à repressão contra à insubmissão à escravidão e demais símbolos que representam o paradigma da morte, evitando expressões que remetam à ação violenta/ armada trocando-os por símbolos que remetam à disciplina, à atenção, ao respeito, à excelência investigativa e à sabedoria;
XXIII – Formação continuada dos policiais, agentes penitenciários e de disciplina em Direitos Humanos, monitorada pelo CEDH;
XXIV – Formação dos novos policiais não deve durar menos de dois anos e obrigatoriedade de formação/atualização em direitos humanos dos antigos;
XXV – Criação de ouvidoria e corregedorias independentes constituídas a partir do CEDH, com autonomia e estrutura investigativas;
XXVI – A garantia do direito de acompanhamento, no mesmo veículo, de parente, amigo, ou técnico por estes designado, a vítimas, feridos ou mortos em ações policiais;
XXVII – A elaboração de um rigoroso Estatuto sobre a abordagem de suspeitos;
5) Ao Poder Executivo Estadual:
XXVIII – Fim do período de plantão de 24h por 48h de folga;
XXIX – Por um plano de cargos e salários que contemple a categoria policial;
XXX – O acesso público, nas delegacias e batalhões, a listagem de funcionários em escalas de plantão, que deve ser disponibilizada até 48h após o plantão em caso de missões especiais;
XXXI – O afastamento dos agentes que estiverem sendo investigados em casos de envolvimento em grupos de extermínio, execução sumária, corrupção e demais violações de direitos humanos até que se conclua a investigação e o devido processo judicial;
XXXII – A garantia de que em cada delegacia policial deve ter um defensor público;
XXXIII – O afastamento da função de policiais que se envolverem em eventos com resultado de morte, até que se investigue as motivações e proceda a necessária avaliação psicológica do envolvido;
XXXIV – A implementação de programa de atendimento psicológico aos policiais e agentes de segurança envolvidos em ocorrências seguidas de morte;
XXXV – O treinamento para todos os policiais no emprego de técnicas não letais nas operações policiais (tiro defensivo, forma de abordagem, etc);
XXXVI – A demissão dos funcionários da área de segurança que ocultarem sua identificação;
XXXVII – A premiação para policiais que resolverem situações difíceis sem o emprego da força;
XXXVIII – A premiação para batalhões, delegacias, equipes, que diminuírem o número de mortes reduzindo a insegurança e a criminalidade nas suas regiões de atuação.
Assim, requeremos que os citados poderes assumam as propostas acima como políticas de Estado. Ao negligenciar estas propostas, os atuais governos, parlamentos e tribunais; e os futuros, estarão apostando na política do confronto e da violência, da banalização da vida e do desrespeito aos Direitos Humanos. Rasgando a Constituição que rege o Estado, os governos, com a cumplicidade ou não dos poderes legislativo e judiciário, estarão violando a democracia no Brasil.
Desta forma, agradecemos a vossa atenção, e aguardamos sua consideração a respeito deste documento, visando a abertura de um canal de diálogo permanente com a sociedade e com as comunidades vitimizadas pela violência.
Neste sentido, nos colocamos à disposição para quaisquer esclarecimentos.
Cordialmente,
MOVIMENTO POSSO ME IDENTIFICAR
REDE DE MOVIMENTO CONTRA VIOLÊNCIA NAS COMUNIDADES