[Por Reginaldo Moraes] Acabo de ouvir a Gal cantando: “Você diz a verdade e a verdade é o seu dom de iludir”. As palavras nunca são inocentes, nós sabemos. Elas têm um sentido, aquele que figura nos dicionários, a denotação. E têm uns sentidos indiretos, sugestivos, alusivos. As conotações.
Veja como nos maravilhamos com a palavra “primavera”. A ela associamos coisas boas: renascer, florescer, céu azul, vida. E inverno? Claro, quase o oposto, pois não? Daí vemos numa notícia a expressão “primavera árabe”. Entre outras primaveras, de outros lugares. E nos enchemos de simpatia pela coisa.
Caramba! Depois nos damos conta de que todas essas festejadas primaveras políticas resultaram ou pelo menos foram seguidas de invernos tenebrosos. As árabes, sai de baixo, nenhuma se salvou. Na Ucrânia? Só alucinados ainda vêem aquela “revolta da praça” como algo libertador – um grupo de nazi-fascistas, fortemente financiados por americanos. Outras primaveras “libertárias” (algumas feitas no outono…) foram também rapidamente mergulhadas em uma onda ultraconservadora, dessas que não apenas abalam a “política” em sentido estrito, mas se enraízam na vida cotidiana, censurando, podando, proibindo.
A primavera que foi menos desastrada (mas demorou um bom tempo) foi a espanhola, aquela dos “indignados”, lembram?. Poucos meses depois da alegre primavera da praça, o partido da ultra-direita espanhola ganhou as eleições e implantou um programa de retrocesso social dos mais fortes da história do país. Dura até hoje e é cada vez mais truculento. Em parte, mas apenas em parte, surgiu da primavera o Podemos, um partido social-democrata de esquerda, que é escoadouro políticos de numerosos movimentos sociais antes separados e que não dependiam nem decorriam da tal manifestação dos “indignados” – a chamada “Maré da Educação”, a “Maré da Saúde”, o gigante movimento dos atingidos pelas hipotecas, etc. Um certo sopro de primavera reformista, no meio de um grande inverno reacionário.
Assim, toda vez que encontramos uma primavera anunciada, vamos colocar na nossa linguagem um grãozinho de prudência. Nem tudo que parece espontâneo, libertador e “diferente da velha política” é, de fato, algo progressivo. Pode ser apenas uma conversa para boi dormir. E quando o boi dorme…
Essa é mais uma das lembranças do ativista escaldado. Um amigo meu tinha mania de repetir o verso de Raul Seixas: “Sonho que se sonha só é só um sonho, sonho que se sonha junto é realidade”. Bem, sonho em grupo pode ser também uma alucinação coletiva. Calma, muita calma nessa hora. Se você não colírio, coloque óculos escuros.