Capa da revista reacionária com
pretensas ameaças do presidente
Chávez para a América Latina

Matéria de capa da edição desta semana – intitulada “Quem precisa de um novo Fidel?” – acusa Hugo Chávez de ameaçar “a estabilidade da América Latina com o financiamento e o apoio a grupos radicais de países vizinhos”, a formar “uma milícia civil”, a usar o “petróleo para chantagear as repúblicas da América Central”, e a aliar-se à “ditadura cubana de Fidel Castro” etc. etc. A ladainha é repetição do recado de Condoleezza Rice em seu périplo continental. Veja, que exaltou o golpe de abril de 2002 contra o líder venezuelano, tenta firma-se como o maior panfleto da direita brasileira. Por Gilberto Maringoni, maio de 2005

Veja se autoproclama uma “revista semanal de informação”. Para obter sucesso, conta sempre com a falta de informação e de memória alheias. Veja, não nos esqueçamos, apoiou Collor no início. Em dezembro de 1994, chegou a classificar, em matéria de capa, o Plano Real como “O novo milagre brasileiro”. Para atacar o MST, não teve dúvidas em adulterar uma foto do líder do Movimento, João Pedro Stédile, ou de falsear informações sobre a luta pela terra.

Atravessado na garganta de Veja está o presidente da Venezuela, Hugo Chávez Frías. Os motivos são basicamente dois. Um é – chamemos as coisas pelos nomes – ideológico. Veja soma-se ao ódio de fundo – pelos nomes, pelos nomes! – classista, racista e político devotado ao mandatário venezuelano pela mídia de seu país, que o sataniza ao ponto de concluir tratar-se de um débil mental. A pauta é ditada pela imprensa estadunidense mais conservadora, tendo o Washington Post à frente. Veja acha que Chávez não é democrático. Até aí, é um direito de quem manda na publicação.

Estragou uma capa

Mas o ódio de Veja tem por base um outro elemento, mais concreto. Chávez estragou uma capa que deve ter dado muita satisfação à alta direção da empresa da família Civita. Recordemos a chamada de capa do número 1.747, datada de 17 de abril de 2002. A edição fechava na noite de sexta-feira, 12 de abril. Menos de 20 horas antes, a oposição a Chávez – composta por membros do empresariado, em aliança com o alto comando das forças armadas, setores da burocracia petroleira e a Casa Branca – consumara um golpe que o retirara do palácio de Miraflores, acabando com as instituições democráticas do país. Veja não teve dúvidas. Sapecou na capa a chamada “A queda do presidente fanfarrão”.

Na página 45, a revista sentenciava:

“Chávez se considerava um Robin Hood bolivariano. Era mais um bufão, que entretinha o povão com programas de televisão em que se portava mais como animador de auditório do que como presidente. Sua queda foi recebida como boa notícia no mundo: melhorou o índice risco-país da Venezuela, a bolsa de Caracas disparou (alta de 8%) e o preço internacional do petróleo caiu 9%”.

Todos sabem o resto da história. Quando chegou às bancas, na manhã de domingo, a edição estava para lá de velha. Milhões de venezuelanos nas ruas e uma inédita divisão do exército abortaram o golpe. Veja sequer pediu desculpas aos leitores pela barriga, na semana seguinte. Se os fatos não se ajustam à manchete, danem-se os fatos, parece ser a máxima da direção de Veja. Imperdoável a petulância do mestiço em teimar voltar ao poder e estragar uma manchete do maior semanário brasileiro do mundo!

Condinha paz e amor

Agora, Veja volta à carga na edição desta semana, aliás, primorosa no que revela de sua linha editorial. A capa é eloqüente: “Quem precisa de um novo Fidel?” Encimada pela expressão carrancuda do líder venezuelano, a manchete logo emenda: “Com milícias, censura, intervenção em países vizinhos e briga com os EUA, Hugo Chávez está fazendo da Venezuela uma nova Cuba”.

A entrevista das páginas amarelas é com a secretária de Estado dos EUA, Condoleezza Rice. O tom é todo Condinha paz e amor, como se vê pelo trecho seguinte: “Mesmo quando a missão inclui assuntos mais comezinhos, como as encrencas de Hugo Chávez na Venezuela e as hesitações brasileiras na Alca, Condi tem se saído extraordinariamente bem na Operação Simpatia. Sua espetacular história de sucesso a precede: nascida no coração racista da América, entrou na faculdade aos 15 anos, formou-se aos 19, doutorou-se com 26. Pianista, especialista em relações internacionais e fluente em russo, chegou a reitora de Stanford e, embora negue quase que diariamente, o caminho da Casa Branca é uma possibilidade no horizonte”.

Não há encrencas COM Hugo Chávez, mas encrencas DE Hugo Chávez, de acordo com o olho da entrevista. O pingue-pongue pauta a edição. Mas a grande arte está lá pelo meio da revista, sob o espirituoso título “O clone do totalitarismo”. Em seis páginas ficamos sabendo, entre outras coisas, o que se segue. Alguns comentários são colocados abaixo de cada trecho.

“Chávez tem um objetivo claro: quer se tornar o grande líder de massas da América Latina’, disse à Veja o historiador venezuelano Manuel Caballero, o mais respeitado do país”. A revista conta com o desconhecimento dos leitores para fazer afirmações peremptórias. Manuel Caballero, com toda sua longa trajetória acadêmica, só é respeitado na Venezuela pelos monopólios privados da mídia e pelas elites econômicas. Tornou-se um destemperado e folclórico opositor de Chávez, a que volta e meia a imprensa estrangeira recorre em busca de frases bombásticas.

“Chávez dá dinheiro e apoio político e técnico para movimentos de esquerda latino-americanos”.
Sequer a CIA consegue levantar uma única evidência de que tal fato esteja acontecendo.

“Venezuela substituiu a União Soviética como patrocinadora do regime castrista em Cuba, fornecendo petróleo e abastecendo o país de bens de consumo industrializados, tudo a preço simbólico ou a fundo perdido”.
Não há preço simbólico ou fundo perdido. Há um acordo, firmado em 30 de outubro de 2000, pelo qual a Venezuela fornece a Cuba 53 milhões de barris diários de petróleo – metade do que a Ilha c
onsome – a preç
os de mercado, com prazo de carência de até 15 anos. Além de pagar, Cuba compensa as condições de financiamento mediante o fornecimento de serviços médicos, educacionais e esportivos, além de remédios, vacina e açúcar. A íntegra do acordo pode ser lida em: http://www.asambleanacional.gov.ve/ns2/leyes.asp?id=175 Seria bom aos elementos responsáveis pelos textos de Veja darem uma lida antes de mentirem aos seus leitores.

“O presidente venezuelano interfere nos assuntos internos de outros países de várias maneiras”.
Quem interfere em assuntos de outros países é o governo dos Estados Unidos. Só Veja, ao que parece, não se dá conta disso.

“Hugo Chávez adotou um virulento discurso antiamericano”.
Qualquer pessoa medianamente informada sabe que isso não é verdade. Em várias oportunidades, Chávez afirmou que não tem nada contra os Estados Unidos, mas se opõe ao governo do país e suas práticas imperiais. A verdade é que Chávez tem um discurso antiimperialista.

“Ele diz a toda hora que os americanos querem matá-lo ou estão prontos para invadir o país. Até agora, de real, o que se viu foi o governo de George W. Bush evitar respostas às provocações”.
Até agora o que de real se viu foi o governo Bush patrocinar, entre outras coisas, um golpe de estado. Uma recomendação aos redatores de Veja: encomendem o recém-lançado livro “El código Chávez – decifrando la intervención de los EE.UU. en Venezuela”, da advogada estadunidense Eva Golinger (Fondo Editorial Question, 336 páginas). O volume é resultado de uma exautiva garimpagem em documentos oficiais do Departamento de Estado e do Departamento de Defesa, obtidos sob o amparo da Lei de Liberdade de Informação (Freedom Information Act). Em suas páginas, a autora desvenda – com fartas provas e evidências – as relações entre a entidade conhecida por NED (National Endowment for Democracy) e a oposição venezuelana, incluindo fornecimento de dinheiro e uso de chantagem política e estímulo à violência. É ressaltado ali que o embaixador estadunidense, Charles Shapiro, foi o primeiro a se reunir com o líder do golpe de 2002, Pedro Carmona. E, entre muito mais, o livro detalha – com os números de matrícula – as embarcações e aviões dos EUA que entraram em águas territoriais venezuelanas, sem autorização, durante o golpe.

“Uma das preocupações americanas decorre de compras de armas em quantidade muito acima do que seria razoável num país cujo Exército tem apenas 35.000 homens. De janeiro para cá, a Venezuela comprou mais de 7 bilhões de dólares em aviões de combate, helicópteros, navios e sistemas de radares. O pacote russo inclui 100.000 fuzis AK-47”.
A Venezuela tem investido nas forças armadas principalmente para defender suas fronteiras e para isso os aviões Super Tucanos são ideais. O que tem acontecido na divisa com a Colômbia é uma intensa provocação à Venezuela. As forças armadas do país presidido por Alvaro Uribe são dirigidas, armadas e instruídas pelos EUA, através do Plano Colômbia, – informação omitida por Veja – em seu combate à guerrilha das Farc, que controla 40% do país. A movimentação é clara: empurrar contingentes das Farc para o território venezuelano, na tentativa de se acusar Chávez de acobertar a guerrilha. E, claro, de cumplicidade com o terrorismo, qualificativo utilizado pela Casa Branca para classificar as Farc.

“Em 1958, um pacto garantiu estabilidade política até os anos 90, um dos mais longos períodos de democracia do continente”.
Ninguém sério acredita nisso. Em 1958, as elites políticas e econômicas selaram o Pacto de Puntofijo, para criar uma alternância de poder de fachada, enquanto submetia a esquerda e as forças populares a uma duríssima repressão.

A matéria tem muito mais. É impossível dizer onde está a pior parte. É um panfleto, bem ao gosto do que faz na Venezuela a imprensa local. Como ela, Veja não trafega pelos caminhos do apego à realidade. Sua matéria prima é a ficção e a lorota pura e simples. É parte do novo coro golpista que se avoluma contra um governo democraticamente eleito, tendo como repetidores outros órgãos da imprensa brasileira.

Que os Civita façam isso, é papel deles. Mais uma vez – chamando as coisas pelo nome – é papel de sua classe social. A matéria é assinada por Diogo Schelp, Ruth Costas e José Eduardo Barella. São contratados e fazem o que o patrão manda. Servir bem para servir sempre, parece ser o lema. Talvez acreditem no que escrevam. Mas não deixa de ser deprimente a existência de gente que tope assinar uma peça totalmente editorializada e anti-jornalística, apenas para manter seus proventos no fim do mês.

É certo que a vida anda difícil, mas tem um pessoal que pega pesado.
 
 

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Gilberto Maringoni, jornalista e cartunista da Agência Carta Maior, é autor de “A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez” (Editora Fundação Perseu Abramo) e observador, a convite do CNE, no processo do referendo revogatório na Venezuela.

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