Por Phydia de Athayde. Dia 20 de julho, agentes da Polícia Federal e da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) fecharam a rádio que funcionava há 14 anos sem outorga do Ministério das Comunicações, portanto, clandestinamente.
Gerô é Geronino Barbosa de Souza, de 36 anos, coordenador da emissora e um dos responsáveis pela consolidação da Rádio Heliópolis como instrumento de articulação da favela. A Heliópolis é um expoente do conceito de rádio comunitária: toca todo tipo de música e informa a população sobre direitos e deveres, faz campanhas de conscientização em saúde, educação e cidadania.
Também anuncia documentos encontrados e mantém o serviço de localização de gente perdida, como o filho de Rosemeire.
Rádio comunitária é, de acordo com o Ministério das Comunicações, um tipo especial de emissora FM. A lei diz que deve ter alcance limitado a 1 quilômetro a partir de sua antena transmissora e operar com a potência máxima de 25 watts. Não pode veicular propaganda comercial nem ter fins
lucrativos e ou qualquer tipo de vínculo (político, religioso etc.).
Na Heliópolis há oito anos, Gerô fica revoltado por não poder ajudar Rosemeire:
– Parece que me falta um pedaço. Aqui as pessoas são muito carentes e têm a gente como única salvação. Que justiça é essa que não me deixa continuar um trabalho construído em 14 anos de luta?
A pergunta reflete um problema ainda maior que mantém muitas rádios comunitárias na clandestinidade (clique e veja o quadro explicativo) e um entrave no Ministério das Comunicações. A questão pode ser mensurada pelos mais de 8 mil pedidos de concessão de rádios comunitárias ainda sem definição. Ou pela média de 80% de arquivamento desses pedidos, por não cumprimento de quesitos burocráticos, enquanto na radiodifusão comercial o índice é menor que 10%.
Em entrevista a *CartaCapital*, o ministro das Comunicações, Hélio Costa, alega ser impossível analisar os pedidos mais rapidamente:
– Desde 2002 trabalhamos com apenas 20% do nosso pessoal. Não temos como verificar isso com rapidez. Há muita insegurança no sentido de quem estamos autorizando a ter uma emissora.
O processo completo para a liberação de uma rádio comunitária tem levado até oito anos. Como se pode prever, elas não esperam tanto tempo e começam a funcionar, clandestinamente. À Anatel cabe fechar e lacrar, indiscriminadamente, qualquer emissora sem outorga, como a Rádio Heliópolis, ou como uma rádio que funcionava dentro da USP e foi fechada na quarta-feira
2, e também milhares de outras Brasil afora. Este ano, a Anatel fechou cerca de 800 emissoras.
Luciano e os documentos perdidos
Gerô estima que existam, em Heliópolis, outras seis rádios clandestinas, sem caráter comunitário. A profusão de rádios clandestinas não comunitárias é outra faceta importante dessa
questão. Israel Bayma, pesquisador do Laboratório de Políticas de Comunicação da Universidade de Brasília, tem um estudo, ainda inédito, sobre radiodifusão. Nele, a partir de uma amostra de 820 pedidos de licença para rádios comunitárias em 2002, o especialista em telecomunicações constatou que 87% não correspondiam a emissoras efetivamente comunitárias, apesar de
se apresentarem como tal.
No mesmo
ano, prossegue Bayma, representantes de emissoras tidas como comunitárias, já com concessão, doaram 245.156 reais para políticos em campanha. O PMDB recebeu 14,5% desse total, o PMN ficou com 14,28% e o PSDB com 12,42%. Já nas eleições de 2004, as entidades de rádios comunitárias contribuíram com 879.570 reais para os partidos políticos, e o PPS recebeu
34,12% desse valor. Bayma comenta:
– Isso não é tecnicamente ilegal, mas demonstra que há interesse político das entidades que representam essas rádios.
A promiscuidade entre o que deveria ser público, mas acaba servindo a interesses particulares não é novidade quando se pensa em telecomunicações. O histórico da distribuição de concessões a emissoras de tevês (reportagem de capa de *CartaCapital* edição 401) também aponta para esse modelo.
Uma pesquisa da UnB mostra que rádios apadrinhadas por políticos têm 4,4 vezes mais chances de aprovação do que as demais. Sobre a questão, o ministro desconversa: – Não posso confirmar essa informação. Os pedidos são analisados tecnicamente.
A posse de estações de rádio e de televisão por grupos familiares e por elites políticas locais ou regionais é o que se convencionou chamar de “coronelismo eletrônico”. No País, estima-se que operem cerca de 10 mil emissoras sem concessão. Não há números oficiais, mas acredita-se que cerca de 2 mil rádios clandestinas estejam hoje sob controle de políticos. Outras 4 mil estariam sob controle de grupos religiosos.
Márcia Vidal, professora da Universidade Federal do Ceará, é autora de uma tese de pós-doutorado sobre rádios comunitárias. Ela constatou que, em Fortaleza, entre 50 emissoras comunitárias apenas cinco têm a gestão efetivamente de organizações populares.
Em seu trabalho, Márcia traz exemplos de rádios clandestinas montadas por políticos em campanha e que, depois, são vendidas para comerciantes locais. A pesquisadora também relata casos de gestão “mista”, entre o político patrono e a comunidade, ou casos como um ocorrido em 2000 na capital cearense, em que a deputada estadual Gorete Pereira (PFL) tentou fechar um
acordo com o Conselho Comunitário da Serrinha sugerindo entregar metade da rádio Emoção FM para a comunidade. O acordo não saiu e a rádio foi fechada pela Anatel.
Ainda que sempre em menor proporção, as emissoras clandestinas efetivamente comunitárias fazem sua história. A Rádio Favela FM é uma das mais importantes experiências de rádio comunitária no Brasil. Começou a funcionar em 1981 no bairro da Serra, em Belo Horizonte, entre 11 favelas. Com uma programação musical variada, jornalismo de denúncias e prestação de
serviços, transformou-se na terceira maior audiência da cidade.
A história do fundador da Rádio Favela, Misael Avelino dos Santos, chegou ao cinema no filme Uma Onda no Ar (2002), de Helvécio Ratton. É Misael quem relata a *CartaCapital*:
– Foram 20 anos de guerra até o ministro (Pimenta da Veiga, então das Comunicações) subir aqui. Aí parou a guerra. Agora vêm as multas. A Rádio Favela é mais vigiada que o cofre do Banco Central.
Misael refere-se a multas por minutos de atraso até a Favela entrar em rede nacional, diariamente, durante a Voz do Brasil. Em 2000, a emissora recebeu a concessão de “radio educativa” (que transmite programação e não tem fins comerciais), já que seu alcance era maior do que a área de 1 quilômetro permitida para as comunitárias. Hoje, a rádio é ouvida na capital e na região metropolitana de Belo Horizonte e recebe 100 mil telefonemas de ouvintes por mês.
Na conclusão de sua pesquisa, Márcia afirma: “Rádios comunitárias autênticas constituem, por si só, um antídoto contra a instrumentalização política. Em comunidades conscientes, participantes e solidárias, a chance de a instrumentalização política resultar em
dividendos eleitorais é mínima se o candidato não tem efetivamente um passado de luta e de trabalho em prol das causas coletivas”.
Não apenas na Rádio Favela a história é marcada pela repressão, justificada na legislação que criminaliza a radiodifusão sem licença. Há diversas denúncias de abusos nas ações da Polícia Federal em conjunto com a Anatel para fechar emissoras. Em maio deste ano, uma audiência pública reuniu a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, entidades do movimento pela radiodifusão comunitária e outros participantes para debater a violência na repressão às rádios comunitárias. Na ocasião, Clementino Lopes, da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abraço), entregou diversos documentos e vídeos com denúncias de atos violentos praticados pela Anatel e pela Polícia Federal. O deputado Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP) condenou a truculência:
– Não é condizente com os preceitos democráticos ver agentes armados da Polícia Federal invadirem estúdios, salas e residências, para reprimir as emissoras que operam sem autorização oficial.
No entender do ministro Hélio Costa, “há excessos dos dois lados, pois também há um abuso do direito de colocar uma rádio pirata no ar”.
O fechamento da Rádio Heliópolis provocou a mobilização de muitos simpatizantes da emissora, entre eles políticos como Aloizio Mercadante e Eduardo Suplicy (ambos do PT, que, apesar de não ser o único, é o partido mais afinado com a emissora). A onda de socorro resultou em uma solução imediata para a Heliópolis e, também, na quebra de um tabu há anos apontado como razão da morosidade das outorgas de emissoras comunitárias na capital paulista.
Hélio Costa não consegue priorizar rádiosO tabu referia-se a um entrave técnico. Antes de uma rádio comunitária pedir outorga é preciso que o Ministério das Comunicações publique um “Aviso de Habilitação” para informar qual a freqüência disponível no dial e convocar as pretendentes a iniciarem os trâmites legais. Isso não acontece desde 1998 (data da lei que regulamenta o setor) sob a alegação de que não haveria mais espaço no dial paulistano. Mas havia. Em 2004, a Anatel garantiu o canal 198 (freqüência 87.5/87.7) para as rádios comunitárias legalizadas. Até hoje, o Ministério das Comunicações não chamou nenhuma das 294 associações, da capital e da região metropolitana, que pleiteiam a outorga desde 1998 para ocupar a freqüência. Mesmo com o parecer da Anatel, Hélio Costa insiste na tese de que o caso da cidade de São Paulo é específico:
– O espectro está supercongestionado. Ainda não temos condições de nos certificar de que uma emissora comunitária em São Paulo não atingiria nenhuma emissora comercial. Mas estamos finalizando um novo estudo a respeito e deve haver um Aviso de Habilitação para a cidade ainda este ano.
A solução imediata para a Rádio Heliópolis foi encontrada graças a um decreto, de 1966, que permite a rádios experimentais ligadas a universidades funcionar na freqüência destinada às comunitárias. A Rádio Heliópolis está prestes a firmar uma parceria com a Universidade Metodista de São Paulo, que fica nas proximidades e, dessa forma, poderá voltar ao ar. É um paliativo.
Sérgio Gomes, diretor da ONG Oboré, que trabalha com comunicação popular, participou das reuniões para decidir o destino da Heliópolis. Ele aponta a falta de vontade política como um dos problemas que atravancam a legalidade das comunitárias. E enxerga paradoxos:
– Vivemos uma época contraditória. De um lado, temos a democratização do acesso aos meios de comunicação. De outro, a maior concentração jamais vista de quem detém o poder desses meios.
O lobby dos radiodifusores comerciais é representado, no Congresso, por cerca de 90 parlamentares. Essa bancada trata de barrar os diversos projetos de lei que modificariam as regras do setor. As preferências das rádios comerciais são atendidas, também, pelo governo, já que a mera inação do Ministério em analisar pedidos de novas concessões só favorece a quem já tem outorga.
O descompasso entre um prazo razoável para analisar esses pedidos e o tempo que isso tem levado chamou a atenção do Ministério Público Federal. O procurador Sérgio Suiama considera essa demora “inaceitável”. Ainda este mês, decidirá se entra ou não com uma ação pública:
– O objetivo desse procedimento é garantir o direito à comunicação diante da inércia e morosidade do Ministério das Comunicações.
Marcelo Zelic, que é diretor do Grupo Tortura Nunca Mais, ajudou a compor um estudo sobre a situação das rádios comunitárias entregue ao procurador e comenta as conclusões:
– Há uma briga política na questão das rádios no País, e há uma ilegalidade na forma como se lida com isso. Essa ilegalidade gera um conflito.
O estudo analisa a legislação, menciona dossiês e dados que explicitam problemas do setor. Mostra que a lentidão do Ministério contrasta com a agilidade da Anatel em reprimir as associações ligadas às emissoras. Entre 1998 e 2002, mais de 10 mil pessoas foram indiciadas, e 3.623 foram condenadas por radiodifusão clandestina. Também lembra que a lentidão brasileira foi denunciada à Organização dos Estados Americanos (OEA), e recebeu prazo até julho de 2005 para que fizesse mudanças na legislação, com a participação da sociedade civil. Não foram feitas.
A questão das rádios ou, ainda, do direito à comunicação no País é complexa e não se finda nesta reportagem. Além dos entraves já citados, há pontos que precisam ser mais bem definidos, a começar dentro do próprio movimento. A secretaria executiva da Associação Mundial das Rádios Comunitárias e Cidadãs (Amarc/Brasil) reconhece que o movimento é muito heterogêneo. Apesar disso, há pontos comuns. Um deles é que a concentração das decisões sobre outorgas no Ministério das Comunicações não é saudável. Descentralizar seria positivo. As delegacias regionais do Ministério foram fechadas no governo FHC. Em 2003, Lula assinou um decreto permitindo a reabertura, mas a mudança não aconteceu ainda.
Ainda sob o ponto de vista da Amarc, outro problema não amadurecido pelo movimento é o conceito de comunidade. A lei atual limita o alcance de uma emissora comunitária a apenas 1 quilômetro. A Amarc considera esse um conceito “idílico” de comunidade, que não reflete realidades brasileiras como a dos conglomerados de favelas ou a da região amazônica.
Ainda há muito a percorrer até que o setor esteja mais bem regulamentado e,
quiçá, funcione sem tantos entraves burocráticos e políticos.
Em um futuro próximo, novas chances de discutir o espaço da comunicação estarão em pauta. É o que destaca o deputado federal Walter Pinheiro (PT-BA), militante da radiodifusão comunitária, que vê na chegada do padrão digital, para as tevês e rádios, uma oportunidade:
– As perspectivas mudam muito se vislumbrarmos a digitalização do espectro. Do ponto de vista técnico, a digitalização vai multiplicar os canais existentes. Em 2007, isso estará em pauta, pois teremos de responder como será esse novo padrão digital. É um momento importante para mexer na legislação e resolver o problema das rádios comunitárias. Em vez de repressão, é importante organizar a legislação.
Tecnicamente, o rádio digital melhora a qualidade do som na FM, que fica igual à de um CD. Com a digitalização também desaparecerão interferências tanto em AM como em FM. O novo rádio ainda poderá trazer imagens e textos, e seu conteúdo poderá ser lido no visor de cristal líquido do receptor digital ou em mídias convergentes.
Essa vastidão de possibilidades contrasta, no entanto, com a maneira como a nova tecnologia já se esboça no País. Existem quatro padrões de rádio digital, mas apenas um, o norte-americano Iboc (In Band-On Channel), está em testes. O Ministério das Comunicações não se posicionou, permitindo que o próprio mercado fizesse as opções. Hoje, cerca de 20 emissoras comerciais
experimentam o Iboc (a um custo de 75 mil reais em equipamentos). Há vantagens nele, como a convivência de AM e FM sem mudar de freqüência.
Mas não é surpresa constatar que, entre os possíveis, esse é o padrão que reduz a disponibilidade de espectr
o, ou seja, não traz a possibilidade de surgirem mais canais. “No Brasil, o conservadorismo tende a moldar a adoção do rádio digital aquém de seu potencial inovador”, observa a professora de Comunicação Social da UnB, Nélia R. Del Bianco, em uma análise sobre a nova tecnologia.
Hélio Costa diz não acreditar que se opte por um padrão que reduza o espectro. Ele promete para ainda este ano uma primeira proposta de normatização para o rádio digital no Brasil.
Mas também não será surpresa se for o Iboc o padrão escolhido pelo Ministério para ser adotado em todo o País. Não será muito diferente do que aconteceu na escolha do padrão digital para a televisão. “Coronelismo eletrônico” é coisa do passado. O futuro é digital.