(Reginaldo “Régis” Moraes)
“Em se tratando de solidariedade, o PT certamente tem alguma coisa a nos ensinar. O PSDB não tem a característica de ser solidário com os que tropeçam ao longo da caminhada e é preciso que comece a tê-la, se quer realmente se consolidar como um partido de futuro.”
A sentença é de Aécio Neves, governador eleito de Minas Gerais, pelo PSDB. (Estadão, 20/10/2002) Sintetiza o diagnóstico de uma derrota, o drama de uma trajetória e os riscos e chances do futuro, para o PSDB, mas também para o PT.
De certo modo, a frase e a figura indicam, também, a emergência de uma liderança, no PSDB, que se distingue da corrente intelectual que dirigiu o partido nos últimos anos. “Aqueles que tropeçam ao longo da caminhada” … Como um partido da social-democracia poderia ignorar os que tombam e sofrem no caminho do “progresso”? Em parte, tal se explica pelo fato de que o PSDB talvez tivesse, ou quisesse ter, no seu início, um rótulo e alguns lemas dessa corrente ideológica, mas não tinha aquilo que fizera a força e também a identidade da social-democracia: os trabalhadores. Olhemos para a social-democracia alemã, francesa, sueca, inglesa… nascida e vigiada, nos seus programas e atitudes, por círculos operários, movimentos sociais populares.
Quando o PSDB teve esse perfil? Nunca. Seus “líderes sindicais” nasceram e vicejaram nas verbas dos palácios. Seus políticos com base popular foram tragados pelas novas lideranças – acadêmicas, tecnocráticas, charmosas e perfumadas. Nascido sem esse componente popular – e de certo modo para concorrer com um partido em que isso era o traço forte – o partido viu seus intelectuais apaixonarem-se – alguns envergonhadamente, outros, com indisfarçável ardor – pela “modernidade” da livre-competição, do “choque de mercado”. Alguns se tornaram mais fundamentalistas — e mais chiques-cafonas – do que os yupies pausterizados de Wall Street e da Avenida Paulista. Aliás, parte deles, aqueles que circulavam em torno da equipe econômica, trafegava com facilidade entre governo, empresas de consultoria, suas ou de seus filhos e parentes — curiosamente, empresas que não tropeçavam pelo caminho… cresciam no caminho. Virados para o “mundo”, c’est a dire, Paris ou New York, para eles o que ocorria na periferia das cidades brasileiras, na região do cacau baiano, no sertão do Piauí, tudo isso lhes parecia apenas um momento na trajetória gloriosa do novo espírito do mundo. Era apenas “o preço que havemos de pagar pelo progresso” – em que a conjugação do verbo pagar sempre ia para a plebe, o de progredir sempre ia para as elites. Não se solidarizando com aqueles que tropeçam no caminho, como diz o deputado-governador, o PSDB não foi o partido da social-democracia brasileira, mas o partido do social-darwinismo brasileiro. E os que tropeçaram no caminho resolveram mudar o caminho.
É esse o PSDB que sofreu um baque. Conseguirá se recuperar? Conseguirá ser aquilo que nunca foi – um partido social-democrata?
Mas não é essa a única pergunta que fica no ar. A frase de Aécio Neves, como dissemos, aponta também para riscos e chances do futuro… do PT. Conseguirá esse partido conservar sua base popular – sindicatos, movimentos populares, organizações de solidariedade e luta que para ele convergiram? O deputado Delfim Neto afirmou, recentemente, que o PT iria ter a oportunidade de constituir, de fato, um partido social-democrata, reformador do capitalismo, porque tinha algo fundamental para isso: a militância e a fè das massas trabalhadoras. Delfim foi ministro de uma ditadura e aprendeu, certamente, a fórmula napoleônica segundo a qual podemos fazer muita coisa com baionetas, menos ficar sentado sobre elas. Aplicou a frase às canetas tucanas…
Conseguirá essa base impedir que os intelectuais do PT repitam – e, nesse caso, de forma trágica — o caminho dos tecnocratas do PSDB? A estratégia de Lula nesta campanha foi a de acenar para uma grande aliança desenvolvimentista, de reconstrução do país e dos sonhos de progresso mais equitativo. Mas não parece ter sido apenas uma estratégia, no sentido mesquinho do termo. Parece um compromisso, uma crença e uma aposta. Para os que se beneficiaram com o modelo socio-econômico em vigor, Lula apontou para o fato de que ele é mais instável do que parecia – que não haveria paz para a riqueza, num mundo em que há tanta pobreza. Para os excluidos e prejudicados, apontou para uma esperança de um mundo menos ingrato, uma esperança que parece pequena, nada de paraíso revolucionário, mas que, na escala do sofrimento da população brasileira, talvez tenha parecido a própria encarnação do Éden.
Se conseguir tocar adiante essa difícil composição de expectativas e melhorar a vida e a esperança de milhões de desgraçados que nele depositaram confiança, terá mudado não apenas a história do Brasil, mas, em grande medida, a esperança de um continente que nos olha com atenção.
Lula tem diante de si uma tarefa difícil. Mas os seus opositores – os que falavam em segurança e continuidade… para si mesmos – preparavam um futuro ainda mais difícil. Conduziam o país para um abismo e, na beira do precipício, recomendavam que caminhássemos no mesmo rumo, e devagar. Lula apresentou outra proposta: vamos ver se conseguimos juntar forças, diferentes que sejam, para tentar saltar o precipício, agarrar a margem oposta.
Todos os que vêem agora, em perspectiva, os dois mandatos de FHC, percebem o quanto se substituiu a inflação, financiadora do gasto público, pela política de altos juros, financiadora do gasto público. O quanto se vendeu de patrimônio público… para abater uma dívida que não pára de se multiplicar e de nos dividir. Percebem que essa “âncora” de um real estabilizado foi ainda
socorrida por um aumento claro da arrecadação de impostos, taxas e “contribuições” que, como se sabe, são pagos, em proporção cada vez maior, justamente por aqueles que ganham menos, por “aqueles que tropeçam no caminho”.
Percebem que tudo isso nos fez saltar em uma crise social de muitas dimensões. Em 1994, havia cerca de 800 mil desempregados na Região da Grande São Paulo, há hoje quase dois milhões. Havia 50 mil presos no Estado de São Paulo, há hoje mais de cem mil. Brasil e Colômbia são, hoje, os dos únicos países da América Latina que têm organizações criminosas de massa. O crime organizado penetra praticamente todas as esferas sociais, todas as classes e grupos, diferentes instâncias do poder, diferentes pedaços da nossa alma e da nossa cultura. Ele é a alegoria perversa – utopia negativa — da sociedade competitiva, do mercado moderno que nos apresentaram como horizonte os perfurmados do PSDB, àqueles aos quais o governador de São Paulo, do mesmo partido, recomenda, com realismo, “comer poeira e amassar barro”.
Aqueles que tropeçam pelo caminho resolveram chutar a pedra. Pode ser pouco, pode ser louco. Mas é menos insano do que o caminho receitado pelos yupies sociológicos. Que estes voem para Miami, onde, aliás, alguns de seus filhos montaram escritórios que orientam empresas norte-americanas a especular e ganhar licitações públicas no Brasil.
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A aposentadoria compulsória aos 75 anos de idade – e não aos 70 anos, como é hoje – voltou a ser um objeto do desejo em Brasília. Entre outros interesses, a mudança atenderia os desígnios do Palácio do Planalto de manter a atual composição do Supremo Tribunal Federal. A notícia é da revista Consultor Jurídico – que dá mais detalhes.
É mais um detalhe de manobra tática da oligarquia, ao perceber que a derrota eleitoral é inevitável. Já que não dá para abolir o voto nem mudar o resultado, vamos esvaziar o resultado. Velha receita de liberais reacionários do século XIX, diante da ameaça do sufrágio universal. Então agora o lema é esse: esvaziar a presidência, o congresso, os cargos políticos submetidos ao voto, enfim.
Depois de oito anos usando e abusando das MPs, temos agora uma limitação. Ótimo, mas… por que só agora? Outra: a Receita Federal, há um mês, virou agência autônoma ou algo assim (só agora, depois de oito anos…). Volta à baila a estória do Banco Central independente — independente de nós, que sequer sabemos escovar os dentes. E mais recentemente um artigo de conhecido tucano defendeu ardentemente a independência do CNPq e outras agências de pesquisa e ensino (inclusive Capes!) frente às “injunções” políticas que, é claro, agora são ilegítimas, sujas. Só agora: durante oito anos transformaram essas coisas em ninhos privativos de tucanos, agora acham que devem ser “independentes” e “neutras”. Se descuidar, a presidência e o congresso só vão determinar mudança de nome de rua (e olhe lá!).
Começa, agora, imediatamente, o terceiro turno. E alguns dos derrotados se candidatam desde já a líderes da oposição golpista, confiável aos olhos do “mercado”, de Bush. Vai ser necessária muita paciência, firmeza e sabedoria para evitar as provocações e ao mesmo tempo não recuar nas reformas sociais que, só elas, garantirão estabilidade ao novo governo.