(Muniz Sodré * )
Acreditamos sinceramente já se ter passado o tempo em que jornalismo podia ser concebido como uma atividade limitada à elaboração do produto/noticia, com os melhores recursos técnicos disponíveis, dentre os quais o talento e o “desejo de verdade” de um intimorato profissional. É claro que estes pressupostos continuam a ser cívica e politicamente desejáveis, mas o agigantamento da função informacional e sua quase coincidência com o tecido orgânico da própria sociedade conduzem à reivindicação ético-política de uma praxis – elaboração teórica simultânea à aplicação técnica – propriamente jornalística.
Algo mais concreto? A reforma da Previdência é excelente tópico para uma demonstração de como a teoria da comunicação pode contribuir para o exercício da prática jornalística.
São vários os autores que sublinham a natureza reflexiva – no sentido de praticar e receber a ação ao mesmo tempo – dos textos informativos. Já
insistimos em artigos e livros sobre este aspecto, mas citamos agora Gonzalo Abril, conhecido professor da Universidade Autônoma de Madri, para quem a representação dos fatos, por mais veraz que seja, põe em jogo crenças ou pressupostos tendentes a validar essa mesma veracidade. De tal modo, o discurso não é meramente informativo, mas também auto-confirmativo, o que leva a uma “circularidade de primeiro grau”.
Ora, a atividade de produzir enunciados informativos na esfera pública (o jornalismo) modifica os fatos que são objeto da informação. O discurso da informação é, em conseqüência, operativo e performativo, ocasionando uma “circularidade de segundo grau”: a enunciação faz o que o enunciado diz.
Também referindo-se à função da redundância nas notícias de jornais, os franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari observaram que “a linguagem não é informativa nem comunicativa, não é comunicação de informação, mas – o que é bastante diferente – transmissão de palavras de ordem, seja de um enunciado a um outro, seja no interior de cada enunciado, uma vez que o enunciado realiza um ato e que o ato se realiza no enunciado”.
Neste caso, costuma verificar-se a “profecia auto-realizadora”, ou seja, uma suposição ou predição que, só pela única razão de ter sido feita,
converte em realidade o fato suposto, esperado ou profetizado e, desta maneira, confirma a sua própria “objetividade”.
Em nosso jornalismo
cotidiano, escrito e eletrônico, esse mecanismo atua sempre na própria definição do que seja uma questão pública ou na implementação de uma opinião dominante.
Pensar um pouquinho…
É bem este o exemplo da Previdência. Desde o governo passado, a reforma tem sido publicamente apregoada como questão de salvação nacional, a despeito das dúvidas bem fundamentadas sobre a natureza do déficit, das imputações de responsabilidade ao Estado pela expropriação continuada de recursos previdenciários para obras faraônicas (construção de Brasília, ponte Rio-Niterói etc.), das provas de benevolência para com os grandes devedores, da manipulação tosca de dados e da confusão “metonímica” entre seguridade e
previdência social.
A mídia, sempre fascinada pela recuperação memorialística da cultura do passado, parece esquecer-se de que, quando o político Waldir Pires foi ministro da Previdência, o déficit foi zerado, este assunto sequer existia. Ou então que a deputada Jandira Feghali, em seu relatório sobre a
Previdência na Câmara Federal, contestou a fabulação do déficit.
Apesar disso tudo e de boas informações recentes (é verdade que “focalizadas” em artigos esporádicos ou em publicações de baixa tiragem), o governo atual incorporou velhos pressupostos e crenças, colocando no mesmo patamar político-econômico as reformas tributária e previdenciária. A mídia encarregou-se de enfatizar a urgência fiscal (inexistente) da reforma da Previdência, deixando de lado os aspectos distributivos, em termos de renda, da seguridade no Brasil. E aí, como efeito fabulatório, aparece na mitologia jornalística (as crenças, de que falam os teóricos) a figura bíblica do bode-expiatório (é recomendável a leitura do Levítico) já trabalhado por Fernando Collor, ou seja, o funcionário público.
Mais uma vez, a metonímia enganadora: como há algumas centenas de beneficiários de altas pensões num universo de centenas de milhares de aposentados e ativos, troca-se a parte pelo todo. O funcionário público converte-se fabulatoriamente em “marajá”, que reinaria sobre os “súditos” do setor privado. A “profecia auto-realizadora” da mídia torna-se fato social. Diz um colunista de economia: “Para o sistema previdenciário, somos uma sociedade de castas. De dupla estrutura: cidadãos de primeira cla
sse (setor público) e cidadãos de segunda classe (setor privado). Os da casta de cima, menos de um quinto dos segurados, respondem por quatro quintos do déficit total” (Joelmir Beting, O Globo).
Contra o fundo de uma escandalosa desinformação sobre o que significa funcionário público no quadro da modernidade liberal desde o século 19 e a sua atual importância para o reforço do compromisso histórico-político entre Estado e Nação, vem a público o projeto governista da reforma da Previdência. O colunista econômico bate palmas: “Com esse trunfo político sobre matéria tão abrasiva, o governo Lula é gratificado pela aprovação de bate-pronto do tal de mercado. A bolsa subiu, o dólar caiu, o C-Bond subiu, o risco caiu” (idem).
Aos poucos, assim, aparece na própria imprensa a verdadeira razão da urgência da reforma. Há três semanas à frente da Superintendência de Seguros Privados (Susep), o economista Renê Garcia rejubila-se: “A mudança nas regras da aposentadoria deve fazer o mercado segurador praticamente dobrar sua participação na economia brasileira: de 3,8% para 7% do PIB em quatro anos. Levando-se em conta o PIB atual, de R$ 1,32 trilhão, a cifra passaria de cerca de R$ 50 bilhões para algo como R$ 92 bilhões” (O Globo, 28/4/2003).
Não é preciso nenhuma grande teoria para se saber que o “deus” por trás desse novo espírito previdenciário não é o mesmo Deus da Providência que pode ter inspirado o velho espírito do Estado liberal. O de agora é mesmo o Mercado, com maiúscula. É impossível, assim, deixar de teorizar, quer dizer, de pensar pelo menos um pouquinho. E este é o verdadeiro desafio às escolas de comunicação e ao jornalismo socialmente responsável.
* Jornalista, escritor, professor-titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro