Por Jonas Valente

“Essa história de que a liberdade de imprensa está ameaçada é uma bobagem, um truque, isso não está em jogo. A liberdade de imprensa significa a liberdade de imprimir, divulgar, de publicar. A essa não deve, não pode e não haverá qualquer tipo de restrição. Isso não significa que não pode haver regulação do setor”, a frase fez parte do discurso do ministro da Secom, Franklin Martins, na abertura do seminário Convergência de Mídias, realizado nos dias 9 e 10 de novembro em Brasília.

A sentença reflete uma tentativa quase desesperada do ministro de desconstruir a perversa fábula elaborada pelos meios de comunicação comerciais para interditar o debate sobre o setor das comunicações no Brasil e a necessidade urgente de sua reforma. Ela utiliza a máxima de que uma mentira contada diversas vezes torna-se verdade. No cenário brasileiro, em que os veículos comerciais detêm enorme influência na formação das opiniões e valores da população, essa tese torna-se ainda mais verdadeira.

A fábula perversa

A definição de regras para o setor das comunicações não é novidade em nenhum país do mundo, muito menos no Brasil. O seminário onde o ministro Franklin fez seu discurso evidenciou, com relatos de autoridades internacionais, como são correntes, nas democracias consolidadas, mecanismos para regular o mercado tanto sob a perspectiva econômica quanto política e cultural. Há regras para impedir a concentração dos meios (como a limitação de fusão de duas redes de TV nos Estados Unidos), obrigações para os prestadores de serviços (como o cumprimento dos propósitos de serviço público na radiodifusão no Reino Unido), proteções ao conteúdo nacional (como as contas de filmes na França) e a existência de órgãos com a participação da sociedade (como no caso da Autoridade de Serviços de Comunicação Audiovisual da Argentina).

No Brasil, se uma pessoa tomar contato com matérias dos meios de comunicação comerciais, vai pensar que nosso Estado é proibido de se aproximar da mídia e que o processo atual consiste, exatamente, na tentativa de quebrar esse distanciamento. O que não condiz com a verdade. Em nosso país, para explorar uma rádio ou uma TV, ou fornecer telefonia aos cidadãos, é preciso ter autorização do Estado. No primeiro caso, a transmissão é feita, inclusive, utilizando um bem público, o espectro de radiofrequências.

Não só há regras gerais, como há, inclusive, normas e exigências para os conteúdos. Isso mesmo! No Brasil, já há regulação do que é difundido pelos meios de comunicação. TVs não podem veicular mais do que 25% de publicidade nem menos do que 5% de conteúdo jornalístico. Rádios são obrigadas a veicular a Hora do Brasil. TVs e rádios devem também inserir compulsoriamente em sua grade o horário eleitoral gratuito. Os jornais, talvez os mais raivosos na suposta defesa da liberdade de imprensa, também têm obrigações, mesmo que mais leves: todos precisam ter um jornalista responsável e estão sujeitos a processos por abusos, como é o caso do direito de resposta.

Mas então, perguntaria alguém intrigado com as matérias: se a regulação já existe, estaria alguém tentando transformá-la, de fato, em uma tentativa de cerceamento da liberdade de imprensa? Faço a mesma pergunta, pois até agora não vi qualquer proposta que advogasse a favor do controle prévio do que pode ou não ser publicado. Nem encontrei qualquer menção a uma sugestão dessa em qualquer matéria dos “defensores da liberdade de expressão”.

Os interesses por trás

O que seria, então, o tal ataque à liberdade de imprensa? Ele é a forma mascarada de taxar um debate utilizando uma ameaça irracional para esconder que o movimento, ao fim e ao cabo, pode ferir os interesses econômicos e políticos dos grupos que sempre comandaram a comunicação no país.

No plano econômico, as propostas de limitação da concentração de propriedade e de ampliação da pluralidade e diversidade podem reduzir a rentabilidade das grandes redes, que dependem de uma estrutura vertical para lutar por grandes anunciantes, e se configurar como um limitador às estratégias de fusões e aquisições empregada hoje pelos operadores de telecomunicações. As cotas de produção (nacional e regional) são vistas como custos extras, o que também atrapalha o negócio.

No plano político, os veículos de comunicação sempre se orgulharam e moldaram sua sobrevivência e ampliação na sua capacidade de interferir nas disputas de poder, na elevação e destruição das reputações dos mais variados políticos. Esse papel não é apenas de apoio ou de suporte a um ou outro candidato, mas envolve o uso direto dos meios de comunicação para garantir a eleição de uma determinada liderança. Não à toa, há casos de diversos grupos regionais que são controlados por elites políticas, como é o caso do Mirante de José Sarney no Maranhão, da RBA de Jader Barbalho, no Pará, da TV Bahia da família Magalhães, na Bahia, e do Grupo Massa, da família de Ratinho Júnior, no Paraná.

Um exemplo claro desse poder é a célebre frase proferida por Tancredo Neves em uma conversa com Ulysses Guimarães: “Ulysses, eu brigo com todo mundo, eu brigo com o papa, eu brigo com o PMDB, eu só não brigo com o doutor Roberto [Marinho]”. A entrada de novos agentes no rádio e na TV, a ampliação do acesso à Internet e o estabelecimento de limites aos abusos cometidos pelos meios são vistos como um obstáculo claro à terra sem lei que serve como terreno fértil à reprodução da ação política intensiva dos grupos de mídia. O novo marco, portanto, ameaça o poder dos grandes grupos de controlar a informação que é difundida, uma espécie de censura, não estatal, mas privada.

Por que e para quê regular

Perdeu-se (ou ganhou-se) espaço e tempo desfazendo a confusão propositada. Mas se por um lado foi um esforço que faz-se necessário para que o debate seja desinterditado na sociedade, por outro é preciso ir além e discutir qual regulação se quer.

Um bom começo é identificar os problemas que precisam ser resolvidos. Algumas dessas questões são bem lembradas pelo ministro Franklin Martins: “Criou-se, na área de comunicação, uma terra de ninguém. Todos sabemos, por exemplo, que deputados e senadores não podem ter concessões de rádio e TV. Mas todos sabemos que eles tem, através de subterfúgios, e ninguém faz nada”.

O faroeste midiático brasileiro favoreceu um sis
tema excessivamente comercial, em detrimento dos meios públicos e comunitários. Com isso, importantes espaços de formação de valores e opiniões acabam regidos pelo lucro, e não pelos direitos humanos e pelo(s) interesse(s) da população. A organização do mercado é oligopolista e verticalizada, com predomínio de poucos grupos e a repetição de uma produção do eixo Rio-São Paulo em detrimento dos conteúdos regionais.

A essas emissoras e aos demais operadores faltam obrigações para assegurar o interesse da população e garantias mínimas aos consumidores. As existentes são desrespeitadas, como os preceitos constitucionais que determinam o atendimento, por rádios e TVs, das finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas em sua programação e a promoção da produção independente e regionalizada. Já os serviços de telecomunicações são excludentes. A telefonia fixa ainda hoje mantém a injustificada assinatura básica. A celular se ampliou mas mais de 80% são pré-pagos e a tarifa está entre as mais altas do mundo. Já a banda larga é “cara e lenta”, nos dizeres do coordenador do Comitê Gestor de Inclusão Digital do governo federal, César Alvarez.
É essa a paisagem que queremos manter na nossa comunicação? Junto-me àqueles que discordam e veem a necessidade de uma grande reforma neste modelo. Em vez da premência do lucro, a concepção por trás da nova legislação deve ser o entendimento da comunicação como um direito humano. Não apenas dos donos de empresas de comunicação, mas do conjunto da população.

Partido dessas premissas e dos problemas identificados, seguem alguns desafios que o novo marco regulatório. Em primeiro lugar, é preciso respeitar o Artigo 223 da Constituição Federal e assegurar a complemetaridade de fato entre os sistemas público, privado e estatal, fortalecendo a Empresa Brasil de Comunicação e as demais estruturas de mídia mantidas pelo Estado com ampla participação e financiamento robusto. O mesmo vale para as emissoras comunitárias. Em segundo lugar, faz-se necessária normas que impeçam a propriedade cruzada dos meios de comunicação (controlar uma TV e uma rádio, por exemplo), o que vale para a cadeia produtiva neste cenário de convergência. Este modelo, que separa a produção de conteúdo da distribuição é adotado em vários países e incentiva a pluralidade.

Em terceiro lugar, o novo marco não pode se furtar de enfrentar o debate sobre as obrigações dos licenciados. Desde aquelas administrativas até as relativas ao conteúdo, incluindo cotas de produção nacional, regional e independente e o respeito e promoção dos direitos humanos. Em quarto lugar, criar as condições para que a população tenha acesso aos serviços de comunicação, especialmente à Internet em banda larga. Por último, o modelo só responderá aos interesses da população se tiver uma estrutura institucional que abra fortes espaços de participação, como conselhos.

A tarefa não é fácil, mas é urgente. “Com toda sinceridade, acho que o governo Lula ficou devendo nessa área [da comunicação]“, admitiu o ministro Franklin Martins em um seminário em São Paulo no final de novembro. Cabe agora ao governo Dilma reconhecer o passivo e colocar o tema de fato na agenda para tenhamos um novo modelo de fato democrático.

*Jonas Valente é jornalista e integra a diração do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal. É também integrante do coletivo Intervozes.