Felinto Procópio dos Santos (foto abaixo) tem 37 anos. Ele é um dos líderes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Mineirinho, como é mais conhecido, não gosta muito de dar entrevistas. Mas aceitou conversar com a jornalista Eliane Amaral, no Rio de Janeiro,  para o BoletimNPC.  Vamos apresentar, com muitos detalhes, a vida de um lutador do povo, que não tem medo de defender suas idéias e o povo brasileiro. Ele já foi preso injustamente, mas para qualquer um afirma: “O que me move é a luta pela reforma agrária. É a vontade de ver um Brasil onde as pessoas tenham casa, comida e dignidade”. Por Eliane Amaral, junho de 2005


Mineirinho, ao violão

INFÂNCIA
Filho de lavrador e pai de Júlia e Janaína, Mineirinho nasceu no Paraná. Hoje ele cuida do setor de cultura do MST e está cursando Teorias Sociais, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) onde vive desde o ano passado.

A consciência de que o mundo é injusto, de que tem pobres e ricos e de que a vida é mais difícil para as pessoas simples que precisam da terra para viver, começou cedo. “Já na quinta série tinha consciência da divisão entre rico e pobre. Isso é uma coisa que marca todo menino. É o período em que se descobrem as coisas. Temos vontade de botar um tênis da moda, e o máximo que podíamos ter no pé era uma conga”.

Mineirinho disse que, na infância, que passou na cidade de Mundo Novo, no Mato Grosso do Sul, sentia uma certa agonia em saber da sua condição.  Em saber que era pobre. Ele conta: “uma vez a professora perguntou qual era a condição de cada um. Tinha um menino que era de classe média. Ele falou  que não era rico nem pobre, mas remediado. Meu pai usava muito essa expressão também. Então você vai percebendo a divisão que existe na sociedade. Conseguimos ver que nós, pequenos camponeses, éramos pobres. Mas pobres que nunca passaram fome”, orgulha-se em dizer.

Apesar da situação difícil, o pai de Mineirinho não deixava faltar nada em casa. “Meu pai sempre tinha um dinheirinho para comprar o pão. Não tinha menos do que 30 porcos no chiqueiro’, lembra, completando, “meu pai nunca deixou de comprar nossos livros. Ele queria que todos os seus filhos estudassem para não passar o que ele passou. Todo mundo fez o primário lá em casa. Ninguém é tapado”.

PAIXÃO PELA LEITURA
Mineirinho confessa sua paixão pelos livros. “Eu era um rato de biblioteca. Era o que me encantava. Passava uma grande parte do meu tempo na biblioteca. Sempre fui um cabra ligado na leitura. Gostava de contos. Os livros infantis me marcaram muito. Eu tinha vontade de conhecer o mundo e o livro possibilitava isso para mim. Passava horas lendo aquelas enciclopédias enormes. Devorava tudo. O meu primeiro livro eu achei na rua, molhado, sem capa. Era sobre a morte de Getúlio Vargas. Sobre a nossa história”.

Outro livro importante para Felinto foi achado perto do campo de futebol. Era sobre a vida de José Freinadimitz, um missionário italiano que foi trabalhar na China. Era da Congregação do Verbo Divino, a mesma que, futuramente, o menino rezador iria entrar.  Ele lembra do livro: “Falava sobre a missão de Freinadimitz. Eu já trabalhava na Igreja, tinha vocação, estava querendo ir para o seminário e esse livro veio para ser o ponto de decisão. Falava exatamente sobre o que eu queria ser, um padre com uma missão. O livro veio como um achado, um presente. Sua história era comovedora, bonita. Uma vida de desprendimento, de entrega, de missão”.

A ligação de Mineirinho com a Igreja continua até hoje. Ele não perdeu os laços de amizade. “Os cabras da minha turma se ordenaram padre e a gente troca informação até hoje”.

SEMINÁRIO E COMUNISTA
Felinto Procópio entrou no seminário ainda muito jovem. O seminário foi decisivo para a sua formação. Ele adqüiriu noções de planejamento, hierarquia e disciplina. Felinto pagava seus estudos com trabalho. De dia trabalhava no seminário e à noite estudava.

Foi nessa época que o menino curioso falou a palavra “comunista” em casa e foi surpreendido pela reação do pai: “Meu pai disse que quebrava a minha cara se falasse aquela palavra de novo. Então eu pensei que devia ser um negócio muito horrível para o meu pai querer bater na boca de um filho. Me chamou a atenção e fui pesquisar esse negócio de comunismo”.

Na cidade de Mundo Novo havia um destacamento militar e Felinto cresceu vendo blitz e as notícias de prisão e desaparecimento de pessoas. “Para mim, era natural, pois era uma rotina. Era a época da anistia e se falava das mortes, da volta dos comunistas”.

SAÍDA E MUDANÇA
Mas Mineirinho saiu do seminário após um ano de estudo: “o pai vendeu a nossa chácara e comprou um sítio em Rondônia”. A chácara, recorda Felinto, tinha um alqueire e foi dada ao pai pelo Incra, que, naquela época, fazia isso com os funcionários que trabalhavam na administração. Já era um espelho de como a questão da terra era tratada. “Tinha muita corrupção no Incra naquela época. Um dos capitães – os militares mandavam naquela época – tinha um esquema de venda de lotes. Ele passou o lote do meu pai, que era um sítio de cerca de 18 alqueires, para outra pessoa e deu a chácara em troca. O meu pai teve de aceitar porque brigar com militar era uma loucura”. A família mudou para Rondônia.

Logo que chegou na nova terra, Mineirinho se colocou à disposição da paróquia da comunidade. “Era 1983 e havia muita dificuldade. Tinha muita pistolagem e a luta pela terra estava forte.  Havia muito conflito armado entre os posseiros. Como era a Comissão Pastoral da Terra (CPT) que organizava os posseiros, os padres eram perseguidos, ameaçados e sofriam emboscadas”.

DIREÇÃO DE TRABALHADOR
Foi nessa época, lembra Felinto, que se começou a discutir que a luta pela terra deveria contar com algo mais, além das CPT´s. Vários grupos estavam discutindo o assunto. Um grupo defendia a construção de uma direção de trabalhador. “Esse grupo acabou criando o MST. O João Pedro (Stédile) fazia parte dele. Oitenta por cento dos nossos dirigentes antigos são ex-seminaristas, padres e o pessoal da Teologia da Libertação. A maioria veio da Igreja
. Por isso, todos
os nossos símbolos, mística, jeito de ser, de celebrar e de vida, é tudo religioso”.

Mineirinho entrou na CPT na década de 1980. Grande parte dos seminaristas pertencia à Teologia da Libertação. A Igreja sofreu um racha. O MST nasceu dessa divisão, segundo Felinto Procópio, que entrou para o movimento em 1989.

Em 1985, foi catequista e entrou para o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rondônia. Virou uma liderança.

Em 1987, foi indicado para ser o agente de saúde da comunidade e no ano seguinte para ser vereador pelo PT. De Rondônia foi para São Paulo, em 1990. No início da década, sofreu um grande assédio para se tornar político. Mas a sedução do poder passa longe do militante Mineirinho. “O pessoal de Rondônia pediu para eu voltar em 1992 para ser candidato a prefeito, numa candidatura única. Eu não ia deixar São Paulo porque a idéia não me seduziu. Eu era uma liderança da comunidade. Poderia ser uma coisa tentadora para muita gente, mas não para mim que sempre militei no MST. Nunca quis ser da direção nacional e muito menos da estadual. Não preciso estar numa instância para lutar, apesar de estar hoje à frente de setor tão importante que é a cultura”.

MST E CONCURSO PÚBLICO
A formação de Felinto Procópio, como ele mesmo faz questão de dizer, teve grande influência da Igreja Católica e de sua militância no MST. “O que eu sou hoje, a minha personalidade, é o resultado dessa convivênvia. Eu mudei quando entrei para o movimento. Mas se não tivesse passado pela comunidade, a experiência das Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s), da catequese, de ser agente comunitário de saúde, eu não teria entrado para o MST, para um partido político. Porque eu passei num concurso público estadual em 1990, só passaram dois da minha cidade. Eu não assumi porque já estava querendo entrar no movimento dos sem terra”.

Passar num concurso público naquela época era o que todo mundo queria num estado como o de Rondônia. De 500 só passaram dois. Mas a vontade de lutar e de defender os direitos da gente simples falou mais forte. “Então eu troquei um salário bom, estabilidade no emprego e um lugar bom para morar para não ganhar nada no MST. O meu pai apoiou a minha decisão. A minha mãe até hoje diz que se eu não tivesse deixado o serviço público eu estaria rico. Mas é uma coisa bem de orelha seca, um cabra agente de saúde, trabalhando num posto, compra um sítio, enche de vaca. Imagina. Não era isso que eu queria para mim. Com certeza seria candidato a vereador, teria vencido e poderia ter sido mais um corrupto”.

VIOLA, MINHA VIOLA
O atual coordenador de cultura do MST também é um apaixonado pela viola. Ele mesmo define esse objeto de paixão: “É um instrumento místico, sagrado, um dos mais antigos do Brasil”.

Mineirinho fala, com entusiasmo, dos projetos para o setor de cultura do MST, que assumiu no ano de 2000: “De 1996 para cá, criamos um time para pensar arte no MST e no papel da cultura. A esquerda tem uma dificuldade muito grande para se relacionar com a arte. Então fomos fortalecendo o que chamamos de coletivo dos músicos, realizando oficinas de música e de arte. Começamos a trabalhar essa questão do zelo com a arte, que tipo de música a gente tem de ouvir, o resgaste da música camponesa”.

Foi formado um time de homens e mulheres com sensibilidade artística para trabalhar a arte no MST. Hoje é um setor que tem uma voz muito importante dentro do movimento. Em 2002, foi realizada a primeira Semana Nacional da Cultura Brasileira e da Reforma Agrária, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). A segunda semana foi realizada em Recife.

O setor já gravou vários discos, realizou festivais de música camponesa. “Trabalhamos com vários tipos de teatro. Hoje temos mais ou menos 600 pessoas trabalhando com teatro no Brasil inteiro. Brecht, teatro épico, teatro do oprimido. Estamos ajudando a organizar os violeiros de viola caipira, do qual eu faço parte. Fizemos o primeiro encontro nacional de violeiros em Ribeiro Preto (SP), em 2003, com mais de dez mil pessoas. Na segunda edição do encontro, conseguimos levar grandes ídolos da música caipira de raiz. E hoje temos uma grande parceria com o Ministério da Cultura. Um dos nossos objetivos é criar programas culturais para assentamentos do MST”.

Procópio destaca o papel da cultura na formação dos jovens. “Se não tivermos cultura e lazer nos assentamentos não temos condição de segurar a juventude. A arte é fundamental para a formação da consciência dos trabalhadores. Ela resgata e fortalece sua identidade. É uma coisa maravilhosa, por exemplo, num encontro de violeiros encontrar uma Folia de Reis mirim”.

O MST tem brigadas de teatro em vários estados. São as Brigadas de Teatro Filhos da Terra. Em Mato Grosso do Sul há 300 atores e atrizes que já visitaram mais de 30 mil pessoas em acampamentos e escolas do MST.  O ano de 2004 foi todo dedicado ao setor de cultura em comemoração aos 20 anos do movimento.

BATISMO MINEIRO
Felinto Procópio dos Santos, vale lembrar, nasceu no Paraná e cresceu numa cidade de Mato Grosso do Sul, mas foi batizado de Mineirinho em 1991, quando já estava em São Paulo. É que os paulistas, pelo jeito e pelas preferências adqüiridas com a mineirada de Rondônia, acharam que ele era um típico cidadão das Minas Gerais. “Onde eu morava tinha uma mineirada danada. E aí  passei a comer a mesma comida, tomar as pingas de Minas, tomar café adoçado com rapadura, entendeu? A gente pega o hábito e você não tem noção do que está parecendo. Foi assim que o pessoal de São Paulo achava que eu era mineiro e tal…e apelido é um cão pra pegar moça. E pegou. O único lugar onde me chamam de Felinto é lá em Rondônia. O Brasil inteiro me chama de Mineirinho”. E nós, do Boletim NPC, também.

A PRISÃO
Mineirinho diz que nunca vai esquecer o número de sua matrícula na prisão: 357.759. “Se eu chegar no presídio em São Paulo esse é o meu número”. Foi uma verdadeira humilhação e provação para o lavrador amante das letras, da arte e para o homem de fé.

Ele já tinha sido preso duas vezes antes por ocupar terras, mas a dimensão da terceira prisão foi muito maior. A roupa que usou na cadeia levou para o teatro para representar o episódio. Mineirinho também é ator. “O que o governo fez comigo foi uma grande palhaçada, com todo o respeito aos palhaços. Eu pedi a roupa de palhaço para trazer para o circo. Está lá no Boal (Teatro do Oprimido de Augusto Boal) ex

posta”.

O tocador de viola conta sua história: “o governo do Estado de São Paulo levou para a imprensa que nós tínhamos de ser presos porque éramos inimigos da sociedade. Fomos presos no dia 11 de julho (de 2003) e ficamos até 4 de novembro. O Zé (Rainha) foi preso numa audiência e eu fui vê-lo na cadeira. O juiz mandou decretar na hora a minha prisão. O argumento era de formação de quadrilha, dano ao patrimônio, roubo qualificado, bando armado, atirador de elite, etc. Tudo porque éramos lideranças. Mas eu não aparecia em nenhum jornal, não dava entrevista, não gosto disso. Então fomos presos e transferidos para a penitenciária de Venceslau Brás, onde ficam os presos mais perigosos de São Paulo. Eu achei muito engraçado até. Não sabia que era um cara tão perigoso. Devem ter ficado com muito medo de mim”.

Mineirinho ficou um mês no isolamento, prática dispensada para os presos de alta periculosidade. Depois foram transferidos para a penitenciária 1, “onde o Frei Betto ficou preso durante o regime militar. Ela é muito antiga. Lá a gente tinha de tapar os canos porque os ratos de esgoto entravam. Ficamos uns dez dias e depois fomos levados para o pavilhão de convívio. E de lá fomos transferidos para a prisão onde estava o Fernandinho Beira mar, a penitenciária Presidente Bernardes. Uma penitenciária de regime disciplinar diferenciado, onde o preso só pode ficar seis meses internado. Passado esse tempo, o preso pode ficar com problemas psíquicos. Lá só ficam presos de altíssima periculosidade. Vão para lá para serem castigados durante seis meses”.

Mineirinho diz que nessa prisão aconteceu um episódio engraçado: “Os caras queriam cortar minhas unhas na marra. É que elas são grandes por causa da viola. E eu falava, deixa as minhas unhas aí”. Mas os episódios engraçados terminam por aí. “Nós ficamos nessa prisão por dez dias e saímos ruins da cabeça. Fomos transferidos de novo para outro presídio, que era a penitenciária Compacta de Dracena. Ficamos lá de outubro a novembro. Os advogados conseguiram ganhar na Justiça e saímos. Eu escrevi durante os três primeiros meses. Fiz um diário contando muita coisa. Os presos tratavam a gente muito bem. Era uma convivência de respeito mútuo. Eles sabiam da nossa causa. Estudava muito também”.

RICO E POBRE
Felinto Procópio ensina: “o problema crônico da elite brasileira é quando o pobre pensa. Pior quando ele pensa coletivamente. Esse é o problema. O acampamento do MST é um laboratório de produção de pensamento. As pessoas se juntam e dividem o que têm e o trabalho a ser feito. A primeira coisa no acampamento é erguer uma escola. Cada um ajuda com o conhecimento que tem”.

A elite não gosta do MST porque ele resgata a identidade perdida do camponês, do trabalhador, de lidar com a terra. O movimento faz o resgate da inclusão. O Estado de Direito tornou a propriedade um direito “sacrossanto”.  “Então como um bando de sujismundos, da escória ousa quebrar a cerca e ocupar uma propriedade particular?”, indaga ironicamente.

Mineirinho é taxativo: “ninguém vai para um acampamento para fazer um piquenique. É por necessidade. Ao invés de se sujeitar a não ser ninguém, ele se sujeita a enfrentar o cão para ter liberdade. Isso acontece quando ele conquista a terra. Ele não ganhou, ele conquistou. Não foi o MST quem deu. Quem deu a ele foi ele mesmo”.

É por causa  desse trabalho de conscientização, de inclusão e de respeito que o MST virou o principal inimigo do latifúndio, da elite agrária no Brasil. 

SOSSEGO? SÓ COM TERRA
Felinto Procópio diz que a luta do MST não tem descanso, “a gente só vai sossegar quando acabar o latifúndio”. Enquanto existir o latifúndio, o movimento existirá, usando a sua única arma, a ocupação, avisa.

Mineirinho finaliza: “Vamos continuar a fazer o que sempre fizemos. Vamos continuar investindo na formação porque a imprensa não vai mostrar uma vírgula das coisas boas que fazemos e temos. Não vai falar da nossa agricultura, das nossas escolas, dos nossos projetos culturais. Porque não interessa mostrar as coisas boas que o pobre faz. É preciso a cada dia mostrar cenas de violência, forjar cena de violência, fazer armações porque tem de fundamentar para o povo que somos violentos, baderneiros, que desviamos dinheiro público. Eles nos satanizam para justificar a repressão contra a gente. A elite não abre mão disso. E nós não abrimos mão de acabar com o latifúndio”.