( Pedro Tierra)

Há vinte anos escrevi este poema:

Sanaúd *
( notas pelo direito à indignação )

Sangram cedros calcinados

no vale do Bekaa.

Sangram cérebros triturados

sobre a poeira de Sabra e Chatila.

Sob paredes dinamitadas explode

a imprevista

cabeça dos cavalos

olhos vazios

buscando decifrar inutilmente

a ferocidade dos homens –

e escorre o cheiro gosmento

da peste que antecede o assalto dos vermes.

O silêncio devorou os faróis do Apocalipse.

Os faróis de Sharon a iluminar os punhais de Haddad.

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Desatou-se do céu

sangrando

um vento cego,

um vento sem misericórdia

a sepultar sob a areia

os olhos assassinados

estrelas de espanto –

das crianças de Sabra e Chatila.

Desatou-se do céu violeta

um vento de misericórdia

a varrer minucioso

a memória dos vivos:

os olhos que visitaram a carnificina,

oficina enlouquecida de Sabra e Chatila,

suplicam pela piedade do esquecimento

para seguir vivendo.

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O grito devorado pela boca feroz do silêncio

explodiu na ante-sala do império,

e desatou sua gangrena sobre a mesa dos povos:

impossível comer.

Impossível dormir.

Impossível olhar

a luz que amanhece no rosto dos filhos.

Impossível prosseguir

sem polir cuidadosamente a memória.

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Que os assassinos organizem

urgentemente uma comissão

para apurar os assassinatos!

E punir…

E poderemos então retornar

à paz dos escritórios e dos jardins

que nos acolhem ao fim da tarde,

ao sono interrompido dos indiferentes.

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Quem se recusa a ver com agudos olhos de criança

as mãos de Sharon decompostas

pela surda força dos sangues?

E a maligna estrela

que explodiu-lhe nos olhos

ao gritar sinistro aos seus acusadores:

“ – onde estavam os senhores quando Tal – El – Zatar?

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Quem não decifra

nesta manhã de mortos incontáveis

a bengala que sustenta Béguin?

Que ventre gestou

o vôo alucinado

dos bombardeiros?

As bombas de fósforo

despejadas até a instância do desespero?

Que braços acalentaram o fogo

que destruiu Beirute?

Que nome leva o metal dos obuses,

a lagarta dos tanques

que retalham a carne do Líbano?

Eu conheço a bengala de Béguin

entalhada nos ossos do massacre.

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Treblinka, Auschwitiz, Dachau, Babi Yar,

cobrirão com seu manto de horrores

os horrores de Tal – El – Zatar, Sabra e Chatila?

Depois de toda a ferocidade

apenas carne

no silêncio dos matadouros.

Nos punhais de Haddad

brilha uma estrela gamada.

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Diante destes olhos,

exaustos navegantes

de outras tormentas

desbordou-se um campo

de espigas maduras.

Um impossível trigal,

filho do sal

e das pedras do deserto.

Espigas infinitamente repetidas

até o horizonte de Bekaa.

A força do deserto me traga,

me domina, me arrasta sonâmbulo

no seu torvelinho

ao impreciso território da miragem

que a fuga incessante do tempo me anuncia

e nega:

aqui vejo com os olhos dos meninos

de Sabra e Chatila

o ouro tenso das espigas palestinas.

Apalpo e não encontro

o grão que alimenta,

fermenta a massa

e nutre o sonho da geração que virá,

porque não virá nenhuma geração.

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O grão aqui não é ouro.

É estanho e chumbo refundidos

nas usinas do desespero.

É o grão que da morte se alimenta.

Com seus dentes de luz

morde a alma dos soldados

de Haddad e Sharon.

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Quando retornar o vento

e a memória retornar

da terceira margem da dor

recomporemos os corpos

e o imenso grito soterrado

nas valas comuns cobertas de cal e silêncio;

recomporemos um canto de terra, vento e fuzis

e traçaremos sobre a areia

com gesto de orvalho e estrela

a palavra sanaúd.

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Sanaúd – Palavra árabe que significa voltaremos. Voltar ao topo da página

Goiânia, setembro de 1982.

Não me parece plausível que a palavra dos poetas tenha, em algum momento da história, detido a mão dos senhores da guerra. A poesia não dispõe de poder. A ela cabe registrar em outro diapasão – a princípio inaudível – a advertência dos indignados, a premonição dos aflitos, a busca dos sentidos ou da ausência de sentido da tragédia humana.

Em alguns casos – raros nos dias que correm – os poetas
dão corpo à sua palavra. Inventam gestos que quebram a moldura da consciência anterior. Como quem lança uma pedra e estilhaça o espelho em que nos miramos desde que nascemos. Então eles, os poetas, se tornam inconvenientes, subversivos. E, diante do gesto, mesmo aqueles que antes toleravam sua ousadia com as palavras; amavam seus delírios no exercício obscuro de trazer o impossível ao alcance da voz; de inventar novas possibilidades para a língua e para os sonhos humanos, são tomados de estranhamento. Falarei de um que há poucos dias lançou uma pedra no meio da tormenta.

Já não o reconhecem porque o poeta feriu um código sutil e inflexível: vazou do reino das palavras, e ao se afastar delas, conferiu à poesia uma força que não tinha, nem buscava: converteu a poesia em ação. Esse o sentido profundo do gesto de José Saramago ao visitar o líder do povo palestino Yasser Arafat, sitiado pelos canhões de Ariel Sharon, sob os escombros de Ramallah. Lançou uma pedra contra a superfície do espelho em que estamos habituados a nos mirar. E nos cega, a nós ocidentais. Ou que nos imaginamos ocidentais ainda que filhos de negros, índios, ibéricos e imigrantes pobres. Não nos permite enxergar a terrível semelhança entre o Gueto de Varsóvia e os campos de Jenin convertidos de campos de refugiados em campos de extermínio, nesta páscoa de 2002. Por isso foi acusado de “cegueira moral” e teve seus livros devolvidos por muitos.

Saramago suspendeu o véu que há meio século havia sido levantado, em outras circunstâncias, pela lucidez de uma importante intelectual do século XX, Hannah Arendt, ao refletir sobre a tragédia do seu povo: “Pois é perfeitamente concebível e mesmo dentro das possibilidades políticas práticas, que, um belo dia, uma humanidade altamente organizada e mecanizada chegue, de maneira democrática – isto é, por decisão da maioria –, à conclusão de que para a humanidade como um todo, convém liquidar certas partes de si mesma” (1). Pouco mais de meio século depois o povo de Israel elegeu Ariel Sharon, um criminoso de guerra, seu primeiro-ministro e foi conduzido por suas mãos a um novo holocausto, agora no alto da torre dos tanques.

Somos diariamente entorpecidos pela indiferença. E a indiferença, ensina Hannah Arendt, está na raiz da idéia de que existem “povos descartáveis”. O povo palestino tornou-se, aos olhos do governo de Israel e das ditaduras árabes vizinhas, um “povo descartável”, a exemplo do que foi o povo judeu na primeira metade do século XX, durante as duas Grandes Guerras, na Europa. “Os próprios nazistas começaram a sua exterminação dos judeus privando-os, primeiro, de toda condição legal (isto é, da condição de cidadãos de segunda classe) e separando-os do mundo para ajuntá-los em guetos e campos de concentração; e, antes de acionarem as câmaras de gás, haviam apalpado cuidadosamente o terreno e verificado, para sua satisfação, que nenhum país reclamava aquela gente” (2). Nem todos entenderam o gesto desesperado de Arafat, ao condenar os atentados de 11 de setembro. Ele encarnava a percepção aguda do que estava por vir: a fragilidade do povo palestino frente aos arsenais e a sede de sangue de Ariel Sharon, agora alimentado pelo estilo texano de tratar dos conflitos entre as nações.

Um genocídio não se improvisa. Há o momento de produzir em escala industrial a indiferença da opinião pública; e o de destruir com escavadeiras e tanques as casas, os edifícios, a infraestrutura, as condições materiais da vida; e afastar para além do horizonte visível a hipótese de um Estado palestino. Há o momento de aprisionar os que não foram sepultados sob os escombros e conduzi-los aos campos de refugiados. E, por fim, o momento de convertê-los em campos de extermínio. Em matadouros, como em Jenin.

Aos olhos do império, o povo palestino não é mais que um tropeço, um “povo descartável”, como amanhã o povo do Iraque, seu próximo alvo. O tempo dos sitiados na Basílica da Natividade, em Belém, não é o tempo do general Colin Powell. Para uns é o tempo de estancar o sangue dos corpos de adolescentes alvejados, para outro, o tempo de polir as palavras e as armas para as próximas campanhas. Não nos escandalizemos, pois, diante da afirmação daquela mãe que apontava seu filho de dez anos, em Shatila, há poucos dias, para dizer a um jornalista: “Olhe esse menino, hoje mesmo eu o transformaria em uma bomba”. Não é uma frase, todos sabemos. Que energia nutre o desespero que leva essa mulher a pronunciar a sentença de morte sobre a cabeça do seu próprio filho? Volto a Hannah Arendt que, em 1949, nos advertia: “O perigo é que uma civilização universalmente correlata, possa produzir bárbaros em seu próprio seio por forçar milhões de pessoas a condições que, a despeito de todas as aparências, são as condições da selvageria”.(3) Cumpre agradecer a José Saramago por ter lançado a pedra que estilhaçou a plana superfície do espelho que nos mantinha entorpecidos. Talvez ele tenha lançado, desde sua funda, a pedra de Davi.

Não creio que a poesia justifique a vida ou a morte. Mas não posso aceitar que a ação de um aristocrata do terror como Osama Bin Laden seja comparável aos passos dessa menina de 18 anos que se imolou há alguns dias em Jerusalém:

“Ayat Ajras”

Não suspeito a exata direção dos teus passos.

Há muita poeira e a fumaça das explosões

obscurece o verde dos teus olhos

por onde contemplo a paisagem devastada.

Não me escapa a luz crua que recorta

os escombros dos sonhos que habitavas:

singelos como tâmaras sobre a mesa,

o calor do pão e da palavra,

a água limpa num vaso de barro

ou um lugar de oração.

Percebo sob os panos sagrados do chador

o trêmulo silêncio dos teus seios

que se afastam da concha de minhas mãos,

com um som de alaúdes que se despedem.

Meus dedos de espanto adivinham

sobre a seda de tua pele de trigo,

atado em torno da cintura

que as luas prepararam

para as ternas mãos do prometido,

o doce metal das granadas.

E não atino com o gesto definitivo:

o clarão que te ilumina,

assombra, despedaça, semeia a morte

e sangra inútil sobre a pedra de Jerusalém.

(1) Arendt, Hannah: As Origens do Totalitarismo, Companhia das Letras 1989, S. Paulo, pág. 332.

(2) Op. Cit. pág. 329

(3) Op. Cit. pág. 336

Brasília, 12 de abril de 2002.