Com esta frase, o filósofo francês Guy Debord abre a “Sociedade do Espetáculo”, publicada em 1967 e que teve grande influência nas manifestações de Maio de 68. De grande complexidade e densidade teórica e contendo os limites históricos de qualquer obra, a reflexão de Debord procura pensar o capitalismo no século XX, atualizando a pertinência de conceitos marxistas como o fetiche e a mercadoria. Para ele, a dominação burguesa sobre a classe trabalhadora, condição fundamental da sociedade de classes analisada por Marx e Engels, dá-se, com o avanço do capital, sob a condição do espetáculo.

A primeira frase da obra de Debord é uma paráfrase da primeira frase de O Capital, de Marx: “A riqueza das sociedades em que domina o modo de produção capitalista aparece como uma imensa coleção de mercadorias”[3]. No capital, tudo vira mercadoria; na sociedade do espetáculo, a mercantilização de tudo aparece como uma grande vitrine, um grande show, uma festa. Daí poder-se pensar os reality show contemporâneos nesta perspectiva.

A vinda do presidente norte-americano Jorge W. Bush a países da América Latina pró-EUA ou de linha moderada, como o Brasil, funciona como um grande espetáculo, uma grande peça teatral.  Por que vem Bush ao Brasil? Por que agora? Será uma mera visita cordial? Ou seria uma tentativa de retomada do controle sobre as Américas?

Tendo se desgastado na investida ao Oriente Médio, vem agora o “grande protetor do mundo” fazer um tour pela América Latina. Coincidência? Não. O capital não trabalha com coincidências, ele as cria. A finalidade oficial: tratar de questões econômicas, sobre o etanol, o comércio entre os países, etc. A finalidade real: demarcar território, retomar posição, reafirmar a propriedade. É como o fazendeiro que passa um ano viajando e, quando percebe que as coisas estão saindo do controle, volta e fica uma semana na fazenda para “verificar” como as coisas estão, para remarcar o gado e retocar as cercas.

Mas o fazendeiro não se mistura aos peões: ele fica na sede da fazenda. Bush não foi ao Nordeste ou Norte: a cidade escolhida para o grande espetáculo da visita foi São Paulo. Égide do poder e da governança brasileira, a capital representa o espetáculo do desenvolvimento, a terra das oportunidades, o símbolo da sedução que atrai milhões de imigrantes, a cara da burguesia brasileira. Não é à toa que Bush vem a São Paulo; os Impérios nunca fazem as coisas à toa.

A leitura de Debord nos pode ajudar a ver que tal ostentação da imagem do presidente norte-americano, tão forte no cinema e na mídia em geral, faz parte da reestruturação do capitalismo, da correlação de forças mundiais, do combate ao “avanço socialista” na latino-américa. Lembrando Debord, “o espetáculo é o capital a um tal grau de acumulação que se toma imagem”.

Bush é um grande estadista? Não. É um propagador da justiça? Não. Não é ele que propaga a fúria bélica contra o mundo árabe, contra o “mal” do oriente? Sim. Mas que confusão! Por que então o Governo brasileiro garante um sistema de segurança jamais feito no Brasil a um chefe de Estado, com 4 mil homens, estrutura de guerra? Por que foi reproduzida a mesma estrutura da “Casa Branca” no Hotel em que Bush ficou hospedado? Por que o Brasil se submete a isso?

A resposta a estas questões é complexa, porque a sociedade é complexa e contraditória. Mas o motivo é simples, segundo Debord: “No mundo realmente invertido, o verdadeiro é um momento do falso”. Troquemos o sim pelo não e o não pelo sim e talvez cheguemos mais perto das reais condicionantes da visita de Bush: ele não vem para tratar de negócios; ele não gosta do Brasil como diz (haja vista que ele trouxe comida, água e roupas dos EUA); ele não vem por acaso; ele é o símbolo da imagem burguesa, capitalista, imperialista.

Mas nem tudo é flores para o capital. Se milhões se contentam com a imagem da coisa pela TV, milhares protestaram contra a coisa. Em todo Brasil houve protestos e, em São Paulo, na Avenida Paulista, símbolo do espetáculo paulistano-burguês, a polícia foi orientada a abafar a manifestação com violência. Mas por quê? Não foi a Av. Paulista palco dos dois discursos de posse do presidente Lula? Agora ele deixa que a polícia ataque os manifestantes que defendem o Brasil que ele governa? Simples: na sociedade capitalista, o falso aparece como verdadeiro e o verdadeiro como falso.

Mas o presidente Bush vai embora logo. São Paulo não terá mais espetáculos tão cedo. Engano: em dois meses a mesma cidade será símbolo de outra visita: a do Papa ao Brasil. Coincidência? Parece que não. A Igreja, pela sua história bi-milenar, não trabalha com coincidências; ela, inclusive, as criou em determinadas circunstâncias.

Por que o Papa vem a São Paulo? Será pelo fato de que o Encontro dos bispos da América Latina será em Aparecida e fica perto da capital? Por que é mais central? Tem tudo isso, mas tem mais: São Paulo é símbolo, e a Igreja Católica precisa retomar seu vigor no Brasil que tem a população não-católica crescendo vertiginosamente, sobretudo nos grandes centros urbanos.

A finalidade oficial da vinda do Papa à capital: tratar de questões eclesiásticas, canonizar um santo, falar à juventude, reanimar a igreja, etc. A finalidade real: demarcar território, retomar posição, passar um tempo por aqui para “verificar” como as coisas estão.

Dois grandes nomes, duas grandes forças mundiais, uma cidade simbólica, uma seqüência de fatos capazes de parar a maior cidade brasileira. Não é de hoje isso: Império e Igreja propiciam espetáculos desde a chega de ambos a estas terras. Uma missa, uma cruz, uma espada: “Tu cuidas das almas, eu cuido da produção”. Assim se fez. Quinhentos anos depois…

Mas não seria mera coincidência as duas visitas se darem tão próximas e no mesmo lugar? Talvez não sejam espetáculos, mas apenas a vinda de dois chefes de Estado a um país. Talvez sim, mas na sociedade do capital e do espetáculo as coisas não costumam acontecer por acaso.

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[1] José Carlos Freire é assessor de projetos sociais em São Paulo, com fo

rmação em teologia e filosofia. Ele expressa aqui opinião pessoal, que não representa necessariamente o ponto de vista da Gazeta.

[2] DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro, Ed. Contraponto, 1998, capítulo I, sobre a  “Separação consolidada”. Uma tradução virtual pode ser encontrada em: http://www.geocities.com/projetoperiferia4/se.htm

[3] MARX, K. O Capital. Capitulo I. O texto está disponível em

http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.do?select_action=&co_autor=130