“A disciplina sem generosidade é uma ilusão farisaica, e a generosidade sem disciplina, uma ilusão filistina”.
Antoni Domènech
Entrevista a Myriam Bautista, para o jornal El Tiempo, de Bogotá
Um grupo de intelectuais criou uma revista digital e impressa, com um conselho editorial formado por líderes da esquerda, dos anos setenta, de três continentes.
A imagem poderia ser de um conto de Julio Cortázar: um grupo de homens e mulheres de duas gerações, com muito em comum mas, talvez o mais importante, politicamente derrotados, reunem-se para criar uma revista, com três núcleos de redação, em Barcelona, Buenos Aires e México, e cada um com os pés em distintas cidades, tantas como amigos de velhas lutas, dispersados pelo mundo.
Essas pessoas, quase todas acadêmicas, chegaram a seus orientandos, que os convenceram de que a revista em papel, com tiragem de quatro mil númeos, tão volumosa como um livro, era importante, mas muito mais importante era construir um site na internet para alcançar de imediato um público mais amplo. Houve consenso. Velhos, mais jovens e jovens, sem cobrar um só peso, puseram mãos à obra. Passaram três anos e SinPermiso é já uma referência de leitura obrigatória, a cada oito dias, para 21 mil pessoas dos cinco continentes, inscritas gratuitamente em sua edição eletrônica, na qual se publicam 15 artigos. Cada dia uns 25 mil leitores acessam a página. A Colômbia ocupa a nona posição em acessos.
Maria Julia Bertomeu e Carlos Abel Suárez em Buenos Aires, Adolfo Gilly no México e Daniel Raventós em Barcelona são alguns dos membros do Conselho Editorial. Na redação, entre muitos, destaca-se a colaboração da militante histórica e mítica do Partido Comunista italiano. Rossana Rossanda, desde Milão, com seus 85 anos e recém casada, escreve permanentemente sobre a atualidade de seu país e do mundo.
O editor geral, Antoni Domènech, desde muito jovem militou na resistência clandestina antifranquista nas filas do Partido Comunista e estudou filosofia e direito na Universidade de Barcelona. Desde 1994 é catedrátido de Filosofia na Faculdade de Ciências Econômicas dessa Universidade.
Domènech esteve em Bogotá, como expositor principal num seminário sobre o filósofo político norte-americano John Rawls e para apresentar a revista, no claustro de Santo Agostinho, a conhecedores e profanos que não deixaram de acompanhar sua sisuda e emotiva exposição.
Myriam Bautista – Na Apresentação da SinPermiso, onde aparece seu nome, termina com uma citação de Marx. Por que escolheu-a?
Antoni Domènech – Porque nessa citação se declara que, em todas as épocas, quem não tem meios próprios de vida tem de pedir permissão a outros para viver, e por isso não é livre. Liberdade não é ter que pedir permissão a outro para sobreviver: é uma idéia velha que vem do antigo Mediterrâneo, dos atenienses. É muito notável que na Crítica do Programa de Gotha, onde está essa citação, Marx tenha se servido explicitamente dessa velha idéia para ilustrar o que eram a democracia revolucionária (a da I República Francesa de 1793) e o socialismo industrial modernos: programas políticos de universalização da liberdade republicana. Que ninguém tenha necessidade de ter de pedir permissão a outro para sobreviver, que ninguém seja escravo de outro (de Aristóteles, Marx tomou a idéia de que o trabalho assalariado era “escravidão em tempo parcial”), essa é a idéia.
E converter essa citação de Marx no título da revista implica ainda outra coisa: equivale a uma declaração de princípios radicalmente laicos: nós não somos marxistas sectários, religiosos. Sectário é quem acredita em mito fundador, segundo o qual a origem de sua tradição moral ou política começa do zero, sem antecedentes, como novidade absolutamente radical. Assim são todas as religiões, sem exceção. Mas a democracia republicana e o socialismo modernos se encontram numa larga tradição milenar de luta pela liberdade republicana e por sua universalização, uma tradição ou um conjunto de tradições de combate político que fincam suas mais velhas raízes conhecidas nas lutas populares das velhas sociedades agrárias do mediterrâneo antigo, e também, ainda mais profundamente, num anseio humano universalmente reconhecível.
MB – SinPermiso não recebe anúncios publicitários, não recebe subvenções. Como funciona?
Domènech –– Nisso estamos voluntariamente inscritos na tradição publicista do movimento operário internacional: antes da II Guerra Mundial, nenhum periódico socialista (no amplo sentido do termo, que abarca desde o trabalhismo britânico e as socialdemocracias continentais européias até o anarcossindicalismo, passando pelos distintos comunismos) admitia publicidade comercial, nem recebia subvenções públicas ou privadas. Fazer boa propaganda política, fundada em análises intelectualmente honradas e destinada a persuadir por uma mudança radical com bons argumentos pública e racionalmente debatíveis é incompatível com a dependência de publicidade mercenária – “mercenário” tem a mesma raiz etimológica que “mercado” e “meretriz” -; é incompatível com ter que pedir permissão a empresas privadas ou a governos para existir. SinPermiso se faz de gratis et amore, com a disciplina e com a generosidade dos velhos combatentes socialistas: de nossos maiores anarcossindicalistas aprendemos que a disciplina sem generosidade é uma ilusão farisaica; e de nossos maiores marxistas, que a generosidade sem disciplina é uma ilusão filistina.
MB – Além de autores socialistas, que outros autores publicam em SinPermiso?
Domènech – Às vezes publicamos liberais de esquerda inteligentes. Os prêmios Nobel Krugman e Stiglitz, por exemplo. Os enfants terribles do establishment são interessantes, também porque conhecem por dentro as entranhas do sistema. Michael Hudson, por exemplo, que sempre traduzimos e publicamos com gosto em função da soberba qualidade analítica de seus textos, e que é algo mais que um liberal de esquerda (um republicano quase socialista), esteve 30 anos trabalhando em Wall Street antes de romper com o sistema.
MB – Quando da apresentação de SinPermiso aqui [em Bogotá] disse-se que a Revista vem publicando desde pelo menos 2006 artigos premonitórios da atual crise econômica e financeira mundial. Como foi isso?
Domènech – É verdade. E aí há que se dizer que os economistas que anteciparam o que estava por vir não são acadêmicos do stablishment, nem sequer liberais de esquerda críticos do sistema (como os mencionados Krugman e Stiglitz), mas pessoas que, ou tinham rompido radicalmente com o que se passou nos anos 90 – como o também mencionado Michael Hudson – ou economistas de formação marxista analiticamente sólida, como meu amigo berlinense Michael Krätke (membro do Conselho Editorial de SinPermiso), atualmente na Universidade de Lancaster, no Reino Unido que, além de ser de ser um dos editores da nova edição crítica internacional das obras completas de Marx e Engels, é um reconhecido especialista em mercados financeiros. Ou o historiador da Universidade da Califórnia Los Angeles, Robert Brenner, também membro do Conselho Editorial de SinPermiso. Também temos publicado peças analiticamente interessanes e premonitórias do economista filipino Walden Bello, um “prêmio Nobel Alternativo”.
MB – Como SinPermiso vê a situação atual?
Domènech – O momento atual é muito grave e complicado. Os três componentes da chamada “globalização” posta em marcha
desde meados dos anos 70 (primeiro, remundialização do capitalismo; segundo, neoliberalismo entendido como saque privatizador do patrimônio público, inclusive do patrimônio natural e, terceiro, financeirização da economia) fracassaram, revelando ilusórias todas as aparências de prosperidade grotescamente celebradas nas últimas décadas por intelectuais e periodistas do sistema. Porém, a isso há que se somar, ao menos, a crise energética – o esgotamento dos combustíveis fósseis que têm estado na base da economia mundial nos últimos cem anos -, assim como a crise ecológica derivada da destruição de vínculos ecossistêmicos globais, cuja manifestação mais visível é a catastrófica mudança climática em curso. As três crises – econômica, energética e ecológica – já estavam no horizonte nos anos 70: esta Guerra dos Trinta Anos em que as forças da reação triunfaram, do obscurantismo e da irresponsabilidade sobre as forças democráticas e populares em escala planetária também significou perder 30 anos na resolução de problemas gravíssimos e urgentes que estavam claramente apresentados já nos anos 70. E o que temos agora são, por um lado, forças muito apequenadas, as da esquerda, que sofreu uma derrota espantosa logo após 68 e, por outro, umas elites que, postas diante da evidência do fracasso clamoroso de todas as suas políticas nas últimas três décadas, estão desnorteadas, desconcertadas diante da magnitude de alguns problemas que, vítimas de suas próprias mentiras e ideologemas, nem sequer parecem capazes de compreender, para não falar em enfrentar.
MB – Conte-nos de seu último livro.
Domènech – É uma pesquisa acadêmica – demorei 10 anos para completar a investigação que me permitiu escrevê-lo – sobre O Eclipse da Fraternidade. Dos três valores emblemáticos da democracia republicana moderna – liberdade, igualdade, fraternidade -, o da fraternidade não só é hoje o mais enigmático, mas é o menos estudado. O que me propus foi a estudar seu significado, como metáfora e como programa político, para a ala plebéia da Revolução Francesa, assimo como seu problemático legado para o socialismo industrial operário dos séculos XIX e XX. Daí o subtítulo: “Uma revisão republicana da tradição socialista” que, como observou um dia um dos críticos mais inteligentes de minha obra, também poderia ter sido, ao contrário, “Uma revisão socialista da tradição republicana”.