[Jean Dantas* ] No dia 31 de março — data maculada pelo golpe civil-militar de 1964, que tolheu nossa democracia durante duas décadas —, o Núcleo Piratininga de Comunicação, em parceria com o portal Conexões Periféricas-RP, propôs um debate essencial sobre a trajetória histórica dos trabalhadores(as) domésticos(as) e a importância do sindicato para essa categoria.
Abordar o tema, nos remete a um longo caminho histórico de lutas por direitos e melhorias nas condições de vida e de trabalho. Convidamos para conversar sobre o tema a presidenta do Sindicato dos Trabalhadores(as) Domésticos(as) do Município do Rio de Janeiro, diretora do Centro de Teatro do Oprimido, atriz e diretora do grupo de teatro Marias do Brasil, Maria Izabel Monteiro, e a Ivone Rocha, integrante do projeto Semeando Amor.
Contexto histórico
Maria Izabel, começa falando sobre o contexto histórico em que estão inseridos os trabalhadores(as) domésticos(as):
Quando eu falo do trabalho doméstico, eu gosto de falar um pouco do contexto histórico. Na época em que fomos escravizadas, as trabalhadoras domésticas, as mulheres na escravidão eram mães, os filhos eram retirados dos seus braços para elas amamentarem os filhos dos senhores de engenho. Então, nós mulheres, vivemos esse sofrimento não é de hoje.
A afirmação de Maria Izabel mostra muito do nosso cotidiano atual. Milhões de trabalhadoras necessitam deixar seus próprios filhos para cuidar dos filhos de seus patrões. É um sistema vicioso, o que torna o debate sobre direitos para essa categoria ainda imprescindível.
Direitos trabalhistas
Os anos em que o Brasil viveu sob o Estado Novo de Getúlio Vargas caracterizaram-se pela efervescência política e social. Se por um lado, avanços nos direitos trabalhistas eram conquistados, por outro, nem todas as categorias tiveram seus direitos reconhecidos, como explica Maria Izabel:
Em 1943, quando foi aprovada a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), as categorias que ficaram de fora dos direitos trabalhistas foram as trabalhadoras domésticas e os trabalhadores rurais. Duas categorias que vieram da herança da escravidão.
Representatividade e liderança
Maria Izabel, nos apresentou algumas figuras que representavam essa luta por uma vida melhor, pessoas que dedicaram suas vidas pela valorização dos trabalhadores(as) domésticos(as).
Nos anos 30, a sra. Laudelina de Campos Melo já vinha na luta para que a categoria conseguisse seus direitos trabalhistas. Além da luta por direitos, ela discutia cultura com essa categoria de trabalhadoras domésticas. A sra. Laudelina levava essas mulheres para trabalhar com a cultura, ela não falava apenas do trabalho doméstico.
Primeiros direitos conquistados
Observamos um atraso de décadas até os primeiros avanços para a categoria. Direitos eram sistematicamente negados e uma classe inteira de trabalhadores(as) desassistidos era jogada na informalidade. Maria Izabel, aborda o início desses avanços, que, apesar de importantes, foram tímidos diante do que a classe necessitava.
Chegando na década de 1970, as trabalhadoras conseguiram seus primeiros direitos em 1972. Mas mesmo assim, os direitos das trabalhadoras domésticas foram diferenciados de outras categorias. Não tínhamos todos os direitos trabalhistas, apenas a carteira assinada e 20 dias de férias. Durante a década de 1970, esses direitos foram ampliados através de muita luta, mas também com muita rejeição. Porque não era obrigatório, sendo assim, nem todos os empregadores cumpriam esses direitos.
A Constituição de 1988, trouxe avanços importantes para os direitos trabalhistas. Diversas garantias existentes na CLT, receberam status constitucional. Alguns direitos foram ampliados e outros incluídos. Conquistas importantes foram realizadas, podemos destacar algumas: aviso prévio proporcional, licença paternidade e o direito de greve. Maria Izabel salienta, no entanto, que “depois da Constituição de 1988, a categoria teve uma ampliação de seus direitos, mas sempre com diferenciação para outras categorias”. Afirmou.
Ampliação dos direitos
Izabel expõe as dificuldades vividas e o preconceito de que essa categoria é vítima. A história das classes de trabalhadores(as) do país é marcada pelo enfrentamento, pela luta por melhorias. Maria Izabel ressalta, contudo, a discriminação que os trabalhadores(as) domésticos(as) historicamente sofreram. São décadas de atrasos e direitos básicos negados. E quando conquistados, há uma enorme dificuldade para serem cumpridos e fiscalizados, conforme conta:
Em 2006, a categoria conquistou o direito a feriados e ao vale transporte; em 2013, com a PEC das domésticas, nós conquistamos as horas de trabalho. Tudo isso, nós conquistamos! Mas a parte mais difícil é o cumprimento da lei. Em 2015, a Lei Complementar nº 150. Ampliou todos os direitos das trabalhadoras domésticas. Em outubro de 2015, obtivemos o direito ao fundo de garantia por tempo de serviço.
Para que todos os direitos conquistados sejam efetivamente cumpridos, há uma urgente necessidade no aperfeiçoamento dos métodos de fiscalizações utilizados pelos órgãos públicos, no entender de Maria Izabel. A categoria dos trabalhadores(as) domésticos(as), enfrenta uma barreira colossal entre os benefícios conquistados juridicamente e os direitos efetivos da vida cotidiana, conforme ressalta:
Nem todos os empregadores cumprem a Lei Complementar nº 150, a categoria sofre muito com a falta de cumprimento das leis trabalhistas. No trabalho doméstico, não tem fiscalização. Em âmbito familiar, não pode haver fiscalização. E o que nós discutimos nos sindicatos é que, enquanto não houver uma fiscalização, esse descumprimento da lei irá continuar acontecendo.
Maria Izabel denuncia que, além das dificuldades para que se façam valer os direitos conquistados durante décadas de reivindicações, esses trabalhadores(as) convivem com a dura realidade das péssimas condições de trabalho e, em alguns casos, de situações desumanas de vida:
Eu acredito que vocês tenham acompanhado… trabalhadoras domésticas foram retiradas do trabalho análogo à escravidão aqui no Rio de Janeiro. Duas trabalhadoras domésticas foram retiradas dos seus trabalhos pelos auditores fiscais do trabalho em residências diferentes; uma trabalhava sem direito a folga e a outra nem salário possuía.
Sindicatos
Neste cenário, onde há um grande déficit em se garantir o cumprimento dos direitos conquistados, os sindicatos exercem um papel preponderante de fiscalização e cobrança. Auxiliam trabalhadores(as) juridicamente, explicam como devem ser feitas contratações e rescisões, negociam convenções coletivas, entre outras demandas. Em suma, os sindicatos dos trabalhadores(as) domésticos(as) que atuam em todo o país realizam um papel de garantidor de direitos.
Maria Izabel, como presidenta do sindicato no município do Rio de Janeiro destaca:
O que mais atendemos nos sindicatos dentro das nossas capitais são trabalhadoras domésticas que trabalham sem que os empregadores cumpram as leis trabalhistas. As trabalhadoras domésticas não só no Rio de Janeiro, como também em outros estados… Nós temos vários sindicatos no Brasil. E acontece a mesma coisa! É um absurdo o que acontece com essa categoria, cuja maioria são mulheres — há homens também na profissão de doméstico, mas a maioria são mulheres.
Déficit educacional e seus desdobramentos
Além da importante presença da sra. Maria Izabel, contamos com outra participação agregadora da sra. Ivone Rocha, que falou sobre um problema histórico e que influencia diretamente na relação desses trabalhadores(as) com seus direitos, os problemas educacionais:
As empregadas domésticas — não todas, mas a maioria, que pelo menos eu conheço —, são analfabetas, ou semianalfabetas. Que não tiveram direito de estudar, pois tiveram que trabalhar, ou vieram de outros estados. E fizeram até a segunda série, não completaram o ensino fundamental. Me colocando como essas pessoas, a gente trabalha o dia todo, sai de casa cedo, pega várias conduções para chegar no trabalho. E você volta, cuida da casa, cuida de filho, cuida de tudo; todo dia, a mesma coisa. Então, você não tem nem tempo para procurar leis, as mulheres já estão cansadas, estão exaustas.
Um caso tão importante quanto triste lembrado por Ivone Rocha mostra muito bem como boa parte da nossa classe média enxerga esses trabalhadores(as). São empregadores que não possuem nenhum compromisso com o bem estar de seus funcionários, representam uma elite atrasada e preconceituosa. Conta Ivone Rocha:
Eu trabalhei em uma casa, onde uma patroa… — aquilo me doeu muito! — ela falou como se fosse pra mim, ela não falou exatamente comigo. Ela falou: “Fulana trabalha de faxineira. Não sei pra que precisa de celular”. Olha a mentalidade das pessoas! E quantas coisas a gente ouviu e continua ouvindo! Isso não foi no século passado: faz apenas alguns anos. Se a gente tivesse tido direito à comunicação, seria muito diferente, eu acho. Em tudo precisa de comunicação para se saber e entender.
Ivone rocha, conta outro caso da exploração moderna:
Eu conheço uma menina, ela tem 37… 38 anos. E trabalhava em uma casa. Isso, no ano passado. Ela fazia faxina, tinha de passar dois cestos de roupas lotados, limpar a cozinha toda, fazer comida e deixar congelada para uma semana, isso tudo em um dia. Então, isso é uma escravidão, em que os senhores continuam burlando tudo e te pagando R$ 100,00 pra fazer todo o serviço. Ou você faz, ou não trabalha. É tanta gente querendo trabalhar que eu tenho que fazer. Eu mesmo já passei por situações… Se você pagasse duas passagens, o patrão não queria. Eu trabalhei durante 12 anos; eu ia da Gávea a Ipanema andando e voltava. Não são coisas da época da escravidão, aconteceram agora!
Marias do Brasil
Maria Izabel é integrante do grupo teatral Marias do Brasil e ela destaca a importância desse coletivo na formação de mulheres, em sua maioria formadas por nordestinas e empregadas domésticas:
Eu sou do grupo de teatro Marias do brasil. É um grupo de mulheres e trabalhadoras domésticas. Eu sou da segunda geração; a maioria das mulheres eram trabalhadoras domésticas que vieram do Nordeste. O grupo de teatro foi criado com a metodologia do teatro do oprimido. O teatro do oprimido possui uma metodologia que trabalha com histórias reais do grupo. Então, quem eram essas trabalhadoras domésticas? Eram mulheres nordestinas, que vieram trabalhar em casas de famílias no Rio de Janeiro e que foram para uma escola noturna, para educação do EJA. Assim que elas descobriram as escolas, as patroas davam mais tarefas no final da tarde para elas não frequentarem a escola. Então, esse grupo foi criado com histórias reais. As trabalhadoras levavam suas histórias para a peça de teatro: a carteira não assinada; o assédio moral; assédio sexual. Isso tudo foram as histórias criadas pelas Marias do Brasil.
Aplicativos e pandemia
Nos últimos anos, acompanhamos uma precarização nas relações trabalhistas. Em quase todas as categorias observa-se o crescimento do que conhecemos como a “uberização” do trabalho. Trabalhadores “vendem” seus serviços de forma independente, sem intermediação, geralmente via internet. Essa nova dinâmica acarretou uma multidão de trabalhadores(as) informais, sem garantias trabalhistas e geridos por determinados meios técnicos. O desemprego é um fator preponderante para o crescimento desses serviços: as pessoas se arriscam para possuírem uma renda mínima e sobreviver.
Sobre essas relações atuais, Maria Izabel afirma:
Antigamente, nós íamos nas agências de emprego e elas nos colocavam nas empresas. Era normal. Mas o que está acontecendo agora? As trabalhadoras vão às agências de emprego e elas não são contratadas pelo empregador; elas são contratadas para trabalhar e uma parte dos salários dessas trabalhadoras fica com a agência. Isso é uma forma de desqualificar a profissional. E outra também: alguns empregadores estão forçando praticamente a tirar o MEI (Micro Empreendedor Individual). Muitas trabalhadoras nem sabem o que isso significa. Eles despedem a trabalhadora doméstica e quando a pessoa vai questionar os diretos, aí eles alegam que a trabalhadora é empresária e não possui direitos!
Estamos atravessando uma pandemia que vitimou milhares de pessoas no país e a doença afetou todas as áreas. O desemprego teve um forte crescimento, a gestão da pandemia foi desastrosa. O governo federal negligenciou medidas de prevenção, atrasou a compra de vacinas e pregou o negacionismo. Todo esse caos social afetou diretamente uma categoria com tantos problemas como os trabalhadores(as) domésticos(as), uma categoria vulnerável, extremamente explorada e precarizada. Esses trabalhadores(as) atravessaram toda a pandemia se arriscando para cuidar das casas de seus empregadores, outros(as) estão desempregados(as), sobrevivendo sem o mínimo, abandonados à própria sorte.
Jean Dantas* é professor de História e faz parte da Rede de Comunicadores do NPC
Edição de Texto e revisão: Moisés Ramalho, jornalista e antropólogo.