Por Sérgio Domingues
O papel da luta sindical
Segundo a mais clássica formulação de Lênin, os sindicatos “são centros organizadores de luta, são escolas de socialismo”. Antes dele, Engels afirmara algo parecido. Em “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”, referiu-se aos sindicatos como “escolas militares”, cuja melhor arma era a greve. E em “A Ideologia Alemã”, livro escrito junto com Marx pouco depois, ele afirma:
“(…) mesmo uma minoria de operários que se una para paralisar o trabalho se vê rapidamente obrigada a adotar uma atitude revolucionária”.
No entanto, cerca de vinte anos depois, Marx seria menos otimista em relação às entidades que representavam os interesses dos trabalhadores. Em “Salário, Preço e Lucro”, de 1865, ele escreveu, referindo-se à luta sindical:
“A classe operária não deve exagerar a seus próprios olhos o resultado final destas lutas diárias. Não deve esquecer-se de que luta contra os efeitos, mas não contra as causas desses efeitos. Que logra conter o movimento descendente, mas não fazê-lo mudar de direção. (…) A classe operária deve saber que o sistema atual, mesmo com todas as misérias que lhe impõe, engendra simultaneamente as condições materiais e as formas sociais necessárias para uma reconstrução econômica da sociedade. Em vez do lema conservador de: ‘Um trabalho justo para uma jornada de trabalho justa!’ deverá inscrever na sua bandeira esta divisa revolucionária: ‘Abolição do sistema de trabalho assalariado!’”
Essa mudança no tom otimista quanto aos sindicatos aconteceu porque o papel deles na luta de classes não era mais o mesmo. Nos anos 1840 do século 19, por exemplo, os sindicatos representavam uma ameaça à burguesia na Inglaterra. Nos anos 1860, seu papel já havia mudado. A adaptação à ação sindical como elemento de pressão apenas para a valorização da força-de-trabalho no jogo da oferta e procura já se fazia notar.
Ou seja, o papel dos sindicatos não está pronto e definido como “escolas de socialismo”. Trotsky afirma mais ou menos isso ao destacar que eles “reúnem não só a vanguarda, mas também uma pesada retaguarda”. Gramsci seria menos sutil ao afirmar, em 1920, que o sindicato tem “um caráter essencialmente competitivo, não comunista. Não pode ser o instrumento para uma renovação radical da sociedade”. A afirmação foi feita sob o peso da recusa da burocracia sindical da época em assumir a liderança do amplo movimento que produziu a ocupação das fábricas no norte da Itália, em setembro de 1920.
O que disse Trotsky sobre a “pesada retaguarda” seria traduzido por Tony Cliff com a seguinte imagem:
“Desde que trabalhadores em várias indústrias ganham salários diferentes e trabalham sob condições diferentes, os sindicatos unem os trabalhadores em grupos distintos e mantêm cada grupo separado um do outro. A geografia do sindicalismo reflete a geografia do capitalismo”.
Tais citações não têm o objetivo de condenar as ações sindicais ao estreito horizonte capitalista, mas de mostrar como as entidades que as organizam estão em disputa pelas classes
E seria exatamente Gramsci a dar um caráter mais claro a essa disputa, ao formular o conceito de hegemonia.
Sindicatos como aparelhos privados de hegemonia
Contribuição gramsciana fundamental para o marxi
smo, a idéia de hegemonia diz respeito à liderança cultural e ideológica de uma classe sobre as outras. Em termos mais simples, poderíamos chamá-la de “convencimento”. Mas, não se trata de um convencimento baseado apenas em argumentações, nem relativo a questões pontuais. É um processo que envolve elementos culturais que vão desde os costumes mais cotidianos até a defesa deste ou daquele tipo de sociedade. Vão das religiões e imperativos morais numa certa sociedade até novelas, filmes, mensagens publicitárias e músicas fartamente veiculadas pela grande mídia. São os preconceitos contra pessoas e povos e também valores como igualdade e liberdade, mesmo que estes jamais saiam do nível do discurso.
Para assegurar a existência e a validade de sua dominação, a burguesia utiliza o Estado. Também chamado por Gramsci de aparelho coercitivo. Basicamente, o governo, o parlamento, os tribunais, os serviços públicos, as escolas públicas, o exército e a polícia. São aparelhos que usam tanto a repressão e a violência, como a aplicação das leis. No entanto, a idéia de uma dominação somente através do Estado não é suficiente para explicar a manutenção do poder burguês. Não é suficiente, em primeiro lugar, porque esse tipo de dominação não nasceu simplesmente da vontade da burguesia, mas das lutas e negociações que fizeram parte de sua chegada ao poder e sua permanência nele.
O sufrágio universal ou a igualdade de todos perante a lei, por exemplo, foram muito mais conseqüência da pressão popular sobre a burguesia do que fruto de iniciativas dela. Por outro lado, a manutenção de antigos preconceitos, formas de ver o mundo e costumes que se mostraram úteis à dominação burguesa também foram mantidos e reforçados. É o caso de critérios como os de posses e de hereditariedade para fazer jus a direitos como o sufrágio universal e o acesso a leis. Em segundo lugar, o poder do Estado não seria possível sem um cenário que justificasse as suas ações. Presidentes, governadores, ministros, juizes, policiais, tanques e canhões são bastante intimidadores. Mas não bastam por si sós. Para que sua ação seja eficiente é preciso convencer a grande maioria da população de que são necessários. De que têm a autoridade suficiente para agir com dureza quando necessário.
O que confere essa autoridade é o processo de convencimento mais geral da burguesia através do que Gramsci chamou de aparelhos privados de hegemonia. Seriam as escolas, igrejas, partidos, sindicatos, jornais, associações e, mais recentemente, as Organizações Não-Governamentais (ONGs). São aparelhos porque funcionam como “comitês de apoio” à dominação. São privados porque não são oficiais, do governo ou do Estado. E exercem poder hegemônico porque reproduzem valores, costumes, normas morais, que justificam as coisas tal como estão, mas não o fazem de forma automática e explícita. Elas impõem um modo de ser e de se relacionar que parece natural. E seu compromisso é com a ordem capitalista em geral, não com o governo de plantão, com maiorias parlamentares ou regimes políticos.
Por um lado, essa condição dá a esses aparelhos margem de manobra para fazer o jogo da burguesia com muito mais eficiência. É o caso de uma FIESP, que pode criticar um governo ou um parlamento que ajudou a eleger por não cumprirem seu papel a contento na defesa dos interesses dos empresários. Por outro lado, muitos desses aparelhos estão sujeitos às disputas entre as classes ou podem assumir formas que questionem o poder constituído. E é este exatamente o caso dos sindicatos. Eles podem tanto desempenhar papéis cruciais para a construção de alternativas revolucionárias, como podem ser liderados por burocracias para apoiar a ordem conservadora. Um exemplo bastante conhecido desse último perigo foi a greve dos caminhoneiros contra o governo Allende, no Chile, em 1973.
O papel da imprensa operária
Ora, se os sindicatos são aparelhos abertos à disputa, um caminho seguro para perdê-los para a burguesia e seus agentes é precisamente manter sua ação limitada ao nível da lutas econômicas. Ou, como disse Marx, da “luta contra os efeitos, mas não contra as causas desses efeitos”. Fazer isso seria respeitar a “geografia” imposta não apenas pela produção capitalista, mas pela dominação burguesa. Seria aceitar a divisão da classe trabalhadora em ramos e setores econômicos, gêneros, etnias, nacionalidades, confissões religiosas etc.
A única forma de resistir a isso é aceitar a disputa para além das questões econômicas. Se no nível econômico fica patente a exploração que mantém o capital em funcionamento, é nele também que se esgotam rapidamente as possibilidades de ruptura. É verdade que a possibilidade de intervenção da classe trabalhadora é poderosa quando paralisa setores estratégicos da economia. Por outro lado, uma ofensiva nesse terreno tem poucas chances de sustentar sem ações no plano político e, principalmente, no social. E neste último está o cenário adequado para a disputa de hegemonia.
Grosso modo, as condições econômicas formam o terreno mais sólido e amplo. Estabelecem os limites gerais da disputa. As condições sociais são mais específicas. Mostram por onde os atores em disputa marcam suas posições, ganham ou perdem terreno. Por fim, as conseqüências políticas são resultado do encontro das dimensões econômicas e sociais. Elas podem, no entanto, assumir papel determinante na modificação dos terrenos econômico e social. Uma ditadura, por exemplo, dá à dimensão política papel principal em todo o cenário. Pode mudar todo o modelo econômico e influenciar o quadro social daí resultante. O caso da ditadura chilena implantando o neoliberalismo é exemplar. O problema é que muito raramente uma ditadura é produto da dimensão política apenas. Ao contrário, dificilmente um cenário favorável a ações políticas decisivas seria possível sem uma atuação anterior de fatores econômicos e, principalmente, sociais.
Ou seja, a economia apresenta condições importantes, mas muito gerais. Os movimentos feitos no nível político são mais resultado do que causa. Portanto, o nível com peso mais determinante seria o social. E este é o terreno em que a disputa da hegemonia é mais decisiva.
É preciso privilegiar a ação no terreno da disputa hegemônica, em busca da liderança ideológica e cultural da sociedade. Para isso, deve-se lançar mão do patrimônio das lutas dos trabalhadores, em que consta como elemento valioso o acúmulo teórico a partir de dezenas de experiências revolucionárias e milhares de frentes de luta. E defender os valores que se construíram nesses conflitos, como o da solidariedade de classe e combate à exploração e opressão na busca da justiça social, liberdade humana e defesa da vida no planeta.
A tradição marxista defende a organização partidária como a forma mais adequada para organizar as fileiras do exército proletário. E sustenta que suas armas mais eficientes são as idéias propagandeadas na forma de panfletos, jornais, cartilhas e livros.
A imprensa dos trabalhadores no Brasil
No Brasil, as primeiras experiências de resistência operária, propriamente dita, obviamente não conheciam as formulações de Gramsci sobre hegemonia. Mas, a tradição anarquista vinda da Europa trazia consigo o respeito ao peso que tem a luta cultural e ideológica. Evidências disso podem se encontradas nos registros de constantes festas libertárias, no combate a todo tipo de autoridades e centralismo, na denúncia do clero e da religião, no ódio aos patrões e ao Estado. No entanto, a repulsa dos anarquistas em relação a organizações hierárquicas e centralizadas, assim como sua recusa em atuar no campo institucional-parlamentar, levou esses setores a negar a organização partidária como instrumento de organização. Sua atuação privilegiou desde o início a atuação sindical. Foram responsáveis pelas primeiras organizações sindicais e pela criação da primeira estrutura a reuni-las. Não em uma central sindical, mas em uma confederação. A Confederação Operária Brasileira (COB), fundada em 1908.
No entanto, se os anarquistas não aceitavam o partido político como forma organizativa para seu exército, compartilhavam com os socialistas a idéia de que a imprensa era a grande arma de sua artilharia sindical. Foi assim que fundaram diversos periódicos, cujos nomes não deixavam dúvidas quanto a sua disposição de combate: “O Demolidor”, “O Proletário”, “O Combate”, “O Despertar”. Mas o jornal mais famoso e longevo da tradição anarquista na época foi “A Voz do Trabalhador”, que seria impresso de 1908 até a segunda década do século 20, ainda que com periodicidade irregular.
Eram publicações que procuravam contestar os valores dominantes através de textos demolidores e imagens literárias fortes. Mas, não apenas literárias. É famosa a capa de “A Voz do Trabalhador” do dia 1º de Maio de 1913. O órgão da COB apresenta em sua capa uma ilustração de página inteira: Trata-se de um operário musculoso segurando uma enorme marreta usada para romper as correntes que prendiam seus membros. Com os braços livres e abertos, ele olha para um horizonte onde aparece um sol com a inscrição “Liberdade”. Pisa sobre caveiras e nelas estão escritas as palavras: burguesia, aristocracia, clero, militarismo e capitalismo. Um verdadeiro resumo do programa anarquista expresso numa imagem.
Tal como neste caso, as publicações anarquistas não se limitavam a noticiar as lutas econômicas, ainda que estas tivessem peso considerável na pauta. Sempre que possível, as publicações procuravam dar combate aos valores da burguesia, identificados principalmente com a família nuclear, a igreja, a cultura comercial, o militarismo, as hierarquias, as leis, e, claro, com as informações vindas da imprensa burguesa. Esta, por sua vez, via de regra, adotava em relação aos operários, suas lutas e campanhas a mesma atitude que a classe dominante da época. Movimentos sociais deviam ser tratados pelas “patas dos cavalos” das forças da repressão.
Greves, manifestações e campanhas sindicais eram consideradas obra de criminosos, inimigos estrangeiros, promotores da desordem etc. Mas isso apenas quando as ações sindicais conseguiam chamar atenção o suficiente para não serem ignoradas. Em geral, os jornais da grande imprensa ocupavam-se apenas com as rivalidades entre a própria classe dominante. Eram polêmicas verborrágicas, cheias de ataques maliciosos, mas que, no fundo, quase nada representavam em termos de projetos políticos antagônicos. Ao contrário, as disputas estavam ligadas à ocupação de cargos e aumento de prestígio pessoal. Era a tradicional disputa entre conservadores e liberais na qual, lembrando as palavras famosas de Machado de Assis, era difícil distinguir uns de outros. Bastava que trabalhadores mobilizados ameaçassem a ordem que defendiam para esquecerem seus desentendimentos e se unirem na condenação aos sindicalistas “baderneiros, violentos, antidemocráticos”.
Um caso típico foi a greve geral de 1917,
Mas, um dos mais graves problemas dos anarco-sindicalistas era a recusa da atividade partidária e de qualquer a
ção parlamentar. Ou seja, se corretamente intervinham na esfera econômica e disputavam no nível social, não tinha qualquer disposição em relação a atuar no terreno político-partidário. Esta deficiência se agravou diante de um acontecimento que abalaria o século 20: a Revolução Russa de 1917. Afinal, tratava-se da tomada do poder político por quem se reivindicava socialista.
O acontecimento provocou uma reviravolta tamanha que converteu quase instantaneamente importantes militantes anarquistas ao marxismo. Para se ter uma idéia, dos onze fundadores do Partido Comunista do Brasil, surgido em 1922, apenas o alfaiate Manuel Cendón se reivindicava marxista. Os outros dez eram militantes vindos do anarco-sindicalismo.
Muitos anarquistas, porém, não aceitaram a dissidência em suas fileiras sem combate. O problema é que no anseio de declararem suas posições, aceitam explicitá-las justamente em jornais burgueses como “Jornal do Brasil”, “Correio da Manhã” e “A Pátria”. Ao mesmo tempo, a burguesia fez aprovar a lei Adolfo Gordo (Lei nº. 4.743, de 1923), instituindo a censura à imprensa. Na verdade, uma censura restrita à imprensa operária.
Por isso, um jornal do partido recém-criado somente viria à luz em 1925. Era “A Classe Operária”, que também iniciava uma nova fase do movimento sindical. Era sua partidarização. Ainda tímida naqueles tempos, a fusão entre imprensa sindical e partidária se acentuaria nas décadas seguintes, e garantiria ao PCB o monopólio da propaganda operária até o golpe militar de 1964.
A vida legal do novo partido, no entanto, só duraria até 1927. E, aos poucos, o movimento operário foi sendo deslocado da cena pelas divergências internas da classe dominante quanto ao o papel do país na ordem capitalista internacional. De um lado, os latifundiários defendendo uma economia basicamente agrário-exportadora. De outro, industriais a favor do investimento no setor secundário da economia.
O conflito foi resolvido com o golpe de 1930, que colocou Vargas na Presidência, liderando um condomínio de poder que acomodou os interesses das frações agrária e industrial. O outro lado desse acordo foi a combinação de repressão e cooptação da classe trabalhadora pela legislação trabalhista e, principalmente, pelo atrelamento dos sindicatos ao Estado. Um processo que tomou a metade da década de 1930, enfraquecendo as lideranças tanto anarquistas, como comunistas e fortalecendo o sindicalismo pelego. A partir do golpe do Estado Novo, em
Somente após a 2ª Guerra, a imprensa operária viveria um renascimento. Derrotado o fascismo na Europa e terminada a ditadura varguista, os comunistas se apresentavam como a grande referência de resistência para amplas camadas da população. E isso se expressou na forte presença de sua imprensa.
O PCB criou um leque de publicações. Revistas políticas, de cultura, de economia, femininas. Em 1946, o partido tinha oito jornais diários. Entre eles, “Tribuna Popular” (RJ), “Folha do Povo” (RN), “Jornal do Povo” (AL), “Notícias de Hoje” (SP), “Momento” (BA), “O Democrata” (CE), “Folha do Povo” (PE). Havia jornais comunistas em quase todas as capitais: Porto Alegre, Curitiba, Belém, Salvador etc. Eram jornais vendidos em bancas e também distribuídos ou vendidos em bairros populares pelos militantes do partido. Uma verdadeira lição de disputa da hegemonia, não fosse por um problema: a linha política subordinada aos interesses do Estado Soviético.
Os anarquistas caprichavam na intervenção nas lutas econômicas e no nível social e cultural, mas limitavam sua ação política ao negar a organização partidária. Os comunistas procuravam dar conta desses três níveis com competência. Mas na instância política, de caráter mais decisivo, recuavam diante das orientações stalinistas de convivência pacífica com as burguesias nacionais. Tal orientação se manifestava na linha fortemente doutrinária da imprensa. E se o PCB conquistou um grande respeito entre os trabalhadores, este respeito foi desaparecendo à medida que o partido deixou de falar a língua deles e começou a seguir à risca as orientações de Moscou, sem contestação.
Um exemplo disso foi a greve dos 300 mil de São Paulo, em 1953. Nessa altura, a linha do PCB era contrária a qualquer aliança com militantes do movimento social. Mas a militância das fábricas começou a seguir rumos próprios e se aliou a militantes trabalhistas e católicos nas próprias empresas em que trabalhavam. Esse trabalho levou à greve geral de março e abril de 1953, que durou um mês e foi vitoriosa.
Durante o movimento, a publicação “Notícias de Hoje” teve papel importante. Segundo Jacob Gorender, chegou a publicar 25 mil exemplares por dia. Tornou-se o porta-voz dos grevistas, pois era o único jornal que acompanhava as assembléias e os piquetes. Quando a greve acabou, o jornal voltou a seus 3 ou 4 mil exemplares diários de sempre. Ainda segundo Gorender, isso aconteceu “porque o leitor comum queria um diário que tivesse boa seção de esportes, notícias policiais, política nacional e internacio
nal, cinema e outras diversões. Essas coisas que não tínhamos condições de oferecer”. Ou seja, a imprensa partidária não estava em condições de fazer a disputa da hegemonia. De assumir a liderança cultural e moral da sociedade em favor dos interesses da classe trabalhadora. Restringia seu papel ao nível econômico. Importante, mas insuficiente.
Uma razão importante para essa insuficiência pode ser a incorporação da imprensa sindical à estrutura partidária. Se privilegiar as lutas econômicas em prejuízo da luta política pode desarmar a classe trabalhadora na luta pelo poder, o atrelamento das estruturas sindicais às necessidades partidárias também pode matar a capacidade de luta dos trabalhadores. No caso da greve dos 300 mil, a imprensa partidária mostrou-se viva num momento de luta que subverteu as orientações partidárias. Mas minguou ao voltar ao seu leito normal, à deriva de ordens ditadas de cima para baixo.
Outro exemplo muito conhecido desse distanciamento entre trabalhadores e cúpula partidária aconteceu no segundo governo de Getúlio Vargas. Apesar do caráter vacilante de Vargas, as forças que se opunham a ele eram ligadas a setores da extrema direita. Naquele momento as forças populares tinham que se colocar contra os golpistas e em defesa da liberdade de organização e das regras democráticas.
Ao contrário de fazer isso, o PCB assumiu oposição aberta a Getúlio. Essa postura entrava em choque com a população, que via no governo um defensor dos pobres. Não se tratava de alimentar ilusões em relação a Vargas. Era preciso apontar a incapacidade de um governo burguês em levar adiante medidas realmente populares. Mas também era necessário lutar contra o golpe em andamento.
Pois bem, no dia seguinte ao suicídio de Vargas, o jornal do PCB “Imprensa Popular”, de 24 de agosto de 1954, trazia a manchete: “Abaixo o governo de traição nacional de Vargas”. O jornal havia sido impresso na noite anterior, antes da notícia da morte do presidente. O PCB teve que recolher às pressas o periódico, para não ser alvo da fúria popular. A população carioca apedrejou a sede da “Tribuna da Imprensa”, jornal que defendia a deposição de Vargas. O mesmo poderia acontecer com a sede do jornal comunista. Um exemplo claro da distância entre o que o partido defendia e os sentimentos da população. E o pior é que, da noite para o dia, o PCB passou a considerar Vargas um nacionalista progressista.
Essas idas e vindas do partido eram motivadas pela obediência cega às orientações abstratas e autoritárias de Moscou. E continuaram mesmo sob o comando dos sucessores de Stálin, já que a morte deste último não significou o fim de seus métodos e concepções, nem após o Congresso de 1956, que condenou a atuação do ex-líder soviético. O que não mudava era a crescente ilusão do PCB em setores da burguesia, que eram considerados progressistas e estariam dispostos a romper com o latifúndio e o imperialismo, assim que a situação permitisse. Ou seja, a correta importância dispensada pelo partido à imprensa, à formação cultural e ideológica acabava a serviço de uma política distante da autonomia que a classe trabalhadora deve manter desde que Lênin identificou no imperialismo a fase histórica em que a burguesia já não consegue desempenhar nenhum papel revolucionário.
Por outro lado, esse posicionamento político trazia graves danos à linha editorial das publicações comunistas. Como disse Gramsci, “a verdade é revolucionária”. Diferente da imprensa dos patrões, para a imprensa operária a coerência na análise objetiva da realidade é vital. À burguesia interessa falsear a realidade porque ela apóia sua exploração na fraude da mais-valia e sua dominação na disseminação dos preconceitos. Mas, a imprensa do PCB escondia seus erros e mudanças de posição por trás de uma retórica triunfalista. Exagerava as dimensões de sua atuação e projetava situações favoráveis, independente das dificuldades da situação política e das ofensivas da burguesia. Transformava dirigentes em heróis e semideuses, distantes e acima da militância. Tais manobras e expedientes acabavam sendo aceitas pela maioria da militância por sua lealdade ao PCB, mas tendiam a embotar sua capacidade de análise e iniciativa de luta.
Foi assim que se chegou ao golpe militar de 1964 sem que as reações esperadas pelo PCB, por parte do movimento sindical e até de oficiais das forças armadas, se concretizassem. A partir daí, seguiram-se a perseguição aos militantes de esquerda, ativistas e lideranças sindicais. Os militares se encarregaram de sufocar qualquer propaganda, aberta ou não, e a imprensa de esquerda e sindical foi calada. E depois do AI-
Durante os anos de chumbo, apenas algumas publicações enfrentaram heroicamente os censores, como foi o caso do “Movimento”, “Opinião”, “Pasquim”, “Versus”, “Em Tempo”. Era a chamada imprensa alternativa. Esse quadro somente começaria a mudar com as contradições em que se meteu a ditadura após a crise do petróleo. Num primeiro momento, foram os estudantes que começaram a exigir democracia. Depois, a partir de 1978, veio a onda de greves de São Paulo e do ABC, principalmente entre os metalúrgicos. Essa situação permitiu um ressurgimento da imprensa de caráter mais partidário. As publicações mais conhecidas eram a “Tribuna da Luta Operária”, do PCdoB; “O Companheiro”, do Movimento de Emancipação do Proletariado (MEP); “O Trabalho”, do grupo Liberdade e Luta e a “Voz da Unidade”, do PCB. No entanto, também começa a surgir uma imprensa mais tipicamente sindical, ainda sem vínculos partidários e fora da área de influência dos PCs. A fundação do PT, em 1980, preencheria essa lacuna. Mas, a criação da CUT três anos depois, como central sindical suprapartidária, ainda que sob forte influência petista, possibilitaria o fortalecimento de uma imprensa sindical for
te e com relativa autonomia frente aos partidos. Já não eram veículos sob comando tão centralizado das direções partidárias, como acontecera sob o PCB.
A CUT motivou o surgimento de dezenas de jornais e boletins pelo país. O jornal “Tribuna Metalúrgica”, de São Bernardo, durante mais de 15 anos teve uma tiragem diária de 120 mil exemplares. No final da década de 1980, havia seis jornais diários de sindicatos cutistas. A CUT reunia a maior redação do país, se considerarmos todos os jornalistas das entidades a ela filiadas. Era um poder de fogo e tanto. Poderia ser a base para construir um jornal nacional diário para fazer a disputa das consciências. Lutar pela liderança cultural e ideológica da sociedade. Isso, contudo, não aconteceu. Por motivos que não cabem nesse artigo, a CUT, no auge de sua capacidade de luta e influência, jamais conseguiu dar esse passo decisivo. Enquanto isso a grande imprensa fazia seu trabalho. Foi o caso do movimento das Diretas, de 1984, em que a “Folha de São Paulo” assumiu a frente da campanha. Ou da própria Rede Globo, no início dos anos 1990, que se apressou a divulgar as manifestações pela renúncia de Collor, mesmo tendo sido uma das principais responsáveis por sua eleição, apenas alguns anos antes.
Estas foram importantes batalhas perdidas na disputa de hegemonia por parte da imprensa de esquerda. Em especial, a nova imprensa sindical, surgida das centenas de lutas contra pelegos e patrões na passagem das décadas de 1970 para 1980. O resultado foi uma ofensiva sem precedentes da burguesia na década de 1990, agora unida em torno do projeto neoliberal. Momento em que a população foi bombardeada por valores como o individualismo, a competição, o desprezo pelas conquistas sociais, a defesa da destruição dos serviços públicos e a negação das ações coletivas. Criou-se o contexto adequado para permitir os ataques dos patrões e as derrotas que tornaram ainda pior a vida da grande maioria dos trabalhadores e trabalhadoras do país. Para fazer justiça, é importante citar as iniciativas de vários sindicatos da CUT no sentido de editar publicações denunciando o neoliberalismo. Mas, infelizmente, a grande maioria dessas iniciativas partiram de sindicatos de funcionários públicos, setor que foi diretamente atingido pelas primeiras medidas do neoliberalismo no Brasil. Ou seja, a exceção confirma a regra. E esta reafirma o corporativismo.
Muito provavelmente, grande parte da responsabilidade dessa derrota cabe ao PT. Os sindicatos carregam “uma retaguarda atrasada”, nas palavras de Trotski. São eles que estão limitados pela “geografia do capitalismo”, segundo Cliff. Então, é dever dos partidos de esquerda romper essas limitações. Na época, o PT era o mais indicado para cumprir esse papel. Como partido nascido dos movimentos reais dos trabalhadores, possuía credenciais para desempenhar essa tarefa. No entanto, nem mesmo deu a devida prioridade para a criação de um jornal partidário nacional diário, com ampla distribuição e pauta adequada aos anseios dos trabalhadores. O mais próximo que chegou disso foi com o “Brasil Agora”, jornal que durou cerca de um ano.
Isso pode ter acontecido por causa do leque variado que compunha o coletivo partidário. De qualquer maneira, o fato é que a partir do início da década de 1990, o PT preferiu ocupar a grande mídia. Na mesma medida em que os núcleos de base foram fechados, o partido se limitou a ocupar os horários eleitorais gratuitos, as prefeituras e governos. Suas únicas publicações regulares são a revista “Teoria & Debate” e informativos das instâncias estaduais do partido. Publicações com pequena tiragem, voltadas para o debate interno, teóricas e de difícil leitura pela grande maioria da população. Se não é possível dizer que isso é a causa da atual decadência do PT, há muito tempo já aparecia como um sintoma bastante claro.
O crescimento do papel da imprensa como aparelho privado de hegemonia
Nesse cenário todo há, ainda, um agravante. Nos últimos 50 anos, verificou-se um processo de enorme fortalecimento de um tipo específico de aparelho privado de hegemonia. Estamos falando da grande mídia. Se as igrejas perderam força em sua influência direta, elas a vêm retomando utilizando-se exatamente das TVs, rádios e jornais próprios. Se a escola sempre formou os futuros adultos, agora divide esse papel, em desvantagem, com a programação de rádios, tevês, filmes, publicações que impõem verdadeiros padrões de consumo, comportamento e formas de enxergar a realidade. Por outro lado, sindicatos, partidos, associações e outras organizações que tentam questionar a dominação burguesa estão cada vez mais reduzidos à impotência diante da enorme concentração do controle das comunicações nas mãos de poucos empresários do setor.
Autores como Venício Lima, afirmam que as empresas de meios de comunicação são aparelhos privados de hegemonia que ficaram tão poderosos que atualmente agem como tendências de um grande partido de apoio à burguesia. E para isso é fundamental uma de suas características. Trata-se da capacidade de monopolizar a distribuição de praticamente toda a informação que chega às pessoas. Como vivemos numa sociedade em que a vida social depende muito da informação em grande escala, a grande mídia controla esta última de maneira esmagadora. Ao mesmo tempo, os lucros dessa verdadeira indústria dependem do funcionamento tranqüilo do capitalismo. E é para isso que ela trabalha.
Tudo isso significa que aumentou a capacidade da classe dominante de moldar a realidade a seu favor. Primeiro, porque as informações que chegam à maioria das pessoas estão carregadas de valor ideológico. Segundo, sendo assim, elas podem não ser verdadeiras, ou podem estar distorcidas ou incompletas. Sua própria presença, no entanto, acaba colaborando para moldar a realidade segundo os interesses dos setores dominantes. Uma notícia sobre algum evento pode ser falsa, mas as conseqüências causadas por essa falsidade podem ser muito reais. Foi o caso da eleição de Collor, em 1989, em que a mentira foi utilizada amplamente por seus apoiadores.
Assim, o combate na arena da informação é cada vez mais fundamental para os setores contra-hegemônicos. E conta com armas sofisticadas. Vai desde uma revista panfletária como a “Veja” até veículos para públicos específicos, que não podem receber informações ostensivamente falsas sobre alguns aspectos importantes da realidade. É o caso dos jornais Gazeta Mercantil e do Valor Econômico, voltados para empresários e que procuram divulgar números, dados e informações condizentes com a realidade.
Outro terreno muito importante é o ideológico-cultural. “O povo não é bobo. Fora a Rede Globo”, gritávamos nos anos 1980. Mas, tampouco são bobos os gerentes da mais poderosa emissora do país, assim como suas concorrentes. Elas vêm exercendo seu papel de aparelho privado de hegemonia de forma bastante competente. Cuidando dos interesses do Capital, atacando as lutas e setores populares, espalhando visões preconceituosas contra pobres, negros, mulheres, militantes sociais. Cercando os governos de esquerda, mesmo quando estes se mostram tão dóceis como o atual. Sofisticando suas publicações, programas, novelas, filmes para manter a maioria da população prisioneira de sua visão de mundo.
E para dar o bom combate a esse inimigo tão poderoso, nós também temos que utilizar nossos aparelhos privados de hegemonia. Os sindicatos figuram, sem dúvida, entre os mais poderosos deles. Mas para agir em nosso favor sua imprensa é fundamental.
No final do século 19, Engels chamava a atenção para as dificuldades que as lutas populares passaram a ter com o desenvolvimento da tecnologia militar:
“Até 1848, podia-se fabricar sozinho, com pólvora e chumbo, a munição necessária. Agora, isto não é mais possível ou se mostra bastante problemático. De todo modo, as eventuais, rudimentares armas populares, até numa luta a pequena distância, não sustentam absolutamente o confronto com os fuzis de repetição do Exército”.
Este trecho foi lembrado por Domenico Losurdo para compará-lo a uma passagem de “A Ideologia Alemã”:
“As idéias da classe dominante são, em cada época, as idéias dominantes. Isto é, a classe que é a potência material dominante é ao mesmo tempo sua potência espiritual dominante. Com isto, a classe que detém os meios da produção material dispõe, ao mesmo tempo, dos meios da produção intelectual, de modo que a ela, no conjunto, estão submetidas às idéias daqueles a quem faltam os meios da produção intelectual”.
Ora, se a modernização bélica torna um sonho romântico, a tomada do poder através de meios puramente militares, os “meios materiais” de que a burguesia dispõe para submeter aqueles “a quem faltam os meios da produção intelectual”, sofisticaram-se na mesma dimensão. Assim, a utilização apenas da palavra impressa para fazer a luta contra-hegemônica é o equivalente do uso de armas de calibre 38 contra mísseis nucleares.
O atual estado das comunicações exige dos sindicatos combativos a utilização de armas mais modernas, além da informação escrita. Mas nada disso resolve se não abordarmos os múltiplos aspectos da vida social e não só o econômico.
Aqui e agora, por exemplo, não há como fazer uma publicação que realmente esteja presente no cotidiano de milhões de trabalhadoras e trabalhadores sem dar atenção especial a questões relacionadas à opressão. Ao combate ao machismo, ao racismo, a perseguições a homossexuais, aos problemas enfrentados pela juventude e pelos idosos. Não há como deixar de lado a luta ambiental, a violência, a educação, a saúde pública etc.
Ao longo desses 100 anos de sindicalismo, os trabalhadores lograram conquistar grandes vitórias. Os erros foram inúmeros, mas precisam ser entendidos em sua relação dialética com a construção de sínteses que não podem ser abandonadas. Uma delas foi, sem dúvida, o renascimento da imprensa sindical nos anos 1980, mesmo com todas as suas limitações. Tais momentos devem ser retomados como novos pontos de partida para a dura luta pela libertação da humanidade em relação a um sistema que a escraviza, aliena e constrói diariamente a barbárie denunciada por Rosa Luxemburgo. Somente a atuação unitária de mulheres e homens reunidos em suas entidades de luta e partidos políticos pode manter em nosso horizonte histórico o socialismo, alternativa que a grande revolucionária alemã contrapunha vigorosamente à solução apocalíptica do Capital.
O sindicalismo combativo precisa reorganizar seu exército renovando seu arsenal. Precisamos de programas de rádio e tevê, vídeos, músicas, internete, CDs, DVDs etc. Tudo isso, sem abrir mão do panfleto, jornal, boletim, caminhão-de-som. Armas essenciais na disputa da hegemonia. Só assim poderemos ganhar as consciência
s de milhões para a luta contra a exploração e a dominação capitalistas.
Bibliografia consultada:
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