Por Sergio Domingues
No dia 7 de fevereiro passado, o menino João Hélio, de 6 anos, morreu de forma terrível. Ele foi arrastado por vários quilômetros, preso pelo cinto de segurança ao automóvel de sua mãe, que havia sido roubado por jovens. Um deles, era menor de idade. Mais detalhes, muitos detalhes, estão em toda grande imprensa dos dias que se seguiram.
Um crime assim pode levar muitos socialistas e pessoas de esquerda a duvidarem de suas certezas. Mas, a reação dos conservadores de sempre, com seu ódio à espécie humana, ajudam a recolocar as melhores convicções de justiça social em seus lugares. O caso invadiu a grande mídia, principalmente sua parte jornalística. As manchetes não poderiam ser menos apelativas. Algumas até exigindo justiça com as próprias mãos. Mas, mesmo os veículos que fazem questão de manter a pose de moderação e racionalidade não escondiam o desejo de atingir um único alvo: o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Mais especialmente, o artigo que impede de responsabilizar criminalmente jovens com menos de 18 anos. É verdade que muitos deles entrevistam especialistas que defendem a manutenção do ECA. Mas, não se trata disso. O problema principal é por que a discussão de um crime como esse, por mais terrível que seja, precisa ter como réu principal o ECA? Afinal, existem muito outros elementos a serem debatidos num caso assim. Os jornais falaram em ausência de policiamento no local. É só comparar com o policiamento nas áreas nobres da zona sul da cidade. Bairros como Leblon e Ipanema estão entra os mais policiados do mundo. Dificilmente uma situação dessas ocorreria lá com o mesmo resultado assustador. Por outro lado, não se discutem as razões por que a maioria dos envolvidos em crimes desse tipo são jovens negros e pobres. Ao contrário, isso é dado como natural. É pobre, é negro, é criminoso. Esta é a linha de raciocínio que impera no tratamento da grande imprensa sobre a violência urbana. Se alguns jornalistas não afirmam tal coisa, seu silêncio sobre a situação dos bairros pobres das grandes cidades é suficiente para deixar que a emocionada reação popular o faça. Falando em emoção, esta é o que não falta na abordagem feita pela grande mídia. Se é justificável que pessoas comuns se emocionem, se revoltem, em casos assim, jornalistas, colunistas e outras pessoas remuneradas para trabalhar com informação não deveriam fazer o mesmo. O Jornal do Brasil, por exemplo, chegou a estampar as fotos de acusados pelo crime, perguntando: “O que eles merecem?” Não é difícil imaginar o autor da manchete com os dentes cerrados e as veias do pescoço saltando de raiva. Mas não é só isso. O capítulo do dia 9 de fevereiro de “Páginas da Vida” mostrou três freiras lendo a notícia e caindo de joelhos, para, em prantos, rezarem um “padre-nosso” e uma “ave-maria”. Num clima assim, não é difícil que se noticie em breve um linchamento em alguma parte da cidade e que tenha negros pobres como vítimas. Outra afirmação bastante repetida pela grande mídia e por muitos especialistas que ela entrevista é a de que a existência do ECA deixa impune aqueles que cometem mais crimes. Esta afirmação dificilmente é contestada. No entanto, ela é falsa. É só fazer o que a grande mídia faz toda hora com outras informações, como o índice da inflação, os juros e a cotação do dólar. Olhar para os dados. Em 2002, pesquisa feita em prontuários de internos da Febem, de São Paulo, mostrou que os crimes contra o patrimônio, como roubos e furtos, são a grande maioria. Eram 71,4%. Ainda em 2002, temos as pesquisas feita por Ilanud/SP, UNICEF e Departamento da Criança e do Adolescente do Ministério da Justiça. Elas dizem que os adolescentes infratores são responsáveis por apenas 10% dos crimes cometidos no Brasil. E mais: de cada 100.000 adolescentes, só 2,7 são infratores, enquanto, em cada 100.000 adultos, 87 são infratores (Artigo “Apostando no pior”, de Julita Lemgruber, n´O Globo de 18 de março de 2002). Em julho de 2005, a revista Fórum publicou dados da Frente Parlamentar pela Criança e Adolescente, da Câmara dos Deputados. E eles dizem que apenas 10% dos delitos envolvem jovens menores de 18 anos. Destes, cerca de 73% são infrações contra o patrimônio, enquanto apenas menos de 2% são crimes contra a vida. Mas, aceitemos o debate sobre o ECA como o principal. A grande maioria das argumentações vai no sentido de que o Estatuto impede a punição de criminosos menores de 18 anos. Em primeiro lugar, tais argumentações fazem supor que o ECA vem sendo aplicado integralmente. No entanto, isso não é verdade. O Estatuto prevê, por exemplo, a garantia de escola, lazer, informação e cultura para todas as crianças e jovens, entre outras medidas de caráter preventivo, e não repressivo. É possível afirmar que isso vem sendo cumprido em alguma grande ou média cidade brasileira? Claro que não. Por outro lado, não é verdade que o ECA não preveja a detenção de menores. Para casos mais graves, é possível manter o infrator em reclusão por até três anos. Claro que esse período de internação serve para tentar recuperar o infrator e não para fazê-lo passar por castigos pretensamente equivalentes a suas maldades, como querem muitos redatores de manchetes jornalísticas. Mas, de resto, todo o sistema de prisões tem esse objetivo. O fato de que não funcione assim, mas só piore a situação dos detentos mostra que apenas aumentar o lado repressivo do ECA não é solução. Significa continuar apostando nas unidades do tipo Febem, que transformam jovens ladrões em especialistas em violência, com dependência de drogas e bons recrutas para o crime organizado. A morte do menino foi trágica. Tragédia maior é ter servido para que a grande mídia voltasse á ofensiva contra os direitos de crianças e adolescentes. Certamente, muitos de seus gerentes esperam mais alguns episódios parecidos para continuar amaldiçoando o futuro da juventude pobre e negra do País. |