Por Lucía Nader e Marcos Fuchs*

carcerário

A tragédia no presídio de Pedrinhas, no Maranhão, onde, desde 2013, 62 pessoas foram mortas de maneira brutal, é o resultado de uma operação friamente calculada e respaldada por uma opinião pública que, de maneira perversa, aposta num sistema prisional inaceitável, ilegal e ineficiente.

Os responsáveis por tragédias assim estão entre as autoridades públicas: governadores, juízes e promotores. Mas os cúmplices somos todos nós, que não queremos ou não conseguimos mudar um sistema que conserva intacto, com rigor arqueológico, os mesmos métodos e as mesmas condições que existiam nas masmorras da Idade das Trevas.

Em Pedrinhas, uma das vítimas foi imobilizada e, ainda viva, assistiu à dissecação de sua própria perna, até a morte, enquanto a cena era gravada por celular. Outra foi punçada diversas vezes com a ponta de um espeto. Três foram decapitadas. Em comum, o fato de estarem enjauladas, sob tutela do Governo do Estado do Maranhão, e com o pretexto de serem reeducadas. O local tem capacidade para 1.700 pessoas, mas abriga 2.500.

Não é a primeira vez que a opinião pública se escandaliza com fatos assim. Há cinco anos, Conectas projetou para diplomatas do mundo inteiro, na ONU, em Genebra, fotos de presídios do Espírito Santo onde corpos humanos apareciam desmembrados em carrinhos de roupa suja. No horror capixaba, presos eram mantidos em contêineres metálicos lacrados, sob um sol abrasador. Quando a porta era aberta, vários caíam desacordados para o lado de fora.

Tragédias como essas se repetem sazonalmente no Brasil. São como as chuvas de verão que, todo ano, com data marcada, desabam com a força do descaso sobre milhares de mortos, num tsunami previsível. Aos poucos, estas hecatombes se incorporam ao calendário brasileiro, como o Carnaval ou os campeonatos de futebol.

Isso só é possível porque existe respaldo público. Num País em que a maioria dos 548 mil presos são negros ou pardos, pobres e moradores da periferia, a classe média e a elite não se importam de ter seus semelhantes enjaulados, literalmente defecando uns sobre os outros. Muitos dos que dão de ombros para estas violações têm a ideia mágica de que pessoas presas passam sem volta para um universo distante. Deveriam saber que as prisões no Brasil são absolutamente ineficientes. Funcionam como uma porta giratória, com índice de reincidência superior a 60%, na qual, de passagem, o preso é aliciado por grupos criminosos organizados e sofre todo tipo de brutalidade antes de voltar para a rua.

A obsessão brasileira em prender e maltratar presos bate recordes mundiais. Em 20 anos, o País teve um aumento de 380% no número de presos.

Construímos um sistema ilegal de prisões. Nele, violamos sistematicamente leis e garantias constitucionais. Trata-se de um ciclo vicioso, onde todos perdem. O processo de investigação é pífio – menos de 8% dos homicídios sequer são investigados. Com isso, a ferramenta principal das prisões – quase 40% provisórias – é a suspeita, quase sempre dirigida ao jovem negro de periferia. Este é, curiosamente, o mesmo perfil de quem não tem acesso à Justiça, pois não pode pagar um advogado e dependerá de um defensor público que, em São Paulo, é responsável por levar adiante, sozinho, entre 8 e 10 mil processos semelhantes. O número mostra que nem o Estado mais rico da Federação está livre das mazelas prisionais. São Paulo tem 80 novos presos por dia e sequer criou o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, o que daria efetividade ao compromisso que havia sido assumido pelo Estado Brasileiro há sete anos na ONU.

O argumento de que não podemos construir uma sociedade baseada em valores inumanos já é, por si, irrefutável. Mas, caso ainda existam sádicos que apoiem estes horrores, é preciso que saibam o quanto a construção de um sistema prisional como este acabará por construir, em pouco tempo, uma sociedade cada vez mais brutal, desumana e irreconciliável.

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* Lucia Nader, 36, diretora executiva da Conectas Direitos Humanos e Marcos Fuchs, 50, diretor adjunto da Conectas Direitos Humanos e membro do CNPCP (Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária).