Cecília Boal fala sobre a história do teatro brasileiro, que se mistura com sua própria trajetória, e comenta a nova temporada da Feira Paulista de Opinião.

[Por Jéssica Santos/NPC] A atriz e psicanalista Cecília Boal, entrevistada no Quintas Resistentes em 9 de julho, tem o teatro e a resistência marcados em sua história de vida. Nascida na Argentina, mas com residência e o coração no Brasil há décadas, Cecília foi casada por 43 anos com Augusto Boal, com quem também partilhou uma trajetória de amor ao teatro. O tema escolhido para conduzir a conversa foi 1968: a 1ª Feira Paulista de Opinião, espetáculo que marcou a luta da classe artística contra a censura.

Cecília chegou ao Teatro de Arena, um dos mais importantes grupos teatrais do Brasil, em 1966. Para ela, um importante movimento que merece destaque é o Seminário de Dramaturgia, idealizado por Boal. A partir desse seminário, iniciou-se uma produção com temáticas relacionadas à cultura brasileira.

“Falava-se aqui e em outros países latino- americanos a língua do colonizador. Era um espanhol dos espanhóis e um português dos portugueses. A gente continuava falando a língua dos colonizadores e passamos a falar a nossa língua. Isso foi um fenômeno que ocorreu em toda a América Latina… aconteceram esses teatros de pessoas jovens, simultaneamente”, lembra Cecília.

Com o movimento, dramaturgos passaram a escrever o que ela chama de “a língua do lugar”. “Quando você começa a falar a língua que se fala no lugar, as pessoas podem se identificar mais com as problemáticas e com esses personagens e se interessar mais por sua própria história e isso vai criando uma identidade”, afirma.

A censura sempre foi muito intensa no Brasil e o teatro, por colaborar diretamente com essa construção de uma identidade nacional, argumenta Cecília, sempre sofreu muito. A ideia da 1ª Feira Paulista de Opinião foi justamente dar uma resposta a esse cenário repressor. Reuniram-
se dramaturgos, compositores e artistas plásticos, entre eles Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo e Jô Soares, para montar o espetáculo pelo Teatro de Arena. “Então, mandaram os textos para a censura e eles censuraram 80% da Feira”, lembra Cecilia.

Com o Teatro Ruth Escobar alugado e o espetáculo pronto, os artistas resolveram levar adiantes a produção, como um ato de desobediência civil. “Isso criou todo um acontecimento. O teatro tinha sido interditado e tinha polícia na porta para que a gente não fizesse a Feira.

Isso durou por uma semana e os colegas nos emprestaram o teatro. Antes de começar a peça deles, a gente ia lá e fazia um pedaço da Feira, só para poder afirmar que nós não aceitávamos a proibição”, lembra Cecília.

Feira de Opinião temporada 2020

Cecília em uma leitura para a Feira Paulista de Opinião de 2020.

A Feira tinha como pergunta central: “O que pensa você do Brasil hoje?”. Hoje, 52 anos depois, Cecília nos conta que o desafio de responder a mesma pergunta está lançado com uma nova versão da Feira de Opinião. Com leituras teatrais e performances artísticas, os programas vão ao ar pelo canal do Youtube do Instituto Augusto Boal https://www.youtube.com/watch?v=knZdi8W3JTk e estão sendo gravados virtualmente, em plena pandemia.

O primeiro programa conta com a leitura da carta de Cacilda Becker ao censor, música Miserere Nobis, de Gilberto Gil e depoimento de Fernanda Montenegro. “Está sendo maravilhoso. Todas as pessoas que convidei toparam participar e já temos coisas muito lindas gravadas”, comemora Cecília.

AI-5: acirramento da repressão

A 1ª Feira Paulista de Opinião foi realizada em junho de 1968. Mesmo com tanta censura, o Teatro de Arena conseguia produzir e realizar espetáculos com sucesso de público. Porém, a repressão ficou ainda maior após o Ato Institucional nº 5 (AI-5), decretado em dezembro de 68 e considerado um dos mais violentos instrumentos jurídicos do período da ditadura militar
por, entre outras medidas, suspender direitos constitucionais. “Tudo ficou muito complicado.

Até o momento que o Boal foi sequestrado nos anos 70. Isso gerou muita preocupação. Ele ficou meses sequestrado no Dops (Departamento de Ordem Política e Social) de São Paulo”, lembra Cecília. Depois de inúmeras tentativas, a família conseguiu visitá-lo e um advogado acompanhou caso.
“Eu fui embora para a Argentina. Achamos melhor eu sair do Brasil com nosso filho. A polícia já tinha entrado na nossa casa, já tinha levado uma série de coisas”.

Já na Argentina, Boal ganhou um processo contra o governo brasileiro, que tinha negado a renovação do seu passaporte. “O Boal estava prisioneiro na Argentina, não poderia sair. Ao mesmo tempo que conseguiu a liberação do passaporte, recebeu um convite de Portugal, que tinha acabado de passar pela Revolução dos Cravos”. Por sua vez, Cecília estava muito preocupada porque a Argentina também vivia uma ditadura e estrangeiros estavam sendo perseguidos e mortos.

“Todos que estavam lá corriam perigo. Depois dele, eu fui com os nossos filhos. Moramos dois anos em Portugal e depois moramos na França por muitos anos”, recorda. Erêndira: metáfora da América Latina.

Cecília conta que quando morava na França, teve a ideia de reunir alguns latino-americanos que lá estavam e ouviu em algumas conversas que havia uma adaptação para o teatro do conto “A incrível e triste história da cândida Erêndira e sua avó desalmada”, de Gabriel García Marquez, texto de que ela sempre gostou muito. “Procurei o texto e Boal fez outra adaptação.

Pedimos a autorização do García Marquez, que conhecíamos, e fizemos uma produção na França. Na primeira versão, eu atuei como atriz, pouco antes da nossa volta ao Brasil”, conta. Ano passado, Erêndira ganhou uma nova versão, muito mais brasileira, concebida por Cecília. “Erêndira é muito importante para mim. É uma metáfora da América Latina. Nós sempre temos uma dívida impagável. Quem faz a conta do que ela está devendo não é ela e isso me faz lembrar muito a situação latino-americana, em que não sabemos quem fez a dívida, quanto custa e que nunca conseguimos pagar. Para mim, a mensagem mais importante
da peça é essa: como ela dá um jeito de não pagar mais a dívida. Além disso, o texto também traz à tona tema muito atual, que é o abuso e exploração de mulheres”, diz ainda Cecília.

O espetáculo teve algumas temporadas gratuitas seguidas de debates, nos quais ela fazia questão de participar. “Como era de graça, tinha um público muito interessante. As pessoas assistiam muitas vezes. Tem coisas muito interessante, a música é excelente, eu gostei muito. Eu tenho um orgulho da Erêndira”, confessa.

Instituto Augusto Boal
Cecília é a atual presidenta do Instituto Augusto Boal, organização fundada em 2010 com o objetivo de divulgar a obra desse importante dramaturgo brasileiro, com a organização e preservação do acervo de documentos produzidos por Boal ao longo de sua vida. Ela conta que não tinha a menor ideia de que o marido tinha conseguido preservar tanta coisa; ainda mais
por terem morado em vários lugares. Foi o filho, Fabian Boal, que chamou a atenção para a quantidade de materiais que poderiam se deteriorar com o tempo.

O acervo passou por diversas instituições e foi com a ajuda de amigos que começou a ser organizado. Projetos de exposições com o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) e SESC apoiaram esse processo. “Cada vez que que a gente organizava uma exposição ou evento, tinha uma instituição que era parceira e nos ajudava a bancar parte do acervo. Mas uma boa parte quem bancou mesmo fui eu”, revela Cecília.

Hoje, o acervo físico está aos cuidados do Museu Lasar Segall, em São Paulo. “Sempre quis dar para esse acervo um destino nacional. Não queria que ele saísse do Brasil, acho que o Boal não iria gostar disso. Finalmente esse acervo vai ser preservado no Museu Lasar Segall que tem um
belíssimo acervo de arte de espetáculos e uma equipe excelente”, afirma. No site do Instituto é possível ter acesso a parte do acervo já digitalizado, que conta com cartazes, fotografias, desenhos, reportagens e textos.

Acesse: http://augustoboal.com.br/